V.
Trocas no desfiar do novelo narrativo. Dom Quixote às aranhas por Lisboa, dando ares, ais e uis de poeta. Um prestimoso oficial de segurança pública. Uma opinião discutível enquanto japoneses disparam em fila no Chiado. Ó Silva, epá, deixa o homem!...
Enquanto toda a sessão do lançamento de «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal» decorreu com franco sucesso, como disso atrás se deu conta e relato, Dom Quixote continuava como se às cegas deambulando pela cidade. Desnorteado, uma vez mais, pois à custa do imbróglio em que se metera na rampa do parque de estacionamento da Gulbenkian, o seu alazão deitara-se dali com ele à garupa desencabrestado pela cidade, fugindo, para onde o galope o levasse, dos automobilistas cujos carros amolgara com os cascos. Destreinado que estava, e como se o último dos automobilistas da fila tivesse feito marcha atrás para vir no encalço deles, Rocinante mal se tinha nas pernas quando, por fim, puderam refrear o passo e descansar um pouco. Mas não foi nada fácil, e a única coisa que os safou do encalço do furibundo automobilista foram os semáforos vermelhos que aquele encontrou pela frente e que Rocinante olimpicamente ignorou, com grande risco para as vidas de montada e cavaleiro.
E neste ponto aproveitamos para de novo passar a palavra ao próprio Dom Quixote, afinal, como ninguém, homem de bela e segura literatura. Creio que nas mãos da sua escrita ficarão bem entregues para atravessarem a leitura deste capítulo. Verdade também se diga, e o seu a seu dono, foi Dom Quixote quem começou este relato, tendo-me eu, narrador, às tantas, apropriado da sua narração sem pedir licença. Por isso mesmo, e desde já, é essa mesma licença que pedirei ao cavaleiro para mais daqui a pouco tomar de novo as rédeas deste relato, nomeadamente das peripécias ocorridas no outro lado da história, isto é, seguindo os passos do director editorial e sua equipa, até porque Dom Quixote já não se encontra perto deles para o poder contar. Mas calo-me, senhor Dom Quixote, a narrativa está por sua conta.
Estava a ver que nunca mais, homem. Eu para aqui perdido, aflito, sem saber para onde ir e o que fazer, e você aí, a entreter o leitor com palavreado. A isto, meu fiel Rocinante, à história antes que um qualquer escritor arrivista venha e se aproprie destas ocorrências, deste caso sui generis havido na edição literária portuguesa. E faço aqui o ponto da situação, até para minha própria contextualização. De outra forma, belisco-me (ai!!!) uma vez mais para confirmar que estou acordado, que tudo aquilo que até agora se contou se passou realmente, que eu, ilustre Dom Quixote de La Mancha, cavaleiro em Portugal há quase duas décadas pugnando pelo bom nome da literatura e da edição em português, me vi na circunstância de ter de me vir embora, envergonhado que estou do rumo editorial a que tentavam agregar o meu nome, a minha silhueta! Eu, na capa de um livro, lado a lado com o nome de Etelvina Prazeres!!! É lá isso possível? Ah, mas não, se pensavam que eu ia comer e calar bem se enganaram, Dom Quixote não cala nem consente porque é filho de boa gente. A moral, a moral e a dignidade acima de tudo, de todas as razões, de todos os propósitos. Maquiavel comigo não! Comigo nunca, que de outra estirpe de homens me faço, ontem, hoje e para todo o sempre, assim o afirmo sobre o nome da minha adorada Dulcineia.
E agora, onde estou? Que raio de cidade esta que já não conheço. Ups, o Marquês, o velho Marquês do Pombal, ah, sim, agora estou a ver onde estou, a velha Rotunda, pois então, se não me engano, para baixo, sim, para sul, deve estar para ali o Tejo. Ala, meu fiel Rocinante, que aqui não é bom sítio para nos determos por muito tempo, cuidado com os carros, ui, ai, vamos, vamos, atenção ao autocarro... Ah, sim, este cheiro, este cheiro, sim, conheço... a água, o rio, a frescura das águas do rio, sim, é o Tejo... Ah, velho e bom Tejo que nasces a beijar as terras de Espanha vindo exilar-te, por entre pedregosas e sinuosas margens que te oprimem, em solo lusitano...
Peço desculpa, mas tenho de interromper novamente o discurso de Dom Quixote, não porque o mesmo não seja interessante, mas antes porque o letrado se demora demasiado nos ais e uis que lhe custou mais este troço da sua fuga citadina em direcção às águas do Tejo. E ainda para mais quando começa a dar em poeta! De modo que, assim ele me desculpe e os leitores, reportarei desse percurso atribulado os acontecimentos mais relevantes para uma boa fluência da história, tentando eu mesmo levá-la doravante até ao fim. Era já hora do almoço e o nosso cavaleiro ainda não tinha levado nada ao estômago. Quer ele, quer o seu cavalo estavam, por assim dizer, esfaimados. De modo que foi a custo que desceram toda a Avenida da Liberdade, não só pelo calor como, voltamos a referi-lo, pelo trânsito que não dava mostras de melhorar.
A sorte do cavaleiro, como já dissemos, foi que todos na cidade que com ele se cruzavam achavam que era apenas um figurante numa qualquer campanha publicitária que os nossos vizinhos espanhóis estivessem a patrocinar em solo português. Provavelmente, a tentarem espetar a primeira lança de uma invasão castelhana em Portugal!, pensavam uns, enquanto que outros, pouco se importando com isso (sobretudo aqueles que até nem viam tal hipótese como algo a descartar – eram, sobretudo, tipos que no antigamente fumavam Ducados, torciam pelos espanhóis no hóquei em patins e, claro, sempre que podiam davam um salto a Badajoz a comprar caramelos e lavanda), dele se aproximavam a ver se lhes calhava um presentito qualquer, um recuerdo, quem sabe uma T-shirt a dizer Viva España, ou então um crachá ou até mesmo um caramelito que fosse...
Incomodado com a fome e com os portugueses que o abordavam no seu portunhol característico («Hombre, tienes presentes para mi?»; «Ó Quixote, o que é que tienes aí para a giente?»), Dom Quixote deles se ia libertando como podia, ora apontando-lhes a lança, ora sugerindo-lhes valente pontapé. «Não pares, meu alazão, não pares, que esta gente é pior do que as moscas à volta da bosta! Mete por aí, vá, vamos por esta rua a ver se os despistamos.» A verdade é que somente a eles, e a mais ninguém, se despistaram novamente, tendo ido parar ao Chiado após íngremes subidas que deixaram Rocinante extenuado. Tinham de parar e foi o que fizeram chegando ao Largo do Chiado, o velho «frade putanheiro», no dizer do grande escritor José Cardoso Pires, que Deus o tenha junto de si no Olimpo literário. E foi junto à estátua do dito frade, sempre na sua pose agoirenta de vendilhão de banha de cobra, que Dom Quixote desceu dos estribos dando alguma folga e descanso ao seu companheiro de fuga. Como se não houvesse ali lugar para deixar a montada Dom Quixote percorreu o lugar em volta com o olhar, até dar de caras com um agente da Polícia de Segurança Pública, que dele se aproximava com um bloquinho de multas na mão.
«Ora muito boa tarde senhor cidadão», disse o agente. «Então o que é que temos aqui?», perguntou ao Quixote como se não soubesse de antemão o que ali tinha e que não era senão um cavalo mal estacionado. «Já sei», respondeu-lhe o Quixote, «aqui não se pode estacionar, não é?» «Correcto, cidadão, é exacto, confirmo». «Ó senhor guarda, mas onde estaciono então o animal que me está prestes a desfalecer não tarda?». Apercebendo-se de que de facto Rocinante não estava nas melhores condições, para espanto e alívio de Quixote, o guarda disse-lhe que desta vez lhe perdoava a multazinha e que, sendo ele membro da direcção da Liga Portuguesa dos Amigos dos Animais, ele próprio teria muito gosto em levar dali o bicho e pô-lo a descansar em sítio apropriado, nas cavalariças da esquadra de Polícia que não era longe, era, imaginasse e visse nisso a sorte com que estava, mesmo ali ao lado, a dois passos!» Dom Quixote agradeceu e aceitou, dizendo ao prestimoso oficial de segurança pública que então daí por uma horazita, pouco mais ou menos, que era só o tempo de ajeitar o estômago, por lá passaria a buscar o animal para depois seguir viagem.
