quinta-feira, 17 de maio de 2007

Lágrimas

Na revista «Pública» do fim-de-semana passado, Eduardo Lourenço concedeu uma grande entrevista. Focando diversos temas, às tantas o pensador recordou uma conversa havida com Miguel Torga. Dizia-lhe o escritor de «Bichos», recordando o passado, que a certa altura soubera, por pessoa interposta, que o ditador português sabia de cor alguns poemas seus. «Lembro-me de o Torga me ter contado uma história que se passou com um ministro de Salazar, o Leite Pinto, que ia ao Brasil. O Torga tinha estado lá e era muito conhecido no Brasil, de modo que podia servir como uma espécie de cartão-de-visita, mesmo sendo hostilizado cá dentro. Ora, esse Leite Pinto, antes de partir, foi-se despedir de Salazar e, nessa visita, começou a recitar um poema do Torga. O mais interessante é que Salazar continuou o poema, e acabou de o dizer. O Torga contou-me isto com lágrimas nos olhos. A vida é muito complicada.» As lágrimas de Torga, devo dizer, só me comovem, e só as entendo, por via da sensibilidade maior do médico-escritor. De resto, nada de muito espantar, creio que qualquer poeta que escreva é bem capaz de se comover ou emocionar ao ver que alguém se aproximou de tal maneira do seu dizer poético a ponto de decorar as suas palavras. Pensar que se é lido é uma ideia agradável, melhor é constatar que na realidade isso acontece. Tudo isto, porém, sendo muito complicado, dá ainda que pensar no estranho apelo que as artes exercem sobre os espíritos ditadores. E nesta matéria, como não recordar o pequeno homenzinho de bigode patético, de sua triste graça Adolf Hitler. Saberão, certamente, que por duas vezes Hitler tentou ingressar na Academia de Artes de Viena. Sem êxito! E talvez, infelizmente, pois caso tivesse sido aceite quem sabe a sua arte (boa ou má) o tivesse salvo e, sobretudo, salvo a Humanidade de um dos seus quadros históricos mais negros e torpes. Tais recusas, na verdade, bem poderão ter sido as causadoras do desastre artístico em que o mundo cairia às suas mãos. Contudo, o seu apreço pelas artes esteve sempre lá, permaneceu, como quem tivesse decorado um poema e o recitasse à laia de grande sentimental. Ao longo do seu «reinado», Hitler utilizou sempre a arte/ as artes como meio para implementar o seu projecto político megalómano. Orientando os seus sonhos criadores para uma estética muito peculiar, obviamente sempre muito propagandística e enaltecedora das qualidades superiores arianas, Hitler foi, à sua maneira, um «artista». Ou pelo menos assim se tinha em conta. E até podia muito bem ser verdade, ou verdadeiro, o seu amor às artes, Hitler podia saber de cor imensos poemas, podia ter magníficos sonhos arquitecturais, cinematográficos ou até literários, mas isso, nada disso o salvou de se instituir como «pintor» da mais cruel vilania que o mundo já conheceu. Do mesmo modo, também Salazar podia saber o Torga todo, o Camões inteiro, o Pessoa e os seus heterónimos de trás para a frente, mas nenhuma lágrima sua, nenhum verso seu poderia jamais salvar o mundo.

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