9. olhos nos alhos
Sim, naturalmente que Dirty Diana também não se esquecera das agruras e amargos de boca que o ainda seu esposo, o Príncipe Carlos, a fizera passar. Assim foi que ao Príncipe das Orelhas de Burro, o malandro que a trocara pela horrorosa Camila, decidiu Dirty Diana aparecer-lhe em casa, a altas horas da noite, ficando-se por lhe dar um grande puxão de orelhas enquanto ele dormia. Sabia que era o pior que lhe podiam fazer. Acordando de supetão, Carlos – a quem um declarado trauma fazia enlouquecer quando lhe aqueciam os «abanos à Dumbo» –, julgando que fora Camila a autora da cena, reagiu brutalmente contra a amante adormecida. Espancou-a como se fosse espanhol, com um leque de derechazos e trincheras, templando e castigando-a ao ponto de a obrigar a ir a três concertos seguidos de Elton John. Camila urrou de dores e pediu de joelhos que não, que o príncipe não a obrigasse a ouvir as lamechices do Elton, que preferia tudo, tudo mesmo, até submeter-se a vinte plásticas para ver se conseguia ficar um nadinha que fosse bonita, mas que ouvir o Elton não, não resistiria, era demais para uma pobre alma que nada tinha feito. Carlos não foi contemplativo. Que ia e estava dito. E que se Camila voltasse a portar-se mal, o castigo seria muito pior. O cantor português Clemente seria a próxima provação! Por isso hoje muitos lhe chamam Carlos, O Inclemente. E aqui poderia e bem, caro leitor, colocar-se a questão: afinal, quem era mais terrível, Dirty Diana ou Carlos quando lhe puxavam as orelhas? Bem, quanto a mim, à luz da escolha de Clemente e tendo em atenção que, mais tarde, Diana acabaria por desistir de se vingar da velha, da Rainha Mãe, entenda-se, justamente por achar que ela sofreria mais vivendo do que indo desta para melhor, creio que Carlos poderia levar alguma vantagem na decisão...
Cumprida a sua vingança sobre Carlos, Diana retomou atenções sobre o último paparazzi da sua lista; o último da lista, mas o primeiro em melguice, o paparazzi que mais a atormentara, mais até do que Paul Aroid, ao ponto de até no momento da sua morte lhe ter conseguido furar os planos. Como se vai ver. Era um fotógrafo italiano então muito na moda, um trintão bem parecido, moreno de olhos claros, bem musculado, cabelo grisalho à Comissário Corrado Cattani. Chamava-se Donatto Printi, e era correspondente da «Gioia Donna», uma revista italiana de figuras do jet set internacional. Donatto era o terror dos sonhos de Dirty Diana, o pesadelo travestido em homem, a reverberação constante dos piores dias de Diana, então Princesa. Apanhar Donatto não era tarefa fácil, nem sequer para a imaginação do escritor. Estava sempre fora, viajava de país para país, acompanhava as agendas das principais figuras da realeza e do show biz internacional. De modo que tardou algum tempo até que Dirty Diana soubesse da sua estadia em Paris, onde Donatto viera em trabalho, decidindo-se depois a um fim-de-semana prolongado de merecidas férias.
Na «mouche», vibrou Dirty Diana quando, certo final de tarde mais soalheiro, da cadeira da esplanada sobranceira ao Sena, onde se encontrava a tomar um café acompanhado de umas trufas, vislumbrou Donatto num bateau mouche que se preparava para ancorar num cais ali perto. Sim, mesmo à distância a que se encontrava, Diana não tinha dúvidas, era ele. Quando se completou a atracagem, Donatto subiu para terra, ajudando em seguida uma jovem que o acompanhava. Depois de uns minutos de conversa, os dois despediram-se, seguindo cada qual para seu lado. Diana, lesta, pagou a sua despesa, e, fortuita, levantou-se seguindo Donatto, sempre resguardada pelos seus grandes óculos escuros de ar amaricado, como já se frisou.