Assim fez e logo ali ao lado se sentou numa mesa que uns estrangeiros, entusiasmados pela cena que haviam testemunhado e fixado em fotografia, tinham acabado de vagar. Foi já sentado e com a lista dos comes e bebes na mão, que o empregado lhe trouxera, que virando-se para o lado deu de caras com Fernando Pessoa. Com Pessoa, vamos lá, enfim, com a estátua do poeta dos heterónimos. E foi coisa de mais espantar, pois era a primeira vez que quem frequentava a esplanada via lado a lado os dois vultos maiores das literaturas ibéricas... Bem, quer dizer, é uma opinião possível, pois certamente que outros a não corroborarão lembrando o narrador, assim pudessem, que outro vulto maior das letras lusas havia e que, por sinal, até bem perto daquela cena se encontrava. Era Camões, pois claro, também em forma de estátua cinquenta metros ao lado, mas, e concedemos neste ponto, com muito maior dignidade, já que a sua estátua não só era muito maior que a de Pessoa, que até se encontrava sentado, mais parecendo um velho que não se aguentasse nas pernas, como também mostrava muito claramente aos olhos do povo quem, de entre os aedos nacionais, era o maior entre os maiores. E quem? Ele, claro, o autor d’«Os Lusíadas», ou não encimasse a sua estátua o pedestal onde se encontrava, tendo abaixo de si, e a toda a sua volta, os outros lentes literários, numa clara posição subalterna.
Dom Quixote escolheu o bom e o melhor que constava na carta. E, claro, não familiarizado com a novidade dos euros não fez contas à despesa final. Verdade se diga que mesmo que as quisesse ter feito, não sei se teria conseguido chegar a valor fidedigno, ou não fosse ele um poeta, um escritor, um homem de letras e não de números! Mas adiante, para confirmar que estavam boas as entradinhas de presunto e cogumelos fatiados, que o strogonoff não lhe pareceu mau de todo (face à zona turística onde se encontrava) e que o gelado lhe caiu que nem ginjas, que por acaso também as tinha, no topo, em vez da costumeira, cereja. Lambeu os lábios por diversas vezes, afagou o estômago e limpou barbas e bigodes, dando-se por refeito de energias e satisfeito quanto baste. Quando olhou em frente, muito espantado ficou com uma fileira de japoneses que, uns ajoelhados, outros de pé, lhe tiravam fotografias a torto e a direito. Indignado por aquela invasão de privacidade, Quixote pegou instintivamente no elmo que estava na cadeira à sua frente e fez-lhes o gesto de quem lhes iria atirar-lho, acompanhando o acto de um sonoro Xôooo. Foi o suficiente para que todos, a rir a aos pulinhos, se fossem dali para diante a fotografar o mais que entendessem, detendo-se agora num pedinte com uns sete cães à sua volta que todos certamente acharam muito curioso e muito típico.
