quarta-feira, 16 de maio de 2007

Amas-me? - Cena 2

Cena 2


(Luísa e Raquel estão na cozinha. Raquel, que acabara de chegar, poisa a mala algures e aproveita para fumar um cigarro enquanto Luísa prepara um café para as duas. Ouve-se «Real Life», de Joan as a Police Woman, cujo som aos poucos vai baixando até ao silêncio)

RAQUEL
Posso, Luísa? Fumar?...

LUÍSA
Raquel, claro, que pergunta, desde quando não se fuma cá em casa? É fim-de-semana que eu saiba, ou a proibição de fumar em casa já se estende aos sábados e domingos? Por amor de Deus! Só faltava mais essa... Olha, fica à vontade, senta-te enquanto preparo um café. Estou precisada. Ainda bem que vieste.

RAQUEL
O que se passa, estás nervosa? Tensão baixa? O que foi, estás cá com uma cara.

LUÍSA
Não, não, não é nada, quer dizer, não sei...

RAQUEL
Não sabes, ou sabes e não queres contar? Vá, conta-me tudo, deita cá para fora, de que é que estás à espera? Não, deixa-me adivinhar primeiro, foi outra vez a escola, não foi. Os alunos voltaram a dar-te nota negativa?

LUÍSA
Não, não foi isso. Na escola as coisas até nem vão mal, quer dizer, não vão pior do que o que estavam desde que nos passaram a obrigar a fazer exames escritos trimestrais. Os alunos não, estão controlados, estes até nem são muito maus, na nossa escola este ano só chumbaram dois professores...

RAQUEL
Então?

LUÍSA
(Fazendo uma pausa para acender o seu cigarro, já depois de ter servido os cafés.)
Então é o Leonardo.

RAQUEL
Desculpa, ouvi bem? Disseste o Leonardo?
(Apontando para trás, como se indicasse a sala de estar onde ele se encontrava.)

LUÍSA
Ouviste, ouviste bem. O Leonardo. Porquê? Estás muito espantada?

RAQUEL
Bem, Luísa, desculpa, é só porque sempre te ouvi dizer que o Leonardo é o máximo, o super isto, o super aquilo, o super homem, a verdade é essa, o homem que todas as mulheres desejam ter mas nem todas conseguem ou podem, o marido perfeito, o a-man-te perfeito!

LUÍSA
Pois, pois era...

RAQUEL
Era?

LUÍSA
Sim, era, e era assim que eu o via, era assim que ele era, tal e qual como o descreveste, tal e qual as tuas palavras de gozo, o super homem, sim. Inteligente, bonito, bem humorado, quente, apaixonado, o corpo que tu sabes...

RAQUEL
Luísa, eu não sei nada, só vim cá saber como estavas... cada um tem o corpinho que tem em casa e ninguém tem nada a ver com isso.

LUÍSA
Sim, está bem. Enfim, ele é, melhor, era, como eu dizia, ele era, ele correspondia 100% àquilo que eu esperava, àquilo por que eu lutei anos e anos, a vida inteira, tu sabes! Mais, tu sabes o quanto isso me custou.

RAQUEL
Sim, claro que sei, sei muito bem até, na altura bem tentei alertar-te para certas coisas, se não estarias a ir longe e depressa demais, a sonhar muito alto. Bem sei que ele era o teu sonho, mas abdicaste de muito e investiste tanto de ti! Deste o que tinhas e o que não tinhas, quase ofereceste a tua alma!

LUÍSA
Eu sei, é verdade Raquel, eu sei que tu me alertaste, os meus pais também o fizeram, coitados, e só de pensar que quase me chateei a sério convosco... mas acredita, não me enganei quando tomei a decisão. Durante os primeiros anos, os primeiros anos, juro-te, foram excelentes. O que nós viajámos, as noites de amor que tivemos, as juras, as promessas, tudo conforme sonhei. Tu sabes que é verdade, tens para aí espalhados dezenas e dezenas de CDs com fotografias que o confirmam.

RAQUEL
Sim, isso é verdade.

LUÍSA
Maldivas, Argentina, México, Estados Unidos, Canadá, Japão, os Bálticos, os Pólos! Eu sei lá, estivemos em todos os lados, não fazíamos outra coisa senão viajar. Lembras-te? Sim, claro que te lembras, tu e o Jorge foram connosco uma vez ao Havai, claro que te lembras. Um sonho, foi um sonho que eu vivi, só que aos poucos...
(Choraminga um pouco, engole em seco, bebe mais um pouco de café, tenta concentrar-se e prossegue.)
... aos poucos tudo foi mudando, e ele foi ficando irreconhecível. Imagina, hoje é capaz de trocar uma viagem no Expresso do Oriente por um «expresso» tomado em casa, de pantufas, com o jornal enfiado nas mãos em frente à televisão. Não a larga, tu acreditas que papa tudo? Novelas, jogos de futebol, concursos imbecis! São horas sobre horas, noite e madrugada adentro!

RAQUEL
Bem, nem sei o que te diga. Se é assim, está irreconhecível. Luísa, mas não estou a ver como! Não estarás a exagerar? Ou não estará ele apenas a passar uma fase menos boa, alguma depressãozeca por diagnosticar, não sei, sabes como são os homens, qualquer coisa de nada e vão-se logo abaixo.

LUÍSA
Não, não, não. Conheço-o bem demais. Depressões não são o seu forte, ou o fraco dele, conforme queiras ver a coisa. Depressão para ele era ficar sem electricidade em casa e não poder ver televisão, não poder andar de volta dos discos e dos DVDs. Grave então era deixar de ter acesso aos vinte canais de Desporto por Cabo! Olha, antes fosse isso, até isso acho que seria preferível... sempre havia de se tratar.

RAQUEL
Mas então?...

LUÍSA
Então é o que te digo, começo a ter sérias dúvidas sobre o andamento de tudo isto, e já não sei, já não sei...

RAQUEL
Já não sabes o quê, amiga? Luísa, desculpa a insistência e que te pergunte, mas é que tudo o que me contaste me parece tão surreal que... que não sei, parece-me um teatro, uma história qualquer que tivesses ido ver e agora me contasses. Luísa, não leves a mal, não serás tu a estar com um princípio de depressão? Não foi há bem pouco tempo que deixaste os ansiolíticos? Hã? Tu tens saído? Olha, por falar nisso, há quanto tempo não vais ao teatro para te distraíres? Ou ao cinema?

LUÍSA
Raquel! Qual cinema? Qual teatro? Achas que vou gastar o meu tempo a ir ao teatro, para quê, para vir de lá pior com aquelas peças muito intelectuais e conceptuais de que a crítica tanto gosta mas que ninguém as entende? Grande amiga, obrigado pela sugestão...

RAQUEL
O.k., o.k., desculpa, tens razão, se calhar só te ia fazer mal. Mas, diz-me, e há alguma coisa em concreto que te possa fazer suspeitar de... de... enfim, de... tu sabes... os homens não podem ver um rabo de saia.
LUÍSA
Não, Raquel, se queres saber se encontrei alguma peça de lingerie no casaco dele ou algum número suspeito no telemóvel, não, não encontrei.

RAQUEL
Desculpa, ai, desculpa outra vez, também já estou a ficar nervosa com isto tudo, era só uma hipótese. É que é tão difícil de acreditar.

LUÍSA
Pois é, mas ele não me ama.

RAQUEL
Não te ama? Disse-to?

LUÍSA
Não.

RAQUEL
Então como sabes?

LUÍSA
Porque lhe perguntei!

RAQUEL
O quê?

LUÍSA
Se me amava. Perguntei-lhe, olhos nos olhos, se me amava.

RAQUEL
E ele?

LUÍSA
Ele? Ele nada, Raquel, mudou logo de conversa, pôs-se a desconversar com filosofices baratas. Só depois de muito o chatear é que me disse que sim, que me amava.

RAQUEL
Luísa, já não estou a perceber. Não disseste há pouco que ele não te amava, não disseste que ele não to disse?! Como pode então ter-te dito que sim? Ama-te ou não?

LUÍSA
Não, não me ama.

RAQUEL
Mas se disseste que ele respondeu que sim...

LUÍSA
Raquel, em que mundo vives? Não conheces os homens, não conheces a raça, o bicho, não sabes de que são feitos, de mentira, amiga, são feitos de mentira, são todos uns mentirosos.

(A luz fecha-se. Ao abrir-se novamente, vê-se de novo a sala de estar. Os móveis poderão ter outra disposição, já que ao fundo do palco, a toda a largura de cena, vê-se projectado um écran televisivo onde passam cenas de guerra no Líbano. Ouve-se «Song to Say Goodbye», dos Placebo, sobre as imagens cuja projecção dura alguns segundos até que a imagem e o som desaparecem. Leonardo, deitado no sofá, olha para as imagens com atenção. Entra Luísa, que se aproxima dele devagar, como se preparasse para abordar um assunto delicado ou cujas consequências já adivinhasse.)

Sem comentários: