quinta-feira, 29 de novembro de 2007

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Eu até publicava isso, mas... Capítulo VI

VI.

Um assobio misterioso. Um tipo de bigodes e figura avantajada. Autores à escala real. Doutora Etelvina, devo dizer-lhe que não leio um livro desde a 1ª classe!... Um escritor deve ter cuidado.

Foi descuido, sim, confesso. Quem quiser que se queixe ao provedor dos leitores de livros... É verdade que há dois capítulos deixei a pairar na atmosfera uma ponta deste novelo narrativo que talvez tenha intrigado alguns dos leitores. Ou talvez não, mas seguramente aqueles mais atentos aos pormenores, também aqueles críticos que esquadrinham um texto ao pormenor tentando agarrar um descuido do escritor, alguma coisita a que se possam agarrar para deitar abaixo a sua obra. Mas, sinto muito, desta vez talvez não tenham sorte, porque recupero aqui e agora a tal ponta do novelo que deixei a pairar lá mais para trás. Exacto, exactamente, o tal assobio misterioso que se ouvia no salão do último piso do Grande Hotel enquanto decorria a sessão de lançamento do livro de Etelvina Prazeres. E o nome dela, da autora, sim, que também alguém gritava com voz forte e sonante.
Volto um pouco mais atrás ainda e peço ao leitor que se recorde da conversa inicial havia entre Etelvina Prazeres e o seu director editorial editorial, essa, essa mesma, a das oito e pouco, ainda bem cedo no escritório da casa editora. Entre dentes e a medo, recordar-se-ão que às tantas Etelvina Prazeres perguntou ao director editorial por um tal de Bigodes – que depois soubemos ser mesmo nome próprio, portanto a passar a grafar-se com maiúscula – e se a coisa estava tratada. Pois, recordar-se-ão também, e não será preciso interromper a leitura para voltar às páginas iniciais, que o director editorial tentou logo ali abafar e matar o assunto dizendo que sim, que a autora não se preocupasse, que estava tudo tratado, que mais não se falasse no assunto e que o livro havia de ser um sucesso, ele tinha a certeza e o mais que disse foi para ali enterrar «a coisa» de uma vez por todas.
O assobio, pois: no meio daqueles convidados todos bem vestidos, um silvo estridente a sair de entre as muitas cabeças presentes e a sobrepor-se ao barulho das palmas. Nesse instante, do primeiro assobio, só mesmo o conviva mais atento poderia ter reparado num rápido piscar de olho que o director editorial lançou, por trás das costas de Etelvina, ao editor, que lhe correspondeu com um ligeiro anuir de cabeça. Não fosse eu, modéstia à parte, narrador atento e também nele não teria reparado. Mas felizmente que reparei, podendo este dado agora transmitir-lhe, caro leitor, e permita-me que o interpele assim de forma tão directa. Pois como adivinhará, esse assobio partiu, nada mais nada menos, do tal Bigodes – frisamos, com maiúscula, pois assim é conhecido e tratado pelos da sua roda –, sendo também ele o autor dos chamamentos por Etelvina.
Ora, o Bigodes. Não uma personagem qualquer, desde logo se avance, antes uma peça a não descurar neste somatório de tantos sucessos havidos num só dia! Tantos que dariam para metade de um livro, acreditem. Era impossível, de resto, não reparar nele ou não tropeçar nele, melhor dizendo, tal o avantajamento de carnes da sua figura. Para mais, o dito fazia-se notar pela farta bigodeira – que a início lhe dera alcunha e, está de ver, mais tarde virara nome próprio –, e pelas vestes que trazia coladas ao corpinho. Vermelho! Todo ele era vermelho, de um vermelho garrido e vivo, assim a lembrar os equipamentos de um clube da capital, um clube com pergaminhos futebolísticos, com feitos históricos de monta, embora, é bem certo, alcançados há muitos anos, que de então para cá tem sido uma seca de títulos maior do que aquela que, em certo momento da história recente, calhara em sorte ao seu rival da mesma cidade, mas esse a trajar de verde.
A chegada do Bigodes ao hotel também não foi pacífica, tendo desde logo alertado os funcionários para a «peça». Chegado ao átrio de entrada, não fez mais nada, dirigiu-se a passos e braços largos e abertos para Etelvina. Quer dizer, para aquela que ele julgava ser a Etelvina, mas que era, afinal, apenas uma «sócia» da autora em cartão feito à escala real. Ou seja, uma coisa muito na moda nalgumas editoras que para promoverem os seus autores, pelo menos aqueles que são considerados best-sellers, tratam de fazer réplicas deles em cartão à escala real, pondo-os depois em locais estratégicos para ajudar às vendas dos seus livros. Há uns tempos, e a este respeito, agora que aqui se fala nisso, ouvi a um jovem escritor algarvio de rendilhada imaginação uma história curiosa que ele congeminara e pensava vir a pôr em livro. Contava ele a história de um livreiro qualquer de província que levava um desses «escritores de cartão» na mala do carro quando, a caminho do Alentejo onde residia, foi mandado parar numa operação STOP da Brigada de Trânsito. Qual não foi o susto dos agentes quando, tendo mandado o homem abrir a bagageira, se depararam com a figura encolhida de Miguel Sousa Tavares, assim meio ao lusco-fusco. Não é que sacaram logo das pistolas e queriam levar o livreiro preso pensando que ele tinha sequestrado o autor do «Equador», tendo sido o cabo das tormentas para os levar a acreditar que não era uma pessoa que ali estava?! É bem verdade, tirem daqui a lição, andar com escritores na mala dos carros, ainda que de cartão, não é coisa recomendável.
De novo no hotel, agora para contar de como o Bigodes, tendo-se apercebido da gaffe que cometera com a figura de cartão de Etelvina, se dirigiu depois ao elevador subindo até ao local do lançamento da inovadora e singular obra-prima que ali se dava a conhecer ao mundo literário. Pois à custa do seu porte teve de subir sozinho com o ascensorista, um desgraçado que levou com a sua barriga e o seu cheiro a suor, e mal chegado à zona do restaurante começou a furar por entre os convidados para se chegar perto da mesa e dos seus três oradores. Deixou-se, a início, ficar a cerca de uns três metros do local e foi daí que lançou as suas assobiadelas e os seus gritos de apoio e incitamento à neófita autora.
No final dos discursos estava prevista a sessão de autógrafos da praxe. Embora ainda levemente nervosa com todo o aparato, a autora prontificou-se à tarefa deixando-se ficar no seu lugar na mesa, onde começou a receber as pessoas em fila, isto é, aquelas que já tinham enchido a barriga quanto baste e ali voltavam para não parecerem mal. De modo que a maior parte deles voltava com o livro numa das mãos e um croquete na outra, ou então uma tâmara enrolada em presunto, quando não mesmo uma suculenta perninha de frango. Curiosamente, quem não vinha com comida nas mãos era o dito Bigodes. Ao contrário, e sendo muito de espantar pois toda a gente conhecia aquele fervoroso adepto do clube encarnado, o Bigodes levava, sem exagero, uns sete ou oito livros em cada mão. Foi facto digno de grande espanto entre os convivas, pois ninguém ignorava que o livro de Etelvina Prazeres atacava fortemente o seu ex-marido, como se sabe, um renomado presidente de um clube do Norte. Era então óbvia, mais do que óbvia, a afronta que a presença do Bigodes ali significava. Ainda para mais com uma data de livros na mão!
Fingindo-se surpreendida, quando chegou a vez de Etelvina Prazeres assinar os livros do Bigodes, a autora fez um compasso de espera, olhando-o nos olhos. Nada se incomodando com isso, o Bigodes sorri-lhe dizendo: «Doutora Etelvina, devo dizer-lhe que não leio um livro desde a primeira classe, quando a isso fui obrigado. Em casa só tenho o livro das glórias do meu clube, que está lá junto aos DVDs e, se não me falha a memória, uma Bíblia que um dia lá deixaram uns rapazitos bem vestidos e de mala a tiracolo que se diziam testemunhas de não sei o quê... Eu disse-lhes que sim, que deixassem o livro já que faziam questão, mas que não os podia atender uma vez que nem sequer tinha visto o acidente... Mas, prontos, Doutora, é só para lhe dizer que apesar disso é com muito prazer e gosto que aqui vim para que me assine estes seus livrinhos. Para quê tantos, ora, ora, para oferecer aos amigos, claro! Faça favor, Doutora, isso, aí está muito bem, pois, pois... Este primeiro é para mim, ponha aí, para o Bigodes. Os outros...»
E esteve naquilo uns dez minutos, tecendo loas à Doutora, dizendo-lhe, um a um, os nomes dos amigos aos quais desejava ofertar a obra. Tudo foi correndo de forma pacífica até que no fim, depois de muita risada e estardalhaço – cumprindo assim a missão «publicitária» que lhe fora encomendada –,tudo ia dando para o torto, quando, já muito farto de ouvir e ver o Bigodes a engalanar-se todo a si e ao seu clube, não se mostrando capaz de engolir a afronta da sua presença ali, um adepto do clube nortenho esteve em vias de ir às trombas do Bigodes, só isso não acontecendo porque os dois capangas da senhora Etelvina intervieram de imediato pondo fim à hipotética contenda que se ficou por umas ofensas e uns palavrões de parte a parte. O Bigodes só dizia: «Anda cá que eu espeto-te um kit no focinho, ó filho da puta»; e o outro: «Bigodes de merda, vê lá é se não te fo...». Bigodes, sim, rimaria com o termo censurado, mas é melhor não entrarmos por aí sob pena de se achincalhar um texto que até agora tem sabido eximir-se a palavrões e asneiras, e, já sabem como é, um escritor tem que ter cuidado com estas coisas pois os críticos andam aí!

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado por Blog intiresny