Como a sua figura teve o condão de chamar à esplanada inúmeros outros clientes, a gerência do estabelecimento de restauração fez o obséquio ou teve a delicadeza de deixar a conta de Dom Quixote por conta da casa, passe a redundância. Só quando isso mesmo lhe foi transmitido é que Dom Quixote se lembrou de que não tinha um tostão furado, ou deveria dizer um euro furado? Bem, ter até tinha, mas era pouca coisa, uma moeda de dois euros que trouxera de cima da secretária do Director editorial... Menos mal, agradecia muito ao gerente e até mais ver que tinha de ir buscar o seu alazão. Pegou no elmo e pôs-se a caminhar pela rua que ia dar ao Teatro Nacional de São Carlos. Perguntou a um transeunte pela esquadra e devidamente encaminhado para lá se dirigiu sem mais demoras. Chegado à esquadra, a coisa começou por não correr muito bem, já que o sargento que estava de plantão à porta não quis acreditar na sua história, para mais quando Quixote lhe diz que era, nem mais nem menos, Quixote, o próprio, em carne e osso, e que vinha buscar Rocinante que um colega do sargento para ali tinha trazido. «Pois, pois, tu és o Quixote e eu sou o Camões», atira-lhe o sargento em tom de graçola retorcendo o olho, fazendo de cegueta como o poeta de quinhentos. Que não, que não, que era verdade, jurava-lhe Dom Quixote, mas o outro nada, apenas lhe dizendo: «Epá, ó Quixote, já me estás a dar calores, zarpa daqui antes que te enfie a lança num certo sítio e vás daqui a arder para a tua terra, não sei se estás a perceber.» Ouvindo isto, Dom Quixote pôs-se aos berros, enxovalhado na alma que estava como não se lembrava havia muito tempo. Lá de dentro do pátio do quartel, ouvindo a berraria, surgiu então o agente que tinha levado o Rocinante para ali e, vendo a cena, logo tratou de tudo esclarecer e apaziguar os ânimos. «Ó Silva, epá deixa o homem que ele está a dizer a verdade... Quer dizer, a verdade sobre o cavalo. Agora, se diz que é o Quixote, epá deixa-o dizer, cada maluco com a sua fisgada! Tu não te lembras do agente Ramos que às tantas deu em dizer que era o Cesário Verde?» E por ali se ficou a conversa. Quixote e o agente de segurança foram aos estábulos buscar Rocinante e de novo o nosso homem se pôs ao caminho. Ainda que de rumo desconhecido. Fazia-se tarde, havia que encontrar rapidamente um local para passar a noite e com a calma suficiente para poder ordenar ideias, pensando no que fazer no dia seguinte.
Trocas no desfiar do novelo narrativo. Dom Quixote às aranhas por Lisboa, dando ares, ais e uis de poeta. Um prestimoso oficial de segurança pública. Uma opinião discutível enquanto japoneses disparam em fila no Chiado. Ó Silva, epá, deixa o homem!...
Enquanto toda a sessão do lançamento de «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal» decorreu com franco sucesso, como disso atrás se deu conta e relato, Dom Quixote continuava como se às cegas deambulando pela cidade. Desnorteado, uma vez mais, pois à custa do imbróglio em que se metera na rampa do parque de estacionamento da Gulbenkian, o seu alazão deitara-se dali com ele à garupa desencabrestado pela cidade, fugindo, para onde o galope o levasse, dos automobilistas cujos carros amolgara com os cascos. Destreinado que estava, e como se o último dos automobilistas da fila tivesse feito marcha atrás para vir no encalço deles, Rocinante mal se tinha nas pernas quando, por fim, puderam refrear o passo e descansar um pouco. Mas não foi nada fácil, e a única coisa que os safou do encalço do furibundo automobilista foram os semáforos vermelhos que aquele encontrou pela frente e que Rocinante olimpicamente ignorou, com grande risco para as vidas de montada e cavaleiro.
E neste ponto aproveitamos para de novo passar a palavra ao próprio Dom Quixote, afinal, como ninguém, homem de bela e segura literatura. Creio que nas mãos da sua escrita ficarão bem entregues para atravessarem a leitura deste capítulo. Verdade também se diga, e o seu a seu dono, foi Dom Quixote quem começou este relato, tendo-me eu, narrador, às tantas, apropriado da sua narração sem pedir licença. Por isso mesmo, e desde já, é essa mesma licença que pedirei ao cavaleiro para mais daqui a pouco tomar de novo as rédeas deste relato, nomeadamente das peripécias ocorridas no outro lado da história, isto é, seguindo os passos do director editorial e sua equipa, até porque Dom Quixote já não se encontra perto deles para o poder contar. Mas calo-me, senhor Dom Quixote, a narrativa está por sua conta.