Dois quarteirões a seguir, e depois de ter entrado nuns laboratórios de fotografia, onde recolheu uns trabalhos de grande formato que tinha posto a revelar, Donatto saiu dirigindo-se a um parque automóvel subterrâneo a uns cerca de cem metros dali. Diana seguiu a sua presa. Deixando primeiro que ele submergisse no subsolo, seguiu-a como uma sombra esgueirando-se por uma das outras entradas do Parque. Seriam então umas sete horas. O sol já havia algum tempo que tinha baixado. Já no piso –1 do Parque, certificando-se, à distância razoável para não ser vista, de que Donatto ali estava, Diana deu um pulo rápido a uma pequena cabina onde se encontrava o segurança local. Insinuando-se aos olhos do bivalve, inventando uma qualquer desculpa de momento, relacionada com falta de trocos, não demorou até que o homem saísse do seu guichet e lhe abrisse a respectiva porta. Ao chegar-se a Dirty Diana ela não esperou um segundo, saca do seu bisturi e crava-lho no pescoço num gesto felino e fulminante. Um belo golpe; o homem nem teve tempo de sentir dor. Quanta gente não gostaria de morrer assim...
Acto contínuo, e já com o guarda esvaindo-se em sangue aos seus pés, olhos lívidos e esbugalhados, qual peixe na praça, Diana entra na cabina e desliga o quadro da electricidade. Num ápice, cai a escuridão à sua volta. A iluminar-lhe os passos, bem como os de Donatto, agora apenas uma ténue luz de presença espalhando-se como neblina sobre o taciturno espaço à sua volta. nesse exacto momento também, Donatto e Diana ouvem o pesado e férreo correr dos portões do Parque, cujos mecanismos se accionaram como forma de segurança. Ao ouvir o silvo metálico, Donatto, sem conseguir perceber porquê, estremeceu e um arrepio frio correu-lhe a espinha de baixo para cima, fazendo-o revirar o pescoço como quem se debate com uma qualquer implacável etiqueta, e quase o fazendo deixar cair as enormes fotografias que antes levantara, a certificar-se de que tudo estava conforme desejava.
Já de atalaia, o seu sorriso sardónico e irritante que sempre o acompanhava abandonou-o fazendo-lhe secar os lábios, passando-lhes em seguida, por reflexo pavloviano, a língua por cima sentindo todas as suas comissuras. Arrefecera. A atmosfera parecia agora mais pesada, quase irrespirável. Estacado no meio do lusco-fusco, ainda a alguns metros do seu carro, Donatto sentiu a sua garganta engolir em seco repetidamente. À sua volta pressentiu um borboletear de sombras, um voejar de vultos inomináveis. Voltou-se de repente, mas nada viu. O escritor desta história poderia aqui, e para melhor complemento e condensar da emoção do momento, instilar mais um ou outro pozinho clássico do género narrativo a que devota mãos, poderia por exemplo fazer com que Donatto ouvisse um súbito e estridente grito, de alguém que se visse subitamente ante uma visão terrífica de um qualquer degolado, de uma qualquer senhora de alta sociedade que também naquele momento se dirigisse ao seu potente Mercedes e ao abrir a porta desse de caras com o marido estripado lá dentro, o escritor poderia também fazer ecoar nestas páginas um uivo de lobo, ou até de uma matilha inteira de lobos esquálidos, esfomeados e de dentes pontiagudos que saíssem largados de dentro de uma qualquer carrinha estacionada no Parque, animaizinhos que corressem esfaimados para Donatto, atirando-se-lhe, impiedosos e mortais até ao último osso...
