quarta-feira, 30 de maio de 2007

Amas-me? - Cena 10

Cena 10


(Luísa encontra-se no escritório da empresa “Segure-se ao Amor”. Está algo nervosa e, acabada de chegar, encontra-se de pé em frente à secretária do corretor que a atende.)


HENRIQUE CIMENTO
Ó Dr.ª, como está? Drª, desculpe este pequeno atraso, é que estava aqui à volta de umas apólices, trabalho para despachar antes de ir para férias, sabe como é, temos que deixar tudo prontinho. Mas, sente-se, sente-se, faça favor.

LUÍSA
Obrigada. Mas, não era suposto eu falar antes com o Senhor Manuel Vigário, uma vez que foi ele que me fez o contrato e a apólice?

HENRIQUE CIMENTO
Pois, pois é, tem razão, mas, sabe, Dr.ª, é que o meu colega Manuel Vigário, passe a expressão, teve de ir pregar para outra freguesia... Trocado por miúdos, digamos que não se portou muito bem cá na casa, enfim... um desfalquezito, a Dr.ª já vê... De modos que o patrão me mandou a mim tratar do seu caso e atendê-la. É para isso que aqui estou, Dr.ª, tenha a bondade de me expor o assunto que a traz de novo à “Segure-se ao Amor”.

LUÍSA
Bom, não sabia do Senhor Vigário, mas já que assim é. Olhe, Senhor...?

HENRIQUE CIMENTO
Cimento, Henrique Cimento, um empregado de betão ao seu dispor... (Ri-se, tentando gracejar.)

LUÍSA
Hã... sim, claro, betão... Calculei que sim... e já enriqueceu muito desde que aqui está, Senhor Cimento? Não leve a mal a pergunta, estava também só a brincar, para descomprimir...

HENRIQUE CIMENTO
Enriquecimento, enriquecimento!... Ah, boa, essa é boa, muito boa, nunca tinha visto a coisa por esse prisma. (Continua a rir.)

LUÍSA
Bom, Senhor Cimento, a verdade é que o assunto que aqui mês traz não é de todo agradável e, e até nem sei muito bem por onde começar.

HENRIQUE CIMENTO
Ó Dr.ª, por amor de Deus, estamos aqui para o que der e vier, faremos tudo para resolver o seu problema. Diga, diga.

LUÍSA
(Tirando umas folhas de papel da carteira.) Bom, passa-se o seguinte. Como deve ter conhecimento – vejo que tem aí o meu processo –, há cerca de dois anos e pouco procurei a vossa empresa e os vossos serviços. Correu tudo muito bem, de resto, devo dizê-lo em abono da verdade, tanto assim que logo, logo chegámos a um acordo, a que se seguiu o contrato que depois assinámos.

HENRIQUE CIMENTO
Correcto, correctíssimo, Dr.ª, confere com os dados que aqui tenho... Cá está, cá está, primeira reunião, 16 de Fevereiro, segunda, a 7 de Março e, depois, apenas mais uma, antes do contrato... Essa terceira reunião a... a... a... (procura as datas) 24 de Março! E o contrato, logo a seguir, a 1 de Abril, exactamente, aqui está o nosso original... (lê, rapidamente.) «Dr.ª Luísa Salles Telles, divorciada, nascida a tal, tal... vem pelo presente, tal, tal, tal... e depois, mais adiante, cá está, o segundo contratante, a “Segure-se ao Amor”... continua... E, no fim, as assinaturas reconhecidas e a data respectiva, 1 de Abril de 2028. É assim, não é Dr.ª? A Dr.ª, de resto, certamente que tem o seu original.

LUÍSA
Sim, sim, sim, claro, tenho-o comigo, aliás, são estas folhas. (Mostra as folhas que havia pouco tinha tirado da mala.) No entanto, não é bem o contrato o que me preocupa neste momento. Senhor Henrique Cimento, o que me está a perturbar um pouco é a apólice de seguro correspondente ao contrato.

HENRIQUE CIMENTO
Dr.ª, vai-me desculpar, mas não estou a perceber muito bem.

LUÍSA
Vou ser muito directa, Senhor Cimento, eu quero denunciar este contrato, só que eu estive a lê-lo com atenção e agora estou com receio de ter percebido mal o que li.

HENRIQUE CIMENTO
A apólice... Sim, muito bem. (Olhando para uma cópia da apólice que retira à pasta do processo.) E quer então denunciar o contrato? Dr.ª Luísa, conte-me tudo, por favor, prossiga.

LUÍSA
É o que ouviu, quero denunciar o contrato.

HENRIQUE CIMENTO
E porquê? Dr.ª, desculpe a pergunta, mas temos de tentar perceber porquê. Sabe, a “Segure-se ao Amor” garante os resultados, temos, inclusive, o diploma de reconhecimento de mérito profissional emanado pela Love International Business, como sabe, a mais credenciada instituição mundial nesta área de negócio, temos praticamente, em dez anos de existência, um historial de queixas limpo. Só por isso a minha pergunta, qual o fundamento?

LUÍSA
Acredito, acredito e não ponho em dúvidas os vossos méritos. Só que no meu caso as coisas não correram bem.

HENRIQUE CIMENTO
Não correram bem, Dr.ª, como assim?

LUÍSA
Correram mal!

HENRIQUE CIMENTO
Mal? Não é possível!

LUÍSA
Ai é, é.

HENRIQUE CIMENTO
Sou todo ouvidos, Dr.ª, especifique.

LUÍSA
É o amor, o amor não funcionou.

HENRIQUE CIMENTO
Por falta ou por excesso?

LUÍSA
Por falta, sem dúvida nenhuma, por falta. De resto, quando houve algum excesso, o que aconteceu, efectivamente, nos primeiros meses, reconheço que sim, quando houve excesso até nem foi nada mau, nada mau...

HENRIQUE CIMENTO
(Sorrindo.) Ora, está a ver? E então, e depois?

LUÍSA
Depois, ele foi esquecendo o amor. Deixou de me ligar com tanta frequência quando nos encontrávamos longe um do outro em trabalho, depois praticamente deixámos de sair para almoçar ou jantar juntos, cinema, teatro ou saídas à noite, já nem me lembro da última vez...

HENRIQUE CIMENTO
E flores?

LUÍSA
Flores?... Ah, sim, flores, não, nunca mais me comprou flores. Nem flores, nem um perfumezito, nada, só no meu aniversário, mas estou convencida de que mais por dever do que por prazer.

HENRIQUE CIMENTO
E quanto a... a ... bem, quanto, quanto àquilo, a Dr.ª sabe a que me refiro, enfim, sexo...

LUÍSA
Sexo? Ui... (Quase que estremece.) As saudades!

HENRIQUE CIMENTO
Portanto, nada?

LUÍSA
Nada de nadinha, senhor Cimento, e é por isso que estou neste estado e estou tão abalada.

HENRIQUE CIMENTO
Ora, Dr.ª, vá lá, acalme-se, vai ver tudo se resolve.

LUÍSA
Não sei, não sei, não estou assim tão confiante, mas é por isso que aqui estou.

HENRIQUE CIMENTO
Pois, pois, exactamente, é por isso que a Dr.ª aqui está. (Diz algo pausadamente, como que a dar um ar de preocupação.)

LUÍSA
Para denunciar o contrato com justa causa.

HENRIQUE CIMENTO
Justa causa? Justa causa... justamente. Mas...

LUÍSA
Mas?

HENRIQUE CIMENTO
Mas estas coisas não são... não são, como hei-de dizer... fáceis, nem sempre são fáceis Dr.ª.

LUÍSA
Não vejo porquê, senhor Cimento. No meu caso, parece-me estar à vista o porquê e o fundamento daquilo que vos peço.

HENRIQUE CIMENTO
Sim, isto é... à vista estará, não cumprirá é os... os... Os requisitos legais previstos para o efeito.

LUÍSA
Requisitos, quais requisitos senhor Cimento?

HENRIQUE CIMENTO
Dr.ª, atrás, por favor, atrás, aí na apólice, isso, vire a folha por favor, ora aí está, sim, está a ver? Essas linhas, em baixo, mesmo ao fundo.

LUÍSA
Desculpe? É que vou ter de pôr os óculos! (Tira os óculos da carteira.) Eu já sabia, quando eu li a apólice bem me cheirou que ia ter problemas... Onde é que está?

HENRIQUE CIMENTO
Não se incomode, eu leio-lhe: «1. O contrato só poderá ser denunciado, bem como a respectiva apólice de seguro, caso se preencham os seguintes quesitos: Primeiro, que a ausência de amor seja reiterada e prolongada pelo menos há seis meses consecutivos;...

LUÍSA
É o caso.

HENRIQUE CIMENTO
Continuando: «... Segundo, que não exista contacto sexual de qualquer espécie há pelo menos três meses;...»

LUÍSA
(Quase furtiva.) É o caso.

HENRIQUE CIMENTO
Prosseguindo: «... Terceiro, que a/o denunciante tenha sido vítima de agressão continuada...» Foi agredida alguma vez Dr.ª?

LUÍSA
Bem, agredida, fisicamente não.

HENRIQUE CIMENTO
Pois, nesse particular, o contrato refere ainda, na alínea seguinte, portanto, artigo terceiro, alínea a), ora, ora, ora, cá está: «Caso não tenha existido agressão física, a vítima terá de ter sido pelo menos agredida verbalmente.» A Dr.ª foi agredida verbalmente?

LUÍSA
Verbalmente? Eu fui agredida psicologicamente, e naturalmente com todos os reflexos físicos e emocionais que uma agressão desse tipo comporta! Senhor Henrique Cimento, por favor, não goze com os pobres, eu sou uma vítima de falta de amor! O senhor por acaso conhece alguém que consiga viver sem amor?

HENRIQUE CIMENTO
É provável que tenha razão, Dr.ª, é bem provável, não digo que não, mas o contrato está aqui e é bem explícito...

LUÍSA
Explícito? Aí, nessas letrinhas do tamanho de um grão de areia? Senhor Cimento, eu devo lembrá-lo, e à “Segure-se ao Amor”, que eu gastei muito dinheiro convosco. Os senhores recordem-se, e basta consultar o processo, de que eu fui às escolhas de topo, fui ao Gold! Eu não vos passei para a conta propriamente uma ninharia, foram, na realidade, uns bons milhares de euros! Por amor de Deus, Senhor Cimento, veja lá a resposta que tem para mim. Isto está a tornar-se muito desagradável.

HENRIQUE CIMENTO
Acalme-se Dr.ª, acalme-se, vai ver que vamos encontrar uma solução, nós aqui, na “Segure-se ao Amor”, somos peritos e especialistas nisso, em soluções para o amor.

LUÍSA
É que eu paguei e paguei bem! Senhor Cimento, o amor que eu comprei quase não tinha preço, você sabe disso, era o vosso topo de gama. Mais, vinha com as garantias todas que vocês me deram! Nomeadamente, aquela em que eu mais insisti, amor para sempre, que o amor fosse para sempre, aliás, está aqui escrito, «um amor à antiga». E agora, como é? Haja dó, há três meses que eu não... enfim, nada, com aquele homem nada, lá para casa em frente à televisão e metido nos jornais os dias inteiros! Não pode ser, ninguém aguenta, sobretudo tendo pago. Os senhores resolvam-me a situação, fale com o seu chefe, o seu patrão, sei lá.

HENRIQUE CIMENTO
É claro, Dr.ª, claro que sim, dê-me só um segundo. (Pega no telefone, marca o número de uma extensão, aguarda dois segundos, mantém um sorriso amarelo, e depois fala, por vezes fazendo pausas correspondentes à fala de quem está no outro lado da linha.) Está sim? Doutor Estranho Amor? Olá, Doutor, como está o Doutor? Desculpe interrompê-lo, sim, sim, sou eu, o Cimento cá de baixo. Olhe Dr., passa-se que tenho aqui em baixo no meu gabinete comigo uma cliente que... que... enfim, Doutor, aqui a Dr.ª Luísa Salles Telles está um pouco desiludida com a compra que fez. Indo directo ao assunto, o marido que nos comprou não está a corresponder às suas expectativas... Pois, em casa, nada... Há três meses, sim, nada... É, é isso, e gostaria de denunciar o contrato... Sim, claro, é, é isso, sim, sim, eu já disse à Dr.ª, mas ela insiste... Pois... Pois... Está, está bem Doutor Estranho Amor, muito bem, é isso que farei, e se me permite eu também acho melhor, é melhor não estragar a nossa reputação por causa de um simples caso... É... é... Com licença, Doutor, com licença.

LUÍSA
Então?

HENRIQUE CIMENTO
É como eu lhe dizia, Dr.ª, estamos cá para a servir. O Doutor Estranho Amor assentiu de imediato em ressarci-la dos danos. Assim, propôs-me, e eu proponho-lhe, que a Dr.ª escolha um novo amor nos nossos catálogos, os Premium Gold, claro. Temos uns tipos fantásticos, Dr.ª, de uma capacidade de amor à prova de tudo, a Dr.ª já vai ver. Ora, cá estão, faça favor Dr.ª. (Tira debaixo da secretária três grossos dossiers comportando inúmeras fotografias de diversos tipos de homem, que passa a mostrar a Luísa. Nesse instante, à medida que Luísa vai passando as folhas aparecem projectadas no fundo do palco as fotografias dos vários homens à escolha.)

LUÍSA
(Fazendo pequenos comentários à medida que as imagens vão passando.) Hum, este agrada-me... este, já não tanto... eventualmente... não sei, estes músculos precisam de algum ginásio... não, não, olhos verdes não, são traição... ah!, este sim, este parece-me muito interessante, gosto deste, será que posso ver o historial de vida dele? O Senhor Cimento assim, de repente, não sabe, por acaso, quantas vezes foi casado?, com quem?, porque é que se divorciou?, se tem filhos?...

HENRIQUE CIMENTO
Não, Dr.ª, assim de cabeça não lhe sei dizer, mas garanto-lhe que deve estar “limpo”...

LUÍSA
Limpo?

HENRIQUE CIMENTO
Sim, é como chamamos àqueles cujos casamentos não resultaram mas porque foram abandonados pelas mulheres. Aliás, daí a distinção entre Premium e Premium Gold, estes são mesmo a nata. Mas, vamos, vamos então guardar isto, tirar a ficha do homem que nos interessa e ver a informação que temos. Está a ver Dr.ª, afinal não foi assim tão difícil, não era caso para estar tão abalada. Vai ver que o amor não lhe vai faltar até ao fim da vida.

LUÍSA
Assim espero. Já agora, vou ter de pagar mais alguma coisa?

HENRIQUE CIMENTO
Não Dr.ª, só se quiser alguns extras...

(As luzes apagam-se, ouve-se «Extraordinary Machine», de Fiona Apple, durante alguns segundos, depois faz-se silêncio.)

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