segunda-feira, 26 de novembro de 2007

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - ou Está bem escrito mas... Capítulo III


III.

Uma decisão a 180 graus. Ó Senhor Dom Quixote, olhe que se constipa. Um trânsito infernal, Amadeo de relance, um bilhete por pagar, apitos enervantes e duas caras que mais pareciam
de críticos de arte.



E foi então que tomei mais uma decisão, uma outra decisão que novamente iria fazer com que minha vida desse uma volta de 360 graus... Bem, 360 não, porque assim voltaria ao mesmo ponto de partida... eh... 180, pronto, 180 graus. Em suma, decidi partir. Que um homem que não parte fica, e um homem que fica é um homem que se resigna! – disse ainda para o Rocinante que anuiu com a cabeça em forma de aprovação. E fui-me dali, daquela casa onde permaneci durante quase duas décadas, assistindo a um trabalho digno, exigente, válido, louvável, pois que tantos bons escritores e tantos belos livros dera ao burgo literário lusitano.
Tantos livros, tantas capas, tantas páginas, tantas palavras, tantas histórias, tantos poemas, tanta vida vivida assistindo ao parto de cada uma daquelas obras de que agora me preparava para despedir, ali no gabinete do director editorial, onde eu, no cimo de uma prateleira, me encontrava e me achava como se em casa. Mas, não, disse não, resolvi insurgir-me contra a imoralidade editorial que alastrava como febre pelo país. Afinal eu era Quixote e Quixote jamais poderia compactuar com este estado de coisas. E não, não fossem dizer que era o ar dos tempos, a inevitabilidade no rumo do negócio, que ou seria desse modo ou não seria, que era a única forma de inverter um rumo de queda, que a editora precisava de se adaptar aos tempos difíceis, que precisavam de títulos assim, de obras que dessem lucro, lucro, lucro. Podiam dizer o que quisessem, não podiam era aviltar a minha imagem apondo-me a efígie, de mim e do meu fiel Rocinante, num destes objectos em forma e com aparência de livro, mas que, na verdade, mais não são do que reles afrontas ao livro enquanto objecto.
Não, aquilo era um negócio, uma mera negociata com vista à obtenção de lucros fáceis... e sim, agora entendo o que dizia o director editorial quando a «autora» Etelvina lhe perguntava se estava tudo tratado com o tal adepto das bigodes, que só podia ser o famoso Bigodes... Que o livro fosse um negócio, sim, sem objecções, mas um negócio de paixões, de afectos, de amor ao livro e à literatura. Ora, eu, eu enquanto personagem maior da literatura mundial não poderia ficar ali, alinhando com aquela perversão do conceito de livro, ainda por cima emprestando a minha imagem a uma «coisa» que me recusava a chamar livro. Não, gente de bem, não chamaria livro a uma coisa tão abjecta e repugnante. Rocinante, vamo-nos daqui para outras empreitadas, vamo-nos para outras demandas, que aqui já não nos merecem. Bem dito, melhor feito. Levantei-me de um pulo, como se animado de novo fôlego, e, com a ajuda de uma das prateleiras da estante, saltei para a garupa do Rocinante. Também ao meu fiel companheiro pareceu agradar-lhe esta minha súbita decisão. Nada que eu não esperasse de um alazão destes, também ele pouco dado ao imobilismo e aos ares de um gabinete que padecia de arejamento o quanto antes. Ali por mais umas horas, naquele ar conspurcado pelo cheiro a tinta do livro da senhora Etelvina, e um homem e um alazão eram capazes de desfalecer!
Ajeitei o elmo na cabeça, peguei no escudo e na lança, esporeei ao de leve a barriga do Rocinante e investi de rompante contra a porta, dando-lhe uma estocada que a rebentou para grande susto da Dona Paula que, coitada, aproveitava a ausência do patrão para fazer uns telefonemas às amigas. A pobre senhora nem tentou impedir-me, tão assustada estava ao levar com a minha figura pela frente. O mais que disse, depois de se recompor ligeiramente, foi qualquer coisa do género: «Ó senhor Dom Quixote, então isso é coisa que se faça, pregar-me assim um susto desses? Olhe que isso não se faz, olhe que a filha de uma vizinha minha, outro dia, até tinha acabado de sair de minha casa, e quando pôs o pé na rua, veio um palerma numa mota e passou-lhe a um centímetro dos pés, o senhor Dom Quixote nem queira acreditar. Até hoje está que parece uma tontinha! Ai, mas onde é que o senhor vai assim vestido, de elmo e tudo com este calor? O senhor Dom Quixote olhe que se constipa...»
