1. momentos de azar
1997. 31 de Agosto. Sábado. Veloz como um disparo de besta, sibilando sobre o alcatrão da noite, guinando à esquerda e à direita, a primeira ambulância chegou às Urgências do hospital num frémito de sirenes lancinantes e luzes alucinadas. Vinha com motas de polícias à frente, ao jeito de batedores, cada qual com seu agente esbracejando a abrir alas, a tirar todo e qualquer escolho do caminho. Alguns familiares de pacientes internados olhavam a cena com curiosidade mórbida, embora desconhecendo quem para ali era transportado. Recortados a negro, ciganos fumavam a curta distância, encostados a um muro em pose de desafio.
Num freio súbito a carrinha branca estacou e logo às portas traseiras acudiram, céleres, quatro enfermeiros e dois médicos que aguardavam a sua chegada. Depois, um corrupio de tubos de inalação, soro para cá soro para acolá, uma injecção, e logo o corpo (ou aquilo que dele restava), envolvido por batas brancas, sorvido pelos corredores assépticos do hospital onde, como é sabido, só pessoal autorizado pode entrar.
Enquanto narrador desta história permitiram-me a entrada, mas não sem antes assinar uns papéis burocráticos. Ser escritor já foi mais fácil. Fui, alcançando a custo a maca que corria como Fórmula 1 pelos corredores, depois elevadores, novamente corredores, direita, esquerda, e, por fim, uma sala de operações. Aí, novos médicos davam ordens, cruzavam rápidas opiniões sobre o que fazer, mas sempre num frenesi de quem sabia que naquele caso um segundo de atraso numa decisão poderia significar a diferença entre a vida e a morte. Só um enfermeiro resmungou, notoriamente chateado por ter de interromper o visionamento de um episódio de «Serviço de Urgências» que passava na televisão àquela hora. Há momentos de azar...
Depois, o mais que pude ver foi através da estreita e pequena janelinha de vidro que havia na porta da sala de operações. Apesar dos meus protestos literários, um médico, que até tinha lido o meu primeiro romance e dele, assim mo garantiu, gostara, pediu-me para ficar lá fora. Que fizesse o obséquio, que, acreditasse, compreendia as minhas razões, pois sabia que para a descrição exacta dos factos era mais do que desejável que acompanhasse tudo a par e passo, de perto, preferencialmente, que sabia muito bem como eram os críticos com os pormenores, mas que naquele caso não podiam ser contemplativos nem podiam abrir excepções; só os médicos podiam ali estar. Ia ser uma operação deveras delicada.
sexta-feira, 2 de novembro de 2007
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