IV.
Coisa diplomática, visita de Estado e outras pressas ministeriais. Interesses superiores, Etelvina e os capangas. Aperitivos, drinks e jet set. Uma sessão que foi um sucesso, apesar da inexperiência da autora que em tempos imitara Whitney Houston.
Seis, sete quilómetros, por aí terá ficado a distância percorrida pela caravana editorial que naquela manhã deixara o escritório com grande estrépito de rodas comendo o asfalto. Batedores da GNR à frente e outros atrás, lá conseguiu o BMW atravessar o trânsito citadino e chegar a tempo e horas à recepção agendada para os convidados ilustres no Grande Hotel da capital. Parecia coisa diplomática, visita de Estado ou então as habituais pressas ministeriais, sempre a grande velocidade, mais do que a permitida por lei, justificada, claro está, pelas superiores razões de Estado, que a tudo servem, está de ver, quando necessário. E pelas ruas por onde passaram sempre a mesma indignação dos automobilistas, obrigados a parar para ceder passagem à comitiva. Os impropérios foram de índole diversa, não convém aqui reproduzi-los de modo a não tornar a escrita ou a leitura desagradáveis. Curiosamente, houve também alguns transeuntes que à passagem dos motociclistas e do BMW acenavam para os mesmos, provavelmente pensando que no seu interior era alguma figura de Estado estrangeira que se encontrasse de visita ao país. Tão eufórico e fora de si com tudo isto estava o director editorial que, às tantas, não resistiu mesmo, abrindo uma janela e com o braço de fora lá foi retribuindo acenos aqui e acolá. Parecia agora um candidato político em campanha e não fosse a senhora Etelvina ter-se queixado do vento excessivo que lhe perigava o penteado e ele teria continuado naquela «festa eleitoral» até final do percurso.
Tinham enfim chegado. O director editorial estava feliz, os horários cumpriam-se com pontualidade britânica graças à batida policial. Haveria, de resto, e oportunamente, de agradecer em pessoa ao comissário Lemos Matoso a disponibilidade própria e do seu pessoal para atendimento deste caso, sabendo, no imediato, intuir-lhe e reconhecer-lhe o seu interesse superior. Ao lado do director editorial, durante todo o percurso, a senhora Etelvina sempre de óculos escuros, agora nisso como que se solidarizando com os seus dois «capangas» que seguiam também no carro, um à frente e outro no banco de trás.
Quando todos deixaram o carro, foi, desta feita, a vez do pessoal do hotel se prontificar para lhes fazer escolta até ao átrio de entrada, onde já se encontravam dois ou três convidados mais madrugadores. Vendo a distinta comitiva, os turistas que por ali também se encontravam por mera casualidade, preparando-se para o pequeno-almoço ou para uma passeata a pé pela cidade, muito se admiraram com o que aos seus olhos se deparava. Um deles, um inglês ruivo e de ar leitoso, mais curioso, não fosse estar ali a cruzar-se com uma alta individualidade do país anfitrião, chegou-se ao pé de uma assessora de Imprensa e diz-lhe: «Who are they? The prime-minister’s wife?» Ao que ela, sorrindo: «Oh, no, no, much more important than that, a writer» (ficando na dúvida se deveria ter antes dito novelist). E acrescentou: «In fact, our prime-minister is not married.» «Oh», volveu o inglês, tendo certamente ficado a pensar que nem na sua Inglaterra se tratavam tão bem os escritores. E mais disse, pondo-se a andar para o sol exterior, ainda relanceando de novo o aparato da cena voltando a cara para trás: «Must be a very important one, who knows may be the next Saramago...» O director editorial nada disto ouviu, mas provavelmente teria gostado de o ouvir...
Beijinho para cá, beijinho para lá, muitas felicitações e os parabéns da praxe, a senhora Etelvina, já sem óculos, tentava agora, uma vez mais, descontrair. Um a um, o director editorial ia-a apresentando, orgulhoso, aos diversos convidados que iam chegando. «A nossa autora», dizia ele, aos que os outros e a senhora Etelvina sorriam com algum desconforto, apertando as mãos, no caso dos homens, beijando as faces no caso feminino. A todos os que iam chegando, num dos lados do salão de entrada do hotel, uma menina de farda vermelha e sorriso Pepsodent oferecia um exemplar do «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal». E todos, à vez, contentes com o seu exemplar se dirigiam agora para uma das suas portas do elevador onde um impecável ascensorista as aguardava para subirem até ao último andar do edifício, onde, no restaurante panorâmico, teria lugar o lançamento do livro propriamente dito. Em baixo, e como o tempo avançasse, também o director editorial, o editor e a autora se dirigiram prestes a um dos elevadores. Para trás, ficavam agora apenas a menina da banca de livros improvisada, e duas assessoras de Imprensas encarregues de receber os senhores e senhoras jornalistas, assim fossem chegando, aos quais entregariam um dossier de Imprensa. O livro, esse, teriam, posteriormente, de pedi-lo para os escritórios, assim o desejassem, pois aqueles exemplares que tinham trazido destinavam-se a oferta aos convidados.
No topo do edifício, com a luz alfacinha a trespassar as enormes e largas vidraças, inundando todo o ambiente, encontravam-se agora convidados e jornalistas em suficiência para que pudesse dar início à sessão. Antes disso, e enquanto empregados do hotel, serviam, de cá para lá, e de lá para a cozinha e regresso, uns aperitivos e uns drinks, conversava-se animadamente, uns de livro aberto, outros de olho nos acepipes, outros ainda, sobretudo esses malandros dos jornalistas, de olho na mesa dos mariscos. Junto à autora e ao director editorial, uma figura do jet set, aí dos seus sessenta bem entrados e plasticamente mantida em forma para a fotografia, referia, com ares doutos de crítica literária: «Querida, está óptimo, você nem imagina o prazer que eu tive ao ler o seu livro. Hummm..., a sério, mais emoção mesmo só nos livros da Susanna Tamaro e do outro... ai, como é que se chama?... aquele, ajude-me, ai... e eu que gosto tanto dele, o... o...» «Coelho? Paulo Coelho», ajuda-a a autora, mostrando assim os seus vastos conhecimentos literários e a abrangência das suas leituras. «O Paulo, sim!», responde-lhe a outra, tratando o escritor brasileiro como se o conhecesse lá de casa. E continuava, agora para o director editorial: «Parabéns pela aposta ganha. Acho maravilhoso dar voz a pessoas aqui como a senhora Etelvina, pessoas com algo de verdadeiramente interessante a dizer, pessoas que o meio editorial sempre calou afastando-se da realidade. Sim, porque eu acho que a literatura portuguesa já merecia autores assim. Parabéns, muitos parabéns querido.» E foi-se dali com o seu sorriso sempre ligado, como se se tivesse engasgado e estivesse aflita, de olhos esbugalhados.
O director editorial, também ele, parecia ter aprendido rápido com aquela gente da socialite lusa, que por tudo e por nada distribuía sorrisos e dizia, sem ter porquê a respeito do que fosse, «acho óptimo, óptimo, óptimo.» Apertos de mão, abraços à companheiro comuna aos mais próximos, o homem estava feliz, verdade se diga, e verdade se diga como havia muitos anos não o viam aqueles que com ele privavam diariamente. Aquilo, quanto a mim, que o conheci como poucos – tanto mais que foi com ele que trabalhei desde que vim para este país defender a dama da literatura –, não era apenas um caso de deslumbre editorial ante a possibilidade de ter agarrado em mãos um best-seller. Não, a coisa parecia-me, sinceramente, bem mais grave, coisa talvez mesmo a merecer visita a psicólogo ou a psiquiatra – sim, não espantem, pois não estão hoje tão na moda estes profissionais médicos, a quem quase já não existe quem não recorra por dá cá aquela palha! Pois a mim, parecia-me caso digno disso, era, claramente, uma patologia a merecer moldura clínica.
E agora que penso nisso, recrimino-me por não o ter notado mais cedo. Sim, logo quando, há cerca de um ano, o director editorial resolvera começar a frequentar um curso para reciclagem editorial à luz dos novos mercados, uma coisa que lhe chegou ao conhecimento por correio simples, num prospecto banal onde se convidavam os profissionais da área a frequentarem cursos diversos. Se a princípio achei por bem que o fizesse, até porque se encaminhava a passos largos para os sessenta anos, e pôr-se a par de novidades do mundo editorial parecia-me uma maneira acertada de não perder passo face aos últimos avanços na matéria, mais tarde, quando começou a frequentar feiras do livro «alternativas» e a comprar direitos sobre livros «duvidosos», de cariz esotérico e outros, aí, bem aí, eu devia ter-me apercebido de que alguma coisa dentro daquela cabeça não corria bem. Agora, agora parece tarde de mais; aquele brilho no olhar já não é o mesmo, já não lhe denoto o gozo literário que antes expressava e de que se orgulhava como poucos, mas antes um brilho que reluz como o raio de sol batendo no ouro dos cifrões, ou, para sermos mais contemporâneos, no brilho dos euros.
Embora com uma pequena décalage em relação aos horários estabelecidos, a sessão teve, enfim, começo. Na mesa, ao centro, o director editorial, a seu lado, a autora, do outro lado, o editor. À sua frente, um vasto auditório, agora muito bem composto, caras conhecidas, boa apresentação, e também os jornalistas, menos compostos, é certo, como é da classe, todos petiscando de copo na mão, agora fazendo silêncio para as palavras que o director editorial se preparava para dizer dando a sessão por aberta. Chamando a si as atenções, os microfones e os holofotes das televisões presentes, o director editorial, na primeira pessoa: «Meus amigos, senhoras e senhores, ilustres convidados, senhores jornalistas, começo estas breves palavras de apresentação do livro «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal», por agradecer, em primeiro lugar, e naturalmente, à autora. Agradecer o ter-nos escolhido para ser a sua editora, a sua casa editorial (querendo com isto dizer que é, doravante, como se em sua casa que entre nós queremos que se sinta), agradecer a sua disponibilidade demonstrada ao longo de todo o processo de preparação da obra e, sobretudo, a sua confiança nos nossos profissionais, desde o senhor editor aqui ao nosso lado, cuja presença e trabalho desenvolvido aproveito igualmente para felicitar, até aos designers que pensaram a capa, passando por todas as outras pessoas que, de uma forma ou de outra, se empenharam para que este livro viesse hoje a estar aqui, nas nossas mãos, pronto para chegar ao público, afinal de contas, razão última, e primeira, do nosso trabalho, do nosso existir. Etelvina Prazeres, como todos saberão, é uma mulher de armas – e não querendo, desde já, desvendar os segredos do livro, tirando-vos o prazer da leitura, posso, no entanto, dizer que passagens há que ilustram cabalmente isto que acabo de dizer. E, por conseguinte, Etelvina Prazeres não teme. Não teme pôr a verdade preto no branco, não teme dar a cara por esta sua verdade de cristal. Verdade de Cristal porquê? Porque se trata de uma verdade, a sua, que sendo cristalina também se revela capaz de quebrar com muitas outras verdades falsamente instaladas. Creio que para além disso, para além desses aspectos, mais ligados à vida do futebol nacional, nomeadamente aos momentos vividos com o senhor presidente de um conhecido clube nortenho que todos conhecem, este livro colhe, repito, este livro colhe igualmente por via da sua faceta sensível, por encobrir, descobrindo, nas entrelinhas do texto um outro cristal, um cristal que não é senão a personalidade simultaneamente dura e frágil de Etelvina Prazeres. Uma vida, em breves palavras, arrancada a pulso e com muito jogo de cintura, uma vida galgada degrau a degrau, amparando golpes sobre golpes, daqueles que a invejavam pelo modo como, subindo, conseguia manter a sua aura de integridade. Creio que a prova maior dessa sua inteligência na escalada da vida é o modo despretensioso como se revela neste livro, nesta obra que é a sua vida, a sua experiência, a sua cara. Espero que todos vós, tal como eu experimentei, sintam o mesmo prazer na sua leitura. À nossa nova autora, uma vez mais, o nosso obrigado».
Tendo-se contido, o discurso não durou muito mais de dez minutos. Os flashes dos repórteres fotográficos encheram a sala, tentando captar as reacções dos oradores e dos Vips presentes na sala, que, com grande probabilidade, fariam as capas das próximas edições das revistas cor-de-rosa. O auditório pareceu ter gostado do que ouviu e retribuiu com um caloroso aplauso. Do meio das palmas, ouviu-se mesmo um forte assobio e alguém que gritava bem alto «Etelvina, Etelvina, Etelvina...» O director editorial, com os braços esticados para diante pedindo de novo silêncio na sala, passou de imediato a palavra ao editor. Que disse, dizendo que o seu director editorial já praticamente tudo dissera: «Bom dia a todos... Eu queria apenas também agradecer à Etelvina a oportunidade profissional que me concedeu ao trabalhar comigo na realização deste trabalho. Creio que o resultado está à vista e é uma obra que honra o percurso de ambos. Devo, contudo, dizer que a maior parte do mérito pertence-lhe a ela, já que eu me limitei a sugerir este ou aquele enquadramento temático, este ou aquele prisma de apreciação, este ou aquele estilo de escrita. Etelvina, muitos parabéns!» Um novo aplauso entusiástico percorreu a sala, momento que os jornalistas aproveitaram para lançarem novo punhado de cajus e amendoins à boca. E nesse ínterim, de novo uma forte assobiadela e de novo o nome da autora ressoando entre as palmas: «Etelvina, Etelvina, Etelvina!!!» Novamente, o director editorial teve de intervir, desta feita, levantando-se mesmo e pedindo silêncio à audiência. Teria a palavra a autora, fizesse favor, o microfone era todo seu.
Com o micro à frente da cara, Etelvina mostrou-se à-vontade com o objecto. Quis mesmo segurá-lo com as mãos, aproximou a boca demasiado e o som das primeiras palavras soou algo distorcido. Dando-lhe uma dica em voz baixa, o director editorial explicou que não era necessário segurar o microfone e que poderia falar sem dele se aproximar em demasia. Etelvina sorriu e lá disse: «Peço perdão, não estou habituada a este tipo de objectos, a única vez que peguei num microfone foi quando servia à mesa e o dono do bar me pediu que subisse a palco para fazer uma imitação da Whitney Houston, que é uma cantora que eu adoro... E... e... prontos... eu peço desculpa, mas tudo isto é novo para mim... enfim... acho que o que vos queria dizer, para além de agradecer a vossa presença e o vosso apoio, é que estou muito contente, muito feliz mesmo com este livro, que considero um passo em frente na minha vida. Devo dizer que nunca pensei em escrever um livro, que era um objectivo que não estava nos meus planos, e que foi graças a estas pessoas ao meu lado que esse livro hoje existe e é uma realidade palpável. Eu sei, eu sei que vai ser uma coisa que vai suscitar muita polémica, mas eu tinha que o fazer, tinha que dizer a minha verdade, contar o meu lado da história. E, estou em posição de vos garantir, toda essa verdade de que vos falo no livro é verdadeira. Resolvi dar a cara porque acho que o passado não pode ser construído apenas sobre a verdade de alguns, para mais quando essa ou essas verdades são mentiras e fogem à verdade. Bom... não quero maçar-vos mais, acho que tudo aquilo que quererão saber se encontra respondido no livro, resta-me convidar-vos à sua leitura. Espero que gostem. Muito obrigada a todos pelo apoio.» Tendo falado num tom cálido e sentido, Etelvina pareceu ter chegado ao coração dos presentes que, uma vez mais – e já parecia estar-se num concurso televisivo –, brindaram a sala com uma ovação; desta vez mais breve, pois todos estavam com uma grande fome e ávidos de se atirarem às mesas. Foi o que aconteceu, saltando fila para os mariscos e uma outra para a zona da picanha, do peitinho e salcichinha brasileira. Escusado será dizer que os jornalistas foram os primeiros a tomar dianteira, deixando para o final as entrevistas à autora. O que esta achou bem, uma vez que temia os ditos profissionais, sendo que, a enfrentá-los, preferia fazê-lo já com uns copitos vertidos, tanto mais que a escolha vinícola prometia, «Pêra Manca», vendo-se que a editora não olhara a preços para que tudo corresse de feição. Não restavam dúvidas, o director editorial tinha aprendido alguma coisa em matéria de news management. O termo era novo no meio editorial nacional, mas fora recentemente introduzido por via de um jornalista-escritor, assim tipo Dan Brown, que em certa ocasião se mostrara reticente quanto aos métodos de promoção levados a cabo pelas editoras nacionais, segundo ele, errados, pois o mais que bastava era dar uma festança com comes e bebes para assim, e só assim, conseguir arrancar das redacções os tolos dos jornalistas. De outro modo não havia maneira, e os livros corriam o risco de morrerem à nascença. Não, dizia ele, o dito jornalista-escritor, mas jornalista de TV, «lá fora é que sabem, garanto-vos porque eu já lá estive e sei como é!». Certo ou errado, a verdade é que o lançamento da senhora Etelvina, havido em moldes que tais, portanto, internacionais, fora um sucesso. Todos, por conseguinte, tinham motivos e razões de sobra para estarem contentes e agora a encherem os estômagos com sincero e basto apetite. Os jornalistas primeiro que todos, claro.
Coisa diplomática, visita de Estado e outras pressas ministeriais. Interesses superiores, Etelvina e os capangas. Aperitivos, drinks e jet set. Uma sessão que foi um sucesso, apesar da inexperiência da autora que em tempos imitara Whitney Houston.
Seis, sete quilómetros, por aí terá ficado a distância percorrida pela caravana editorial que naquela manhã deixara o escritório com grande estrépito de rodas comendo o asfalto. Batedores da GNR à frente e outros atrás, lá conseguiu o BMW atravessar o trânsito citadino e chegar a tempo e horas à recepção agendada para os convidados ilustres no Grande Hotel da capital. Parecia coisa diplomática, visita de Estado ou então as habituais pressas ministeriais, sempre a grande velocidade, mais do que a permitida por lei, justificada, claro está, pelas superiores razões de Estado, que a tudo servem, está de ver, quando necessário. E pelas ruas por onde passaram sempre a mesma indignação dos automobilistas, obrigados a parar para ceder passagem à comitiva. Os impropérios foram de índole diversa, não convém aqui reproduzi-los de modo a não tornar a escrita ou a leitura desagradáveis. Curiosamente, houve também alguns transeuntes que à passagem dos motociclistas e do BMW acenavam para os mesmos, provavelmente pensando que no seu interior era alguma figura de Estado estrangeira que se encontrasse de visita ao país. Tão eufórico e fora de si com tudo isto estava o director editorial que, às tantas, não resistiu mesmo, abrindo uma janela e com o braço de fora lá foi retribuindo acenos aqui e acolá. Parecia agora um candidato político em campanha e não fosse a senhora Etelvina ter-se queixado do vento excessivo que lhe perigava o penteado e ele teria continuado naquela «festa eleitoral» até final do percurso.
Tinham enfim chegado. O director editorial estava feliz, os horários cumpriam-se com pontualidade britânica graças à batida policial. Haveria, de resto, e oportunamente, de agradecer em pessoa ao comissário Lemos Matoso a disponibilidade própria e do seu pessoal para atendimento deste caso, sabendo, no imediato, intuir-lhe e reconhecer-lhe o seu interesse superior. Ao lado do director editorial, durante todo o percurso, a senhora Etelvina sempre de óculos escuros, agora nisso como que se solidarizando com os seus dois «capangas» que seguiam também no carro, um à frente e outro no banco de trás.
Quando todos deixaram o carro, foi, desta feita, a vez do pessoal do hotel se prontificar para lhes fazer escolta até ao átrio de entrada, onde já se encontravam dois ou três convidados mais madrugadores. Vendo a distinta comitiva, os turistas que por ali também se encontravam por mera casualidade, preparando-se para o pequeno-almoço ou para uma passeata a pé pela cidade, muito se admiraram com o que aos seus olhos se deparava. Um deles, um inglês ruivo e de ar leitoso, mais curioso, não fosse estar ali a cruzar-se com uma alta individualidade do país anfitrião, chegou-se ao pé de uma assessora de Imprensa e diz-lhe: «Who are they? The prime-minister’s wife?» Ao que ela, sorrindo: «Oh, no, no, much more important than that, a writer» (ficando na dúvida se deveria ter antes dito novelist). E acrescentou: «In fact, our prime-minister is not married.» «Oh», volveu o inglês, tendo certamente ficado a pensar que nem na sua Inglaterra se tratavam tão bem os escritores. E mais disse, pondo-se a andar para o sol exterior, ainda relanceando de novo o aparato da cena voltando a cara para trás: «Must be a very important one, who knows may be the next Saramago...» O director editorial nada disto ouviu, mas provavelmente teria gostado de o ouvir...
Beijinho para cá, beijinho para lá, muitas felicitações e os parabéns da praxe, a senhora Etelvina, já sem óculos, tentava agora, uma vez mais, descontrair. Um a um, o director editorial ia-a apresentando, orgulhoso, aos diversos convidados que iam chegando. «A nossa autora», dizia ele, aos que os outros e a senhora Etelvina sorriam com algum desconforto, apertando as mãos, no caso dos homens, beijando as faces no caso feminino. A todos os que iam chegando, num dos lados do salão de entrada do hotel, uma menina de farda vermelha e sorriso Pepsodent oferecia um exemplar do «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal». E todos, à vez, contentes com o seu exemplar se dirigiam agora para uma das suas portas do elevador onde um impecável ascensorista as aguardava para subirem até ao último andar do edifício, onde, no restaurante panorâmico, teria lugar o lançamento do livro propriamente dito. Em baixo, e como o tempo avançasse, também o director editorial, o editor e a autora se dirigiram prestes a um dos elevadores. Para trás, ficavam agora apenas a menina da banca de livros improvisada, e duas assessoras de Imprensas encarregues de receber os senhores e senhoras jornalistas, assim fossem chegando, aos quais entregariam um dossier de Imprensa. O livro, esse, teriam, posteriormente, de pedi-lo para os escritórios, assim o desejassem, pois aqueles exemplares que tinham trazido destinavam-se a oferta aos convidados.
No topo do edifício, com a luz alfacinha a trespassar as enormes e largas vidraças, inundando todo o ambiente, encontravam-se agora convidados e jornalistas em suficiência para que pudesse dar início à sessão. Antes disso, e enquanto empregados do hotel, serviam, de cá para lá, e de lá para a cozinha e regresso, uns aperitivos e uns drinks, conversava-se animadamente, uns de livro aberto, outros de olho nos acepipes, outros ainda, sobretudo esses malandros dos jornalistas, de olho na mesa dos mariscos. Junto à autora e ao director editorial, uma figura do jet set, aí dos seus sessenta bem entrados e plasticamente mantida em forma para a fotografia, referia, com ares doutos de crítica literária: «Querida, está óptimo, você nem imagina o prazer que eu tive ao ler o seu livro. Hummm..., a sério, mais emoção mesmo só nos livros da Susanna Tamaro e do outro... ai, como é que se chama?... aquele, ajude-me, ai... e eu que gosto tanto dele, o... o...» «Coelho? Paulo Coelho», ajuda-a a autora, mostrando assim os seus vastos conhecimentos literários e a abrangência das suas leituras. «O Paulo, sim!», responde-lhe a outra, tratando o escritor brasileiro como se o conhecesse lá de casa. E continuava, agora para o director editorial: «Parabéns pela aposta ganha. Acho maravilhoso dar voz a pessoas aqui como a senhora Etelvina, pessoas com algo de verdadeiramente interessante a dizer, pessoas que o meio editorial sempre calou afastando-se da realidade. Sim, porque eu acho que a literatura portuguesa já merecia autores assim. Parabéns, muitos parabéns querido.» E foi-se dali com o seu sorriso sempre ligado, como se se tivesse engasgado e estivesse aflita, de olhos esbugalhados.
O director editorial, também ele, parecia ter aprendido rápido com aquela gente da socialite lusa, que por tudo e por nada distribuía sorrisos e dizia, sem ter porquê a respeito do que fosse, «acho óptimo, óptimo, óptimo.» Apertos de mão, abraços à companheiro comuna aos mais próximos, o homem estava feliz, verdade se diga, e verdade se diga como havia muitos anos não o viam aqueles que com ele privavam diariamente. Aquilo, quanto a mim, que o conheci como poucos – tanto mais que foi com ele que trabalhei desde que vim para este país defender a dama da literatura –, não era apenas um caso de deslumbre editorial ante a possibilidade de ter agarrado em mãos um best-seller. Não, a coisa parecia-me, sinceramente, bem mais grave, coisa talvez mesmo a merecer visita a psicólogo ou a psiquiatra – sim, não espantem, pois não estão hoje tão na moda estes profissionais médicos, a quem quase já não existe quem não recorra por dá cá aquela palha! Pois a mim, parecia-me caso digno disso, era, claramente, uma patologia a merecer moldura clínica.
E agora que penso nisso, recrimino-me por não o ter notado mais cedo. Sim, logo quando, há cerca de um ano, o director editorial resolvera começar a frequentar um curso para reciclagem editorial à luz dos novos mercados, uma coisa que lhe chegou ao conhecimento por correio simples, num prospecto banal onde se convidavam os profissionais da área a frequentarem cursos diversos. Se a princípio achei por bem que o fizesse, até porque se encaminhava a passos largos para os sessenta anos, e pôr-se a par de novidades do mundo editorial parecia-me uma maneira acertada de não perder passo face aos últimos avanços na matéria, mais tarde, quando começou a frequentar feiras do livro «alternativas» e a comprar direitos sobre livros «duvidosos», de cariz esotérico e outros, aí, bem aí, eu devia ter-me apercebido de que alguma coisa dentro daquela cabeça não corria bem. Agora, agora parece tarde de mais; aquele brilho no olhar já não é o mesmo, já não lhe denoto o gozo literário que antes expressava e de que se orgulhava como poucos, mas antes um brilho que reluz como o raio de sol batendo no ouro dos cifrões, ou, para sermos mais contemporâneos, no brilho dos euros.
Embora com uma pequena décalage em relação aos horários estabelecidos, a sessão teve, enfim, começo. Na mesa, ao centro, o director editorial, a seu lado, a autora, do outro lado, o editor. À sua frente, um vasto auditório, agora muito bem composto, caras conhecidas, boa apresentação, e também os jornalistas, menos compostos, é certo, como é da classe, todos petiscando de copo na mão, agora fazendo silêncio para as palavras que o director editorial se preparava para dizer dando a sessão por aberta. Chamando a si as atenções, os microfones e os holofotes das televisões presentes, o director editorial, na primeira pessoa: «Meus amigos, senhoras e senhores, ilustres convidados, senhores jornalistas, começo estas breves palavras de apresentação do livro «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal», por agradecer, em primeiro lugar, e naturalmente, à autora. Agradecer o ter-nos escolhido para ser a sua editora, a sua casa editorial (querendo com isto dizer que é, doravante, como se em sua casa que entre nós queremos que se sinta), agradecer a sua disponibilidade demonstrada ao longo de todo o processo de preparação da obra e, sobretudo, a sua confiança nos nossos profissionais, desde o senhor editor aqui ao nosso lado, cuja presença e trabalho desenvolvido aproveito igualmente para felicitar, até aos designers que pensaram a capa, passando por todas as outras pessoas que, de uma forma ou de outra, se empenharam para que este livro viesse hoje a estar aqui, nas nossas mãos, pronto para chegar ao público, afinal de contas, razão última, e primeira, do nosso trabalho, do nosso existir. Etelvina Prazeres, como todos saberão, é uma mulher de armas – e não querendo, desde já, desvendar os segredos do livro, tirando-vos o prazer da leitura, posso, no entanto, dizer que passagens há que ilustram cabalmente isto que acabo de dizer. E, por conseguinte, Etelvina Prazeres não teme. Não teme pôr a verdade preto no branco, não teme dar a cara por esta sua verdade de cristal. Verdade de Cristal porquê? Porque se trata de uma verdade, a sua, que sendo cristalina também se revela capaz de quebrar com muitas outras verdades falsamente instaladas. Creio que para além disso, para além desses aspectos, mais ligados à vida do futebol nacional, nomeadamente aos momentos vividos com o senhor presidente de um conhecido clube nortenho que todos conhecem, este livro colhe, repito, este livro colhe igualmente por via da sua faceta sensível, por encobrir, descobrindo, nas entrelinhas do texto um outro cristal, um cristal que não é senão a personalidade simultaneamente dura e frágil de Etelvina Prazeres. Uma vida, em breves palavras, arrancada a pulso e com muito jogo de cintura, uma vida galgada degrau a degrau, amparando golpes sobre golpes, daqueles que a invejavam pelo modo como, subindo, conseguia manter a sua aura de integridade. Creio que a prova maior dessa sua inteligência na escalada da vida é o modo despretensioso como se revela neste livro, nesta obra que é a sua vida, a sua experiência, a sua cara. Espero que todos vós, tal como eu experimentei, sintam o mesmo prazer na sua leitura. À nossa nova autora, uma vez mais, o nosso obrigado».
Tendo-se contido, o discurso não durou muito mais de dez minutos. Os flashes dos repórteres fotográficos encheram a sala, tentando captar as reacções dos oradores e dos Vips presentes na sala, que, com grande probabilidade, fariam as capas das próximas edições das revistas cor-de-rosa. O auditório pareceu ter gostado do que ouviu e retribuiu com um caloroso aplauso. Do meio das palmas, ouviu-se mesmo um forte assobio e alguém que gritava bem alto «Etelvina, Etelvina, Etelvina...» O director editorial, com os braços esticados para diante pedindo de novo silêncio na sala, passou de imediato a palavra ao editor. Que disse, dizendo que o seu director editorial já praticamente tudo dissera: «Bom dia a todos... Eu queria apenas também agradecer à Etelvina a oportunidade profissional que me concedeu ao trabalhar comigo na realização deste trabalho. Creio que o resultado está à vista e é uma obra que honra o percurso de ambos. Devo, contudo, dizer que a maior parte do mérito pertence-lhe a ela, já que eu me limitei a sugerir este ou aquele enquadramento temático, este ou aquele prisma de apreciação, este ou aquele estilo de escrita. Etelvina, muitos parabéns!» Um novo aplauso entusiástico percorreu a sala, momento que os jornalistas aproveitaram para lançarem novo punhado de cajus e amendoins à boca. E nesse ínterim, de novo uma forte assobiadela e de novo o nome da autora ressoando entre as palmas: «Etelvina, Etelvina, Etelvina!!!» Novamente, o director editorial teve de intervir, desta feita, levantando-se mesmo e pedindo silêncio à audiência. Teria a palavra a autora, fizesse favor, o microfone era todo seu.
Com o micro à frente da cara, Etelvina mostrou-se à-vontade com o objecto. Quis mesmo segurá-lo com as mãos, aproximou a boca demasiado e o som das primeiras palavras soou algo distorcido. Dando-lhe uma dica em voz baixa, o director editorial explicou que não era necessário segurar o microfone e que poderia falar sem dele se aproximar em demasia. Etelvina sorriu e lá disse: «Peço perdão, não estou habituada a este tipo de objectos, a única vez que peguei num microfone foi quando servia à mesa e o dono do bar me pediu que subisse a palco para fazer uma imitação da Whitney Houston, que é uma cantora que eu adoro... E... e... prontos... eu peço desculpa, mas tudo isto é novo para mim... enfim... acho que o que vos queria dizer, para além de agradecer a vossa presença e o vosso apoio, é que estou muito contente, muito feliz mesmo com este livro, que considero um passo em frente na minha vida. Devo dizer que nunca pensei em escrever um livro, que era um objectivo que não estava nos meus planos, e que foi graças a estas pessoas ao meu lado que esse livro hoje existe e é uma realidade palpável. Eu sei, eu sei que vai ser uma coisa que vai suscitar muita polémica, mas eu tinha que o fazer, tinha que dizer a minha verdade, contar o meu lado da história. E, estou em posição de vos garantir, toda essa verdade de que vos falo no livro é verdadeira. Resolvi dar a cara porque acho que o passado não pode ser construído apenas sobre a verdade de alguns, para mais quando essa ou essas verdades são mentiras e fogem à verdade. Bom... não quero maçar-vos mais, acho que tudo aquilo que quererão saber se encontra respondido no livro, resta-me convidar-vos à sua leitura. Espero que gostem. Muito obrigada a todos pelo apoio.» Tendo falado num tom cálido e sentido, Etelvina pareceu ter chegado ao coração dos presentes que, uma vez mais – e já parecia estar-se num concurso televisivo –, brindaram a sala com uma ovação; desta vez mais breve, pois todos estavam com uma grande fome e ávidos de se atirarem às mesas. Foi o que aconteceu, saltando fila para os mariscos e uma outra para a zona da picanha, do peitinho e salcichinha brasileira. Escusado será dizer que os jornalistas foram os primeiros a tomar dianteira, deixando para o final as entrevistas à autora. O que esta achou bem, uma vez que temia os ditos profissionais, sendo que, a enfrentá-los, preferia fazê-lo já com uns copitos vertidos, tanto mais que a escolha vinícola prometia, «Pêra Manca», vendo-se que a editora não olhara a preços para que tudo corresse de feição. Não restavam dúvidas, o director editorial tinha aprendido alguma coisa em matéria de news management. O termo era novo no meio editorial nacional, mas fora recentemente introduzido por via de um jornalista-escritor, assim tipo Dan Brown, que em certa ocasião se mostrara reticente quanto aos métodos de promoção levados a cabo pelas editoras nacionais, segundo ele, errados, pois o mais que bastava era dar uma festança com comes e bebes para assim, e só assim, conseguir arrancar das redacções os tolos dos jornalistas. De outro modo não havia maneira, e os livros corriam o risco de morrerem à nascença. Não, dizia ele, o dito jornalista-escritor, mas jornalista de TV, «lá fora é que sabem, garanto-vos porque eu já lá estive e sei como é!». Certo ou errado, a verdade é que o lançamento da senhora Etelvina, havido em moldes que tais, portanto, internacionais, fora um sucesso. Todos, por conseguinte, tinham motivos e razões de sobra para estarem contentes e agora a encherem os estômagos com sincero e basto apetite. Os jornalistas primeiro que todos, claro.
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