Estava a ver que nunca mais, homem. Eu para aqui perdido, aflito, sem saber para onde ir e o que fazer, e você aí, a entreter o leitor com palavreado. A isto, meu fiel Rocinante, à história antes que um qualquer escritor arrivista venha e se aproprie destas ocorrências, deste caso sui generis havido na edição literária portuguesa. E faço aqui o ponto da situação, até para minha própria contextualização. De outra forma, belisco-me (ai!!!) uma vez mais para confirmar que estou acordado, que tudo aquilo que até agora se contou se passou realmente, que eu, ilustre Dom Quixote de La Mancha, cavaleiro em Portugal há quase duas décadas pugnando pelo bom nome da literatura e da edição em português, me vi na circunstância de ter de me vir embora, envergonhado que estou do rumo editorial a que tentavam agregar o meu nome, a minha silhueta! Eu, na capa de um livro, lado a lado com o nome de Etelvina Prazeres!!! É lá isso possível? Ah, mas não, se pensavam que eu ia comer e calar bem se enganaram, Dom Quixote não cala nem consente porque é filho de boa gente. A moral, a moral e a dignidade acima de tudo, de todas as razões, de todos os propósitos. Maquiavel comigo não! Comigo nunca, que de outra estirpe de homens me faço, ontem, hoje e para todo o sempre, assim o afirmo sobre o nome da minha adorada Dulcineia.
E agora, onde estou? Que raio de cidade esta que já não conheço. Ups, o Marquês, o velho Marquês do Pombal, ah, sim, agora estou a ver onde estou, a velha Rotunda, pois então, se não me engano, para baixo, sim, para sul, deve estar para ali o Tejo. Ala, meu fiel Rocinante, que aqui não é bom sítio para nos determos por muito tempo, cuidado com os carros, ui, ai, vamos, vamos, atenção ao autocarro... Ah, sim, este cheiro, este cheiro, sim, conheço... a água, o rio, a frescura das águas do rio, sim, é o Tejo... Ah, velho e bom Tejo que nasces a beijar as terras de Espanha vindo exilar-te, por entre pedregosas e sinuosas margens que te oprimem, em solo lusitano...
Peço desculpa, mas tenho de interromper novamente o discurso de Dom Quixote, não porque o mesmo não seja interessante, mas antes porque o letrado se demora demasiado nos ais e uis que lhe custou mais este troço da sua fuga citadina em direcção às águas do Tejo. E ainda para mais quando começa a dar em poeta! De modo que, assim ele me desculpe e os leitores, reportarei desse percurso atribulado os acontecimentos mais relevantes para uma boa fluência da história, tentando eu mesmo levá-la doravante até ao fim. Era já hora do almoço e o nosso cavaleiro ainda não tinha levado nada ao estômago. Quer ele, quer o seu cavalo estavam, por assim dizer, esfaimados. De modo que foi a custo que desceram toda a Avenida da Liberdade, não só pelo calor como, voltamos a referi-lo, pelo trânsito que não dava mostras de melhorar.
A sorte do cavaleiro, como já dissemos, foi que todos na cidade que com ele se cruzavam achavam que era apenas um figurante numa qualquer campanha publicitária que os nossos vizinhos espanhóis estivessem a patrocinar em solo português. Provavelmente, a tentarem espetar a primeira lança de uma invasão castelhana em Portugal!, pensavam uns, enquanto que outros, pouco se importando com isso (sobretudo aqueles que até nem viam tal hipótese como algo a descartar – eram, sobretudo, tipos que no antigamente fumavam Ducados, torciam pelos espanhóis no hóquei em patins e, claro, sempre que podiam davam um salto a Badajoz a comprar caramelos e lavanda), dele se aproximavam a ver se lhes calhava um presentito qualquer, um recuerdo, quem sabe uma T-shirt a dizer Viva España, ou então um crachá ou até mesmo um caramelito que fosse...
Incomodado com a fome e com os portugueses que o abordavam no seu portunhol característico («Hombre, tienes presentes para mi?»; «Ó Quixote, o que é que tienes aí para a giente?»), Dom Quixote deles se ia libertando como podia, ora apontando-lhes a lança, ora sugerindo-lhes valente pontapé. «Não pares, meu alazão, não pares, que esta gente é pior do que as moscas à volta da bosta! Mete por aí, vá, vamos por esta rua a ver se os despistamos.» A verdade é que somente a eles, e a mais ninguém, se despistaram novamente, tendo ido parar ao Chiado após íngremes subidas que deixaram Rocinante extenuado. Tinham de parar e foi o que fizeram chegando ao Largo do Chiado, o velho «frade putanheiro», no dizer do grande escritor José Cardoso Pires, que Deus o tenha junto de si no Olimpo literário. E foi junto à estátua do dito frade, sempre na sua pose agoirenta de vendilhão de banha de cobra, que Dom Quixote desceu dos estribos dando alguma folga e descanso ao seu companheiro de fuga. Como se não houvesse ali lugar para deixar a montada Dom Quixote percorreu o lugar em volta com o olhar, até dar de caras com um agente da Polícia de Segurança Pública, que dele se aproximava com um bloquinho de multas na mão.
«Ora muito boa tarde senhor cidadão», disse o agente. «Então o que é que temos aqui?», perguntou ao Quixote como se não soubesse de antemão o que ali tinha e que não era senão um cavalo mal estacionado. «Já sei», respondeu-lhe o Quixote, «aqui não se pode estacionar, não é?» «Correcto, cidadão, é exacto, confirmo». «Ó senhor guarda, mas onde estaciono então o animal que me está prestes a desfalecer não tarda?». Apercebendo-se de que de facto Rocinante não estava nas melhores condições, para espanto e alívio de Quixote, o guarda disse-lhe que desta vez lhe perdoava a multazinha e que, sendo ele membro da direcção da Liga Portuguesa dos Amigos dos Animais, ele próprio teria muito gosto em levar dali o bicho e pô-lo a descansar em sítio apropriado, nas cavalariças da esquadra de Polícia que não era longe, era, imaginasse e visse nisso a sorte com que estava, mesmo ali ao lado, a dois passos!» Dom Quixote agradeceu e aceitou, dizendo ao prestimoso oficial de segurança pública que então daí por uma horazita, pouco mais ou menos, que era só o tempo de ajeitar o estômago, por lá passaria a buscar o animal para depois seguir viagem.
Assim fez e logo ali ao lado se sentou numa mesa que uns estrangeiros, entusiasmados pela cena que haviam testemunhado e fixado em fotografia, tinham acabado de vagar. Foi já sentado e com a lista dos comes e bebes na mão, que o empregado lhe trouxera, que virando-se para o lado deu de caras com Fernando Pessoa. Com Pessoa, vamos lá, enfim, com a estátua do poeta dos heterónimos. E foi coisa de mais espantar, pois era a primeira vez que quem frequentava a esplanada via lado a lado os dois vultos maiores das literaturas ibéricas... Bem, quer dizer, é uma opinião possível, pois certamente que outros a não corroborarão lembrando o narrador, assim pudessem, que outro vulto maior das letras lusas havia e que, por sinal, até bem perto daquela cena se encontrava. Era Camões, pois claro, também em forma de estátua cinquenta metros ao lado, mas, e concedemos neste ponto, com muito maior dignidade, já que a sua estátua não só era muito maior que a de Pessoa, que até se encontrava sentado, mais parecendo um velho que não se aguentasse nas pernas, como também mostrava muito claramente aos olhos do povo quem, de entre os aedos nacionais, era o maior entre os maiores. E quem? Ele, claro, o autor d’«Os Lusíadas», ou não encimasse a sua estátua o pedestal onde se encontrava, tendo abaixo de si, e a toda a sua volta, os outros lentes literários, numa clara posição subalterna.