Deixei-a a falar, melhor, a matraquear sozinha e fiz-me ao caminho. Quer dizer, à estrada... e que estrada! A avenida onde se encontrava sediada a editora estava completamente engarrafada, ao que pude perceber, vendo ao longe as luzes de uma ambulância, devido a um acidente qualquer. Foi pois, com grande dificuldade e também habilidade, que avançámos, eu e o meu fiel Rocinante, por entre os carros parados, entre queixas e insultos, pois que, diziam, não era a melhor altura para fazer campanhas publicitárias e que não sei que não sei que mais, até mesmo que eu devia ser preso por estar a usar um animal para propósitos comerciais! Propósitos comerciais, eu? Essa não me entrava nem à lei da bala e logo dei ao meu fiel Rocinante permissão para que na roda dianteira do dito automobilista imprecador se aliviasse ele de quantos líquidos na bexiga tivesse. Assim o fez e o que vos digo é que o coitado devia estar aflito há muito tempo.
A progressão, porém, no meio daquele caos e com o asfalto quente e escorregadio não era fácil, nada fácil, perigoso mesmo, tendo eu por diversas vezes chegado a pensar que ia ao chão. Não aconteceu e lá nos aguentámos, subindo a avenida até uma rotunda próxima. A princípio não sabia para onde me dirigir. Sabia apenas que queria ir-me dali e encontrar um lugar calmo onde pudesse assentar ideias e pensar no que iria fazer de futuro. É como vos disse, passei despercebido por entre os muitos automobilistas e transeuntes apenas porque todos pensavam que eu não passava de mais uma daquelas campanhas publicitárias modernas, em que se faz tudo e mais alguma coisa para chamar a atenção das pessoas. Tipo pôr meninas descascadas a oferecer laranjadas ou coisa que o valha. Pois aqui todos pensaram que haveria de ser mais uma lança espanhola a entrar no mercado português, desta feita, uma coisa metaforizada por via da minha figura. «Olha, olha, lá vem o Dom Quixote a invadir Portugal», «Ó bacano, o que é que tienes para oferecer-me, chico?», «Ouve lá, ó espanhol, sai da frente, deves pensar qu’isto já é tudo teu, não?», «Ó arreda, coño de mierda, vai prá tua terra»... Foram apenas algumas preciosidades linguísticas que ouvi, para não vos maçar mais os ouvidos com a terminologia automobilística lusitana.
Mas de tráfego ainda eu não tinha visto nada, que não havia de me conseguir pôr dali para fora tão cedo quanto desejava. Um inferno, aquele trânsito que tive o azar de encontrar e mais ainda no qual tive a desdita de em enredar. Digo bem, enredar, já que aquilo era pior que um teia de aranha. Pois eu queria seguir a direito e já o trânsito me levava por outra direcção, pois eu queria então sair noutra rua e logo uma fila de carros me levava para outro lado, e assim consecutivamente que creio bem para percorrer uns quinhentos metros estive naquele frenesim cerca de uma hora e picos. O pior é que eu já nem sabia onde estava. Como havia tantos anos não saía da editora já não conhecia o mapa da cidade. Melhor, conhecia algumas coisas, tinha uns certos pontos de referência, um ou outro edifício que se mantinham – bem certo, agora lado a lado com novos prédios em betão e vidro –, um ou outro jardim, uma estátua aqui, outra acolá, mas a verdade é que me perdi com tanta rotunda encontrei pela frente. Juro-vos que por momentos cheguei a pensar que todo o país estivesse agora transformado numa gigantesca rotunda! Não havia dúvidas, a ver pela amostra da capital, a febre das rotundas apanhara todos os autarcas e não admirava que o trânsito e os automobilistas entrassem em parafuso. Os automobilistas e os editores, pelos vistos, disse para comigo voltando a relembrar-me do porquê da minha fuga.
Com muito esforço e suor, que o sol forte a bater-me na chapa da armadura e do elmo mais instilava no meu corpo, cheguei por fim a local que reconheci por se manter praticamente inalterado no seu contexto físico. O trânsito tinha-me atirado – é este o termo – para uma rua ao fundo da qual divisei uns amplos e frondosos jardins. Sim, só podia ser a Gulbenkian, era certamente a Gulbenkian. Foi para lá que a galope me dirigi com o meu fiel Rocinante. Farto que estava de ter tanta gente em polvorosa à minha volta, apaziguou-me a ideia de aí poder vir a descansar alguns momentos, antes de decidir que rumo dar à vida. Porém, qual não foi o meu espanto quando, aí chegado, dei de elmo, ou de caras, com uma pequena multidão que à entrada da fundação se aglomerava com um prospecto na mão. Já a trote e depois a passo, aproximei-me, e uma vez mais poucos foram aqueles que me ligaram por aí além. Só um ou outro aproveitaram para tirar umas fotografias, que não pude impedir, ainda por mais que deteste aparecer nelas, pois acho-me sempre muito magro e isso enerva-me, tanto mais que nunca percebi porque não engordava já que comia como se fosse um rei ou ministro.
Mas logo, logo percebi ao que ali estavam. Entusiasmava-os um tal de Amadeo, que, ao que percebi, era pintor e ali via a sua obra exposta numa grande retrospectiva. Perguntei a uma das pessoas que ali estavam se o homem pintava coisa de jeito, coisa que se visse, assim uma bonecada de jeito, como o Dalí ou o Picasso, os pintores espanhóis, se conhecia?... O homem olhou-me com desdém e quase indignação dizendo apenas, «santa ignorância»! Passei adiante, que ali não haveria de colher grandes ensinamentos. Dirigi-me antes para as traseiras da fundação, para os jardins onde me recordava existir um belo lago com patinhos e cisnes. Com sorte ainda ali estava e nada mais a calhar uma vez que o Rocinante se encontrava sequioso. Estava o meu bravo alazão a matar a desmedida sede quando se aproxima um guarda, fato cinzento, óculos escuros, crachá ao peito (dizendo: Silva Cardo – Segurança) e walkie-talkie na mão a fazer zumbido. Como o homem viesse por trás do Rocinante, e ouvindo este o dito zumbido, pensa tratar-se de varejeira que se lhe aproximasse do lombo e zás, nem o pensa duas vezes, alça a pata direita e tunga, coice no desgraçado guarda que só tem tempo para mandar um grito, mais parecendo um pavão. Sorte a dele, que a patada o apanha de raspão, ainda assim não o livrando de tamanho susto que o leitor bem pode imaginar. Eu próprio suei as estopinhas quando lhe vi os cascos a lamberem a farda!
Quando tudo poderia ter acabado mal, com queixa e voz de prisão e essas coisas todas desagradáveis, sobretudo para um estrangeiro em Portugal, para mais sem papéis – por mais conhecido ou célebre que seja; pois que raio lhe haveria de interessar que eu fosse ou deixasse de ser o celebérrimo cavaleiro de la Mancha, provavelmente a personagem literária mais conhecida de todos os tempos e em todos os lugares... –, a verdade é que nem me posso queixar, já que o supracitado Silva Cardo, apesar dos seus apelidos pouco convidativos ao trato, se revelou um belo compincha. Que sim, que percebia que estava um calor danado, coisa como não se via ia para não sei quantos anos no país, e que já tinham morrido não sei quantos velhotes no Alentejo, alguns também até mesmo lá para cima, para o Norte, onde a chaga dos incêndios não havia modos de se combater, gado nem se fala, e que, de facto, os animais sofrem muito, têm uma sede danada e que coitadinho do bicho, que compreendia, efectivamente, mas que... tinha ordens! E ordens, amigo, disse ele, são para cumprir. «Pacta sunt servanta», rematou feliz a ver se eu sacava que tinha tido alguns estudos em leis e latim. «Ora, nem mais», disse-lhe eu, «e que ordens vêm a ser essas, amigo?...» (ensaboando-lhe o pêlo) «É muito simples, o senhor só tem de estacionar o animal no parqueamento!» Nem regateei, que com esta gente é melhor não pedir muito, sobretudo quando têm as tais «ordens» enfiadas na cabeça. «Vamos, alazão, a estacionar no parque, quem sabe é fresquinho e ao menos tens sombra!» O Rocinante anuiu, mas contrafeito, o que era compreensível já os parques eram para veículos motorizados e ele de motor só tinha quatro patas. A vida, porém, é feita destas surpresas e menor não tive quando cheguei à rampa do parque e me quiseram fazer pagar bilhete! Recusei-me e dei meia volta. Mas foi o início de mais um problema, pois atrás de mim estavam já dois carros em espera com condutores cujos rostos de amigáveis nada tinham, mas mesmo nada; dir-se-ia, não fossem os potentes carros, que eram críticos de arte. Apitadelas mais apitadelas, põe-se nervoso o Rocinante e sai-me dali a escoicinhar por tudo o que é lado, aferroando, posso assegurar, não menos que uma boa meia-dúzia de coices na chapa dos carros o que, naturalmente, mais enfureceu os seus ocupantes que já se aprestavam a sair do seu interior para ajuste de contas na base do corpo a corpo, e este, meus caros, não está nem estava para tanto. «Rocinante, ainda não há-de ser aqui que descansamos, força nesses cascos e vamo-nos daqui a galope enquanto é tempo.»

1 comentário:

Anónimo disse...

bom comeco