Poderia. Mas não. Prefere o escritor aproveitar estas outras hipóteses de trabalho para ele próprio engolir e suspirar fundo para prosseguir empreitada – numa prosa, já o confessou, em que é neófito e cujas emoções da acção até ele «incomodam». Prossigamos, por conseguinte, que a Donatto já não resta quase pingo de suor, e o homem ainda se vai desta para melhor com algum ataque de coração sem que Diana lhe deite mão vingativa. Donatto está, pois, a esvair-se em suores, que mais não são senão os óleos em que se banha o corpo quando lavado de medo e pavor. Silêncio. Silêncio agora, como o Parque fosse uma capela mortuária, silêncio como a voz de um Padre escondendo os seus próprios pecados. Uma ratazana que corre e guincha. Donatto vira novamente a cara e olha ao redor a 180º. Nada, pouco consegue ver, assusta-se com o vulto da sua própria sombra. Depois volta-se e é então que os seus olhos vislumbram as formas e a silhueta negra de Dirty Diana.
O resto, como se costuma dizer, são favas contadas. E como Donatto odiava favas!... Diana avança sobre ele. Ri-se. Ri-se a golfadas de um riso sarcástico e estridente. Donatto treme por todos os lados. Não consegue dar um passo, nem para trás nem para diante, nem sequer para os lados. Acossado, preso ao chão como transatlântico ao mar, Donatto, ao ver abrir-se-lhe à sua frente, a dois palmos da cara, a cara de Dirty Diana, dois dentes caninos salivando-lhe na boca, só tem tempo para reagir por instinto de defesa. Ainda, numa das mãos, com os grandes formatos de fotografias que tinha levantado nos laboratórios antes de entrar no Parque, na outra, com a sua potente máquina fotográfica e as chaves do carro penduradas no dedo mindinho, Donatto, ao avanço da sombra que caía sobre si, solta um grito ao mesmo tempo que consegue ainda disparar o flash da sua máquina. Ao fazê-lo, a luz potentíssima do flash ilumina as suas fotografias de grande formato dando a ver a Dirty Diana uns enormes alhos...
Olhos nos alhos, Diana estarrece de pavor. Algo atordoada com a horripilante visão, Diana retira os dentes do pescoço de Donatto e recua aos solavancos, lançando ela própria as suas mãos ao próprio pescoço, como se acabasse de engolir um copo de veneno. Mais dez passos e Diana cai fulminada pela visão das fotografias de Donatto. Este, para cúmulo das injustiças, acaba por sobreviver. Sobreviver para contar, ou melhor, para fotografar. É o que faz cerca de um mês depois, com direito a faustosa inauguração de exposição numa das mais afamadas galerias de arte parisiense. Ao público, mostra a nova série de fotografias a que dera o título DDT. Os muitos quadros expostos mostravam grandes planos de alhos, bem como de outros legumes de um trabalho que uma cedia de hipermercados lhe encomendara. Todos tinham grande procura, mas no centro das atenções estava a fotografia de Dirty Diana esboçando para o passarinho uma cara de profundo pavor, revelando, nada mais nada menos que o último e verdadeiro esgar da Princesa Diana, ora travestida a Dirty Diana.
Hoje, passados dez anos, essa fotografia, denunciando um imenso e real pavor, é uma das mais valiosas em hastas leiloeiras, dizendo os críticos, e escrevendo alguns, que guarda e revela a verdadeira alma da princesa. Crê-se estar na posse de um coleccionador de arte chinês cuja identidade permanece um mistério. Quanto a Donatto, depois de alguns anos fazendo semanais consultas e terapia psiquiátrica, conseguiu ultrapassar o choque experimentado. Hoje, guarda, como troféu, as marcas dos dentes de Dirty Diana, tal como o fazem os sobreviventes de ataques de tubarões, e leva uma vida pacata enquanto fotógrafo. Só de uma coisa não conseguiu ainda livrar-se, da pestilenta lembrança do cheiro da cara de Diana. No que a Dirty Diana respeita, o conhecimento público desta história apenas veio engrossar as fileiras dos seus fãs em todo o mundo. Um deles, Michael Jackson, que anunciou recentemente que no futuro todos os seus concertos se iniciarão com o tem «Dirty Diana» e que dez por cento das receitas serão canalizadas para Associações de Ajuda Humanitária.
quarta-feira, 14 de novembro de 2007
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário