sexta-feira, 23 de novembro de 2007

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Um sério divertimento - Publicação on line de um livro recusado por não querer incomodar - Capítulo I

I.

Manhã cedo. O director editorial fora do horário habitual. A Grã Cruz, o Nobel, o treinador do Benfica que ainda acreditava e um BMW perigosamente ameaçando o canteiro de jarros do senhor Pinto. Encómios a Etelvina, dita autora. Um livro ainda a cheirar a tinta.


Não sei bem porquê, mas qualquer coisa no ar, naquela manhã de uma semana de trabalho que até aí decorrera em perfeita normalidade, me fez pressentir que algo se passava ou iria passar-se, retirando aos amplos espaços do escritório a pacatez habitual e modorrenta em que as horas e os dias decorriam. Estranhei. Estranhei logo quando a empregada de limpeza veio trabalhar nesse dia. A dona Ifigénia só tinha por hábito vir às sextas-feiras, no final de semana, como era lógico, após cinco dias de trabalho, de muita lufa-lufa pelas salas e corredores, depois de muita gente calcorrear aquele chão de alcatifa já gasta, descolorida e puída. Agora, quarta-feira – confirmei no calendário de parede, onde surgiam em grande plano, e a cada mês, as fotografias dos doze escritores best-sellers da casa –, mal o sol nascera e já ela por ali cirandava de esfregona e balde à ilharga, pano do pó e líquido limpa-vidros dentro, respectivamente, dos dois bolsos do avental que trazia vestido. Esteve para ali cerca de umas duas horas, saindo pouco depois da chegada do director editorial que lhe confirmou o bom trabalho efectuado, dando-lhe carta de alforria para se pôr dali para fora e até à próxima, Dona Ifigénia, que agora tenho coisas para fazer.
O director editorial, portanto. Ali, às nove da manhã – bem mais cedo do que o seu horário habitual de chegada! Mas mais, encontrava-se desperto e cheio de energia. Ao invés da sua aparência rotineira, de algum enfado e declarado desânimo face a uma actividade que já não lhe arrancava grandes euforias, antes muitos desaires e descrenças no mundo à sua volta, no seu universo profissional e em concreto na sorte do seu destino, o director editorial, naquela manhã, parecia um jovem. Sim, um daqueles rapazes novos, acabados se de licenciarem, julgando ainda poderem vir a mudar e ganhar o mundo, sonhando com elevadas empresas, grandes feitos e