Dom Quixote escolheu o bom e o melhor que constava na carta. E, claro, não familiarizado com a novidade dos euros não fez contas à despesa final. Verdade se diga que mesmo que as quisesse ter feito, não sei se teria conseguido chegar a valor fidedigno, ou não fosse ele um poeta, um escritor, um homem de letras e não de números! Mas adiante, para confirmar que estavam boas as entradinhas de presunto e cogumelos fatiados, que o strogonoff não lhe pareceu mau de todo (face à zona turística onde se encontrava) e que o gelado lhe caiu que nem ginjas, que por acaso também as tinha, no topo, em vez da costumeira, cereja. Lambeu os lábios por diversas vezes, afagou o estômago e limpou barbas e bigodes, dando-se por refeito de energias e satisfeito quanto baste. Quando olhou em frente, muito espantado ficou com uma fileira de japoneses que, uns ajoelhados, outros de pé, lhe tiravam fotografias a torto e a direito. Indignado por aquela invasão de privacidade, Quixote pegou instintivamente no elmo que estava na cadeira à sua frente e fez-lhes o gesto de quem lhes iria atirar-lho, acompanhando o acto de um sonoro Xôooo. Foi o suficiente para que todos, a rir a aos pulinhos, se fossem dali para diante a fotografar o mais que entendessem, detendo-se agora num pedinte com uns sete cães à sua volta que todos certamente acharam muito curioso e muito típico.
Como a sua figura teve o condão de chamar à esplanada inúmeros outros clientes, a gerência do estabelecimento de restauração fez o obséquio ou teve a delicadeza de deixar a conta de Dom Quixote por conta da casa, passe a redundância. Só quando isso mesmo lhe foi transmitido é que Dom Quixote se lembrou de que não tinha um tostão furado, ou deveria dizer um euro furado? Bem, ter até tinha, mas era pouca coisa, uma moeda de dois euros que trouxera de cima da secretária do Director editorial... Menos mal, agradecia muito ao gerente e até mais ver que tinha de ir buscar o seu alazão. Pegou no elmo e pôs-se a caminhar pela rua que ia dar ao Teatro Nacional de São Carlos. Perguntou a um transeunte pela esquadra e devidamente encaminhado para lá se dirigiu sem mais demoras. Chegado à esquadra, a coisa começou por não correr muito bem, já que o sargento que estava de plantão à porta não quis acreditar na sua história, para mais quando Quixote lhe diz que era, nem mais nem menos, Quixote, o próprio, em carne e osso, e que vinha buscar Rocinante que um colega do sargento para ali tinha trazido. «Pois, pois, tu és o Quixote e eu sou o Camões», atira-lhe o sargento em tom de graçola retorcendo o olho, fazendo de cegueta como o poeta de quinhentos. Que não, que não, que era verdade, jurava-lhe Dom Quixote, mas o outro nada, apenas lhe dizendo: «Epá, ó Quixote, já me estás a dar calores, zarpa daqui antes que te enfie a lança num certo sítio e vás daqui a arder para a tua terra, não sei se estás a perceber.» Ouvindo isto, Dom Quixote pôs-se aos berros, enxovalhado na alma que estava como não se lembrava havia muito tempo. Lá de dentro do pátio do quartel, ouvindo a berraria, surgiu então o agente que tinha levado o Rocinante para ali e, vendo a cena, logo tratou de tudo esclarecer e apaziguar os ânimos. «Ó Silva, epá deixa o homem que ele está a dizer a verdade... Quer dizer, a verdade sobre o cavalo. Agora, se diz que é o Quixote, epá deixa-o dizer, cada maluco com a sua fisgada! Tu não te lembras do agente Ramos que às tantas deu em dizer que era o Cesário Verde?» E por ali se ficou a conversa. Quixote e o agente de segurança foram aos estábulos buscar Rocinante e de novo o nosso homem se pôs ao caminho. Ainda que de rumo desconhecido. Fazia-se tarde, havia que encontrar rapidamente um local para passar a noite e com a calma suficiente para poder ordenar ideias, pensando no que fazer no dia seguinte.
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