sexta-feira, 30 de novembro de 2007

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Um livro lixado! Capítulo VII

VII.

Um Pêra Manca que desapareceu até à última gota. Coisas antigas, do Menano e da Severa. Alegria, alegria pura, e Dona Paula berrando ais e aflitos para grande espanto do director editorial.



É quase verdade, mas apenas quase verdade que o director editorial editorial passa este livro inteiro contente. E razões para tanto tinha-as de sobra, como vimos relatando e do relato se vai inferindo. Os horários tinham-se cumprido, os convidados não tinham faltado à chamada, os jornalistas responderam com a sua presença ao isco dos comes e bebes, Etelvina Prazeres não se tinha mostrado mal de todo na sua comunicação, ele próprio gostara assaz do seu discurso introdutório, a cena do Bigodes tinha funcionado, o almoço estava um pitéu, tal como o Pêra Manca que desapareceu das garrafas até à última gota. Porém, cedo se verá que esse seu estado de felicidade não durou para sempre.
Eram quase três da tarde quando Etelvina Prazeres e o director editorial, sempre seguido de perto pelo editor, saíram do Grande Hotel. Lisboa derretia ainda sob um sol inclemente e impiedoso, mais parecendo que se estava em Marrocos. Devidamente escoltada pelos capangas, a feliz autora despediu-se do seu director editorial e do seu editor e entrou no seu BMW, pois que tinha agora de descansar após um tão grande esforço matinal, que, soubessem, era coisa a que não estava muito habituada, o levantar-se cedo, pois, na verdade, estava muito mais habituada a viver a noite que o dia. Desculpassem, sim? Beijando-a nas faces, é claro que os dois desculparam e lhe disseram até à próxima, passe bem, nós vamo-la pondo ao corrente das vendas e contamos consigo para as próximas sessões de divulgação. Depois do BMW arrancar, de novo em grande aceleração, os dois homens dirigiram-se para o carro da relações públicas que os aguardava, pronta a seguirem para a editora.
Assim fizeram. E pouco tinham andado quando, passando pela zona da baixa da cidade, olhando o director editorial pela janela teve uma estranha sensação. Foi assim como se se tivesse assustado com alguma coisa, dando mesmo um leve salto na cadeira, endireitando as costas e abrindo os olhos mecanicamente. Vinham a descer a Rua do Ouro quando, olhando para a sua direita, na rua onde desemboca a estação de Metro da Baixa-Chiado, julgou ver um cavaleiro por entre as muitas pessoas que ali se cruzavam. Como a relações públicas guiava um pouco depressa e o semáforo se tinha posto verde, o director editorial ficou meio na dúvida sobre se efectivamente vira o que julgara ter visto. Ainda olhou para trás, perguntou ao editor se também tinha visto o mesmo, mas aquele... nada! «Cavaleiro? Qual Cavaleiro, director editorial? Não, não vi nada, vai ver foi só uma sugestão de tanto olhar para as nossas capas, isto é, para a capa do livro da Etelvina.» O director editorial concordou. Coçou a testa, estalou a língua e voltou-se para a frente, dizendo: «É, só pode ter sido uma alucinação, não foi uma manhã fácil. Um cavaleiro na Baixa, um Dom Quixote no Rossio, imagine-se, só mesmo eu, mas haveria de ter a sua graça, lá isso haveria...»
O percurso todo de volta até à editora levou-o o director editorial a cantarolar uns fados de que gostava, assim numa espécie de mix, misturando umas coisas antigas, do Menano e da Severa, com outras mais recentes, sobretudo algumas canções cantadas pelo Camané. Da Mariza não, que não gostava da pose encenada da figura, para além de que já não suportava vê-la no programa do Herman, e se era para ouvir cantar bem, bom, então que, nesse caso, preferia a Cristina Branco. «Na rua da solidão,/ Sem alegrias nem dores,/ Habita o meu coração/ À espera dos seus amores./ Meus amores onde estão?/ Uns partiram sem querer,/ Andam perdidos alguns,/ Outros são meus sem os ter/ Como se fossem nenhuns./ Quando e como os posso ver?/ Há castelos, há inimigos,/ Que não os deixam passar,/ Mas sei que não temem perigos/ E sei que me ouvem chamar./ Quero meus os seus castigos!/ Da rua da solidão,/ Onde o sol mal chega às flores,/ Parte, vai, meu coração,/ Em busca dos teus amores./ Meus amores vencerão.» E foi nisto uns bons quilómetros, mudando depois para uma quadra simples em honra da Severa, que já não sabia dizer quem a cantara originalmente: «O fado nasceu/ Num dia de Primavera/ Teve por berço a guitarra/ Por madrinha a Severa.»
Alegria, alegria pura, tanta que o próprio editor e a prestimosa e sorridente relações públicas se entreolharam como que ambos se perguntando se não haveria ali qualquer coisa a mais que falhava. Teria perdido um parafuso? Endoidecido? É bem certo que com o furo que era o livro de Etelvina as coisas, na empresa, muito possivelmente passariam a correr melhor. O livro vender-se-ia aos milhares, nisso todos acreditavam, e podia bem ser que ali estivesse o filão de que a editora necessitava para inverter um rumo de queda na evolução dos gráficos de vendas. Os últimos meses, todos o sabiam, não tinham sido nada fáceis e o futuro não se mostrava prometedor se a empresa continuasse apenas a insistir nos seus autores de sempre, sim, nos seus velhos autores, porque não dizê-lo abertamente?, nesses autores que escreviam muito bem, ninguém duvidava ou isso punha em causa, mas cujos livros, e a realidade contabilística nisso era muito crua, não havia maneira de se venderem, de interessarem ao público. De modo que apostar no livro de Etelvina, apesar de ter sido uma decisão controversa e difícil, ambos concediam, tal como os demais colegas de trabalho na editora, que era um passo não só acertado como necessário à sobrevivência de todos. Para mais, era só um livro! Que mal poderia vir daí ao mundo? A única coisa a que torciam olho, no entanto, era aquele comportamento do seu director editorial que, apesar de justificados motivos, lhes parecia algo excessivo... mas enfim, podia ser que lhe passasse...
Se o editor e a relações públicas se punham nestas dúvidas enquanto não chegavam à empresa e ouviam o seu director editorial numa quase desgarrada fadista, com mais razões de preocupação ficaram logo após terem dado por concluída a viagem. Chegados ao jardim da vivenda, estacionando no local onde estivera parado o BMW, mal saem do carro salta-lhes ao caminho, descendo as escadas a correr, a Dona Paula, berrando ais e aflitos, senhor director editorial para cá, senhor editor nem queira saber para lá, senhor director editorial, ai, o que vai ser de nós... «Mas o que vem a ser isto, P’ala? Acalme-se, mulher, acalme-se, vamos para dentro e conte-me tudo com calma!», diz-lhe o director editorial, pegando-lhe num braço e encaminhando-a para dentro da vivenda. Aos poucos, todos os funcionários da casa foram regressando da sessão de lançamento, e chegando à empresa bem dispostos e confiantes no futuro, logo, logo, ouvindo as lamúrias e desconsolos da Dona Paula, se punham de pulga atrás da orelha, estranhando o que se passava. Pois não era aquele um dia em que haviam todos de estar contentes? Só se compreendia se tivesse falecido um familiar à pobrezinha, aventou como hipótese alguém. Mas também, quem é que haveria de ter o mau gosto de se ir desta vida para a outra logo num dia como aquele, provavelmente o dia mais importante da história da editora?...

2 comentários:

Anónimo disse...

desculpe a correcção: na segunda frase, repete a palavra "editorial"

saudações cordiais.

Anónimo disse...

desculpe, mas na segunda frase do segundo parágrafo também repete "editorial". se por acaso é intencional, lamento os meus comentários. cumprimentos.