Cena 3
LUÍSA
Leo, Leo. Não podes deixar um bocadinho a televisão e conversar um pouco?
LEONARDO
Sobre a guerra, presumo, sobre isto?
(Apontando para o local onde se viam as imagens projectadas. Depois sentam-se, ele pega num jornal que começa a folhear passando os olhos às parangonas.)
LUÍSA
Não, não é sobre a guerra, estou cansada da guerra, a guerra não tem fim.
LEONARDO
Tens razão, tu e o Clausewitz, acho que foi ele que o disse, a paz são meros intervalos de guerra, ou qualquer coisa assim parecida.
LUÍSA
Pois... e o que há de novo? Nada, presumo, matam-se uns aos outros, culpam-se uns aos outros, choram uns e outros e tudo isso enquanto Deus se ri.
LEONARDO
Também concordo, acho que Deus quando fez o mundo enganou-se nos cálculos para aquela zona, enfim, não dispôs lá muito bem ali o xadrez das religiões na relação com a geografia.
LUÍSA
Leo, podemos não falar mais em guerra?
LEONARDO
Não falar é sinónimo de esquecer, tapar os olhos, ou já te esqueceste do que aconteceu com a sagrada União Europeia quando não tratou, logo ao início, de pôr fim ao conflito? Tu viste, todos vimos, a coisa caiu-nos em cima.
LUÍSA
Sim, eu sei, Leonardo, mas agora gostava de mudar de assunto. Sinto que... temos de conversar.
LEONARDO
Conversar? E não é o que temos estado a fazer?
LUÍSA
De amor, Leonardo, conversar sobre o amor, sobre nós.
LEONARDO
O amor, outra vez o amor, sempre o amor. É só isso que te interessa, Luísa?
LUÍSA
E não achas que é assunto suficientemente importante? Só, dizes tu! Quer dizer, primeiro ficas muito impressionado com as imagens de guerra que todos os dias atacam os telejornais, ficas até chocado, e depois, quando te falo de amor, retiras ao assunto toda e qualquer importância.
LEONARDO
Seja como for, não estou a ver onde queres chegar.
LUÍSA
Leo, é o amor que temos que alimentar, até como antídoto contra o ódio e as lágrimas. E o amor, como antigamente a educação, começa em casa. Se todos nas suas casas alimentassem o amor diariamente...
LEONARDO
Luísa, essas revistas «cor de rosa» que andas a ler não te fazem nada bem. Alimentar o amor? Isso parece o título de um daqueles livros de apresentadora de programas televisivos matinais! Alimentar o amor!?
LUÍSA
Sim, alimentar o amor, é isso mesmo, que mal tem? Não gostas da imagem? Eu explico-te porque não gostas dela. Porque o amor já não te interessa, porque há muito deixou de te interessar.
(Chora um pouco e tapa a cara com as mãos.)
LEONARDO
(Ligeiramente sensibilizado, aproxima-se dela e abraça-a, confortando-a.)
Então, Luísa, vá lá, vá lá, não é bem assim, tu sabes que não é assim..
LUÍSA
É, é tal e qual assim. Já não sabes o que é o amor. Deixaste fugir o teu amor. Perdeste-o, e amor não se deixa perder. O amor protege-se.
LEONARDO
Vá lá, Luísa, deixa-te disso, deixa-te de estares sempre a questionar o rumo das coisas. Lembras-te, houve um tempo em que não havia perguntas e éramos felizes...
LUÍSA
Claro, claro que sim, mas o silêncio, o silêncio desses tempos sem perguntas completávamo-lo com o amor, com a música dos nossos beijos, com o ciciar das nossas carícias, com os nossos sussurros na cama. O tempo era para nós invisível, ausente, não o sentíamos, era como se não passasse por nós, não nos ligasse ou não quisesse interromper o nosso amor. Mas agora, agora, o silêncio... Tu, enche-lo com a televisão, com os jornais, com o futebol e as guerras, ainda e sempre os malditos futebóis e as malditas guerras. Eu, eu ao contrário, encho o silêncio com a dor e a tristeza.
LEONARDO
Luísa, não estás a exagerar um pouco?
LUÍSA
Achas? Achas mesmo que estou a exagerar? Então, vá, façamos um teste, um teste muito simples. Amas-me?
LEONARDO
Outra vez?
LUÍSA
Amas-me ou não?
LEONARDO
É mesmo preciso...
LUÍSA
Responde, amas-me ou não?
LEONARDO
Talvez...
LUÍSA
Talvez? Estás a ver, não me amas. Porque não consegues dizê-lo. Apesar de tudo, ao menos não estás a mentir, devia resignar-me. Mas quê!!! Porque é que eu sou assim, tão tola, tão coração de manteiga, tão parva, com esta idade e nestes tempos a acreditar ainda na possibilidade do amor. Bem me diz a Raquel...
LEONARDO
Ora, a Raquel, já cá faltava a conselheira dos afectos.
LUÍSA
Não a ofendas, de sentimentos percebe muito mais do que tu, e dela eu sei o que posso esperar, sei que posso contar com a amizade dela para sempre...
LEONARDO
Fia-te nessas convicções, fia-te.
LUÍSA
Isso, tenta justificar-te passando a ideia de que todos são como tu. Ela bem que me avisou, os meus pais também, só que a eles tu deste bem a volta, puseste os teus sorrisos mais falsos, rodeaste-os de atenções e delicadezas... também foi sol de pouca dura, só até ao casamento, depois, vê-los cá em casa, só quando o rei fazia anos, assim fosse tua a vontade. Que parva, que parva, que infantil eu fui!
LEONARDO
Luísa, olha o drama que estás a fazer e porquê, por causa de uma palavra, uma maldita palavra!
LUÍSA
Uma palavra?! Ou a palavra? Tão bem que me enganaste. Acredita, Leonardo, eu escolhi o amor, escolhi amar, não escolhi o sexo, o prazer puro e duro, mecânico, como coelhos chineses, o sexo com hora marcada. E eu podia tê-lo feito, provavelmente ter-me-ia custado muito menos caro, provavelmente não estaria para aqui agora neste estado. Mas não, nunca aprendi a separar a razão do coração. Já tu...
LEONARDO
Já tu?...
LUÍSA
Já tu, a força do teu amor é nula, tem a força do papel de uma serpentina.
LEONARDO
Ora, Luísa, de facto, não vives neste mundo, ainda acreditas no amor pelo amor. O meu amor tem a força que tem, tem a força de um contrato...
LUÍSA
Exactamente, um contrato, os tão famosos contratos, cuja letra se encontra mais morta do que nunca. Um contrato, e tu estás fora, completamente fora do seu espírito. Vives a forma e basta-te, não é assim? Juro-te, não consigo compreender. A princípio, eras tão... tão... real, tão autêntico, tão verdadeiro, tão conforme à letra do nosso contrato, do casamento! Lembras-te? Até chegaste a levar-me a dançar boleros, creio que até me disseste ao ouvido, quando rodopiávamos, que o amor mais puro era o dos boleros, aqueles amores, as histórias que os boleros cantavam. E hoje?... Conseguirás, ao menos, dar-me uma definição de amor?
LEONARDO
Olha, Luísa, não sei, que tal «amor é fogo...»
LUÍSA
... que arde lentamente». Vá lá Leonardo, consegues melhor do que isso, não estás a ser nada original, aliás há muito que o deixaste de ser, hoje pareces uma personagem, pareces um actor na pele de um homem que deixou morrer-lhe o coração. «O amor é fogo que arde lentamente»... Não consegues uma outra definição? Tua, não de empréstimo, ou nunca soubeste o que é o amor para agora o poderes dizer? Que tal um frio a correr-nos a espinha, sei lá, que tal atirar pedras à Lua para que esta se apague quando o nosso amor não está, não nos ama, não nos quer, uma coisa assim...
LEONARDO
Por favor, poupa-me, tenho tudo menos cara de actor. Achas que me pareço com um actor?
LUÍSA
Acho, na realidade acho mesmo. E acho que as palavras na tua boca cada vez mais se transformam em vento e mal saem cá para fora se vestem de luto. Precisamente, é isso, o amor na tua boca é um luto. És cada vez mais uma máquina, a máquina que sai de casa para o trabalho, do trabalho para casa e depois se põe em frente à televisão, como se o mundo te preocupasse por aí além. É tão fácil preocuparmo-nos com o mundo sentados em frente a uma televisão e depois não mexer uma palha para alterar seja o que for.
LEONARDO
O.k. Luísa, O.k., sou uma máquina, sou o que tu quiseres, quem sou para te contradizer, de resto? Mas, olha, importas-te que ligue a televisão, só para ver o que está a dar? Importas-te, para desanuviar, que tal?
LUÍSA
Importo, por acaso até me importo. Olha, vai para o quarto ou para a cozinha ver o que quiseres, hoje fico eu aqui. Importas-te? Na minha sala, a ver o que me apetece, por uma vez? Pode ser? Obrigada.
(Leonardo sai de cena. Luísa aponta com o telecomando para o fundo de sala e novamente se acende a televisão passando, uma outra vez, imagens da guerra. Ouve-se «One», dos U2, na voz de Johnny Cash. Luísa olha alguns momentos para o écran e depois chora. Depois de alguns momentos a luz apaga-se. )
LUÍSA
Leo, Leo. Não podes deixar um bocadinho a televisão e conversar um pouco?
LEONARDO
Sobre a guerra, presumo, sobre isto?
(Apontando para o local onde se viam as imagens projectadas. Depois sentam-se, ele pega num jornal que começa a folhear passando os olhos às parangonas.)
LUÍSA
Não, não é sobre a guerra, estou cansada da guerra, a guerra não tem fim.
LEONARDO
Tens razão, tu e o Clausewitz, acho que foi ele que o disse, a paz são meros intervalos de guerra, ou qualquer coisa assim parecida.
LUÍSA
Pois... e o que há de novo? Nada, presumo, matam-se uns aos outros, culpam-se uns aos outros, choram uns e outros e tudo isso enquanto Deus se ri.
LEONARDO
Também concordo, acho que Deus quando fez o mundo enganou-se nos cálculos para aquela zona, enfim, não dispôs lá muito bem ali o xadrez das religiões na relação com a geografia.
LUÍSA
Leo, podemos não falar mais em guerra?
LEONARDO
Não falar é sinónimo de esquecer, tapar os olhos, ou já te esqueceste do que aconteceu com a sagrada União Europeia quando não tratou, logo ao início, de pôr fim ao conflito? Tu viste, todos vimos, a coisa caiu-nos em cima.
LUÍSA
Sim, eu sei, Leonardo, mas agora gostava de mudar de assunto. Sinto que... temos de conversar.
LEONARDO
Conversar? E não é o que temos estado a fazer?
LUÍSA
De amor, Leonardo, conversar sobre o amor, sobre nós.
LEONARDO
O amor, outra vez o amor, sempre o amor. É só isso que te interessa, Luísa?
LUÍSA
E não achas que é assunto suficientemente importante? Só, dizes tu! Quer dizer, primeiro ficas muito impressionado com as imagens de guerra que todos os dias atacam os telejornais, ficas até chocado, e depois, quando te falo de amor, retiras ao assunto toda e qualquer importância.
LEONARDO
Seja como for, não estou a ver onde queres chegar.
LUÍSA
Leo, é o amor que temos que alimentar, até como antídoto contra o ódio e as lágrimas. E o amor, como antigamente a educação, começa em casa. Se todos nas suas casas alimentassem o amor diariamente...
LEONARDO
Luísa, essas revistas «cor de rosa» que andas a ler não te fazem nada bem. Alimentar o amor? Isso parece o título de um daqueles livros de apresentadora de programas televisivos matinais! Alimentar o amor!?
LUÍSA
Sim, alimentar o amor, é isso mesmo, que mal tem? Não gostas da imagem? Eu explico-te porque não gostas dela. Porque o amor já não te interessa, porque há muito deixou de te interessar.
(Chora um pouco e tapa a cara com as mãos.)
LEONARDO
(Ligeiramente sensibilizado, aproxima-se dela e abraça-a, confortando-a.)
Então, Luísa, vá lá, vá lá, não é bem assim, tu sabes que não é assim..
LUÍSA
É, é tal e qual assim. Já não sabes o que é o amor. Deixaste fugir o teu amor. Perdeste-o, e amor não se deixa perder. O amor protege-se.
LEONARDO
Vá lá, Luísa, deixa-te disso, deixa-te de estares sempre a questionar o rumo das coisas. Lembras-te, houve um tempo em que não havia perguntas e éramos felizes...
LUÍSA
Claro, claro que sim, mas o silêncio, o silêncio desses tempos sem perguntas completávamo-lo com o amor, com a música dos nossos beijos, com o ciciar das nossas carícias, com os nossos sussurros na cama. O tempo era para nós invisível, ausente, não o sentíamos, era como se não passasse por nós, não nos ligasse ou não quisesse interromper o nosso amor. Mas agora, agora, o silêncio... Tu, enche-lo com a televisão, com os jornais, com o futebol e as guerras, ainda e sempre os malditos futebóis e as malditas guerras. Eu, eu ao contrário, encho o silêncio com a dor e a tristeza.
LEONARDO
Luísa, não estás a exagerar um pouco?
LUÍSA
Achas? Achas mesmo que estou a exagerar? Então, vá, façamos um teste, um teste muito simples. Amas-me?
LEONARDO
Outra vez?
LUÍSA
Amas-me ou não?
LEONARDO
É mesmo preciso...
LUÍSA
Responde, amas-me ou não?
LEONARDO
Talvez...
LUÍSA
Talvez? Estás a ver, não me amas. Porque não consegues dizê-lo. Apesar de tudo, ao menos não estás a mentir, devia resignar-me. Mas quê!!! Porque é que eu sou assim, tão tola, tão coração de manteiga, tão parva, com esta idade e nestes tempos a acreditar ainda na possibilidade do amor. Bem me diz a Raquel...
LEONARDO
Ora, a Raquel, já cá faltava a conselheira dos afectos.
LUÍSA
Não a ofendas, de sentimentos percebe muito mais do que tu, e dela eu sei o que posso esperar, sei que posso contar com a amizade dela para sempre...
LEONARDO
Fia-te nessas convicções, fia-te.
LUÍSA
Isso, tenta justificar-te passando a ideia de que todos são como tu. Ela bem que me avisou, os meus pais também, só que a eles tu deste bem a volta, puseste os teus sorrisos mais falsos, rodeaste-os de atenções e delicadezas... também foi sol de pouca dura, só até ao casamento, depois, vê-los cá em casa, só quando o rei fazia anos, assim fosse tua a vontade. Que parva, que parva, que infantil eu fui!
LEONARDO
Luísa, olha o drama que estás a fazer e porquê, por causa de uma palavra, uma maldita palavra!
LUÍSA
Uma palavra?! Ou a palavra? Tão bem que me enganaste. Acredita, Leonardo, eu escolhi o amor, escolhi amar, não escolhi o sexo, o prazer puro e duro, mecânico, como coelhos chineses, o sexo com hora marcada. E eu podia tê-lo feito, provavelmente ter-me-ia custado muito menos caro, provavelmente não estaria para aqui agora neste estado. Mas não, nunca aprendi a separar a razão do coração. Já tu...
LEONARDO
Já tu?...
LUÍSA
Já tu, a força do teu amor é nula, tem a força do papel de uma serpentina.
LEONARDO
Ora, Luísa, de facto, não vives neste mundo, ainda acreditas no amor pelo amor. O meu amor tem a força que tem, tem a força de um contrato...
LUÍSA
Exactamente, um contrato, os tão famosos contratos, cuja letra se encontra mais morta do que nunca. Um contrato, e tu estás fora, completamente fora do seu espírito. Vives a forma e basta-te, não é assim? Juro-te, não consigo compreender. A princípio, eras tão... tão... real, tão autêntico, tão verdadeiro, tão conforme à letra do nosso contrato, do casamento! Lembras-te? Até chegaste a levar-me a dançar boleros, creio que até me disseste ao ouvido, quando rodopiávamos, que o amor mais puro era o dos boleros, aqueles amores, as histórias que os boleros cantavam. E hoje?... Conseguirás, ao menos, dar-me uma definição de amor?
LEONARDO
Olha, Luísa, não sei, que tal «amor é fogo...»
LUÍSA
... que arde lentamente». Vá lá Leonardo, consegues melhor do que isso, não estás a ser nada original, aliás há muito que o deixaste de ser, hoje pareces uma personagem, pareces um actor na pele de um homem que deixou morrer-lhe o coração. «O amor é fogo que arde lentamente»... Não consegues uma outra definição? Tua, não de empréstimo, ou nunca soubeste o que é o amor para agora o poderes dizer? Que tal um frio a correr-nos a espinha, sei lá, que tal atirar pedras à Lua para que esta se apague quando o nosso amor não está, não nos ama, não nos quer, uma coisa assim...
LEONARDO
Por favor, poupa-me, tenho tudo menos cara de actor. Achas que me pareço com um actor?
LUÍSA
Acho, na realidade acho mesmo. E acho que as palavras na tua boca cada vez mais se transformam em vento e mal saem cá para fora se vestem de luto. Precisamente, é isso, o amor na tua boca é um luto. És cada vez mais uma máquina, a máquina que sai de casa para o trabalho, do trabalho para casa e depois se põe em frente à televisão, como se o mundo te preocupasse por aí além. É tão fácil preocuparmo-nos com o mundo sentados em frente a uma televisão e depois não mexer uma palha para alterar seja o que for.
LEONARDO
O.k. Luísa, O.k., sou uma máquina, sou o que tu quiseres, quem sou para te contradizer, de resto? Mas, olha, importas-te que ligue a televisão, só para ver o que está a dar? Importas-te, para desanuviar, que tal?
LUÍSA
Importo, por acaso até me importo. Olha, vai para o quarto ou para a cozinha ver o que quiseres, hoje fico eu aqui. Importas-te? Na minha sala, a ver o que me apetece, por uma vez? Pode ser? Obrigada.
(Leonardo sai de cena. Luísa aponta com o telecomando para o fundo de sala e novamente se acende a televisão passando, uma outra vez, imagens da guerra. Ouve-se «One», dos U2, na voz de Johnny Cash. Luísa olha alguns momentos para o écran e depois chora. Depois de alguns momentos a luz apaga-se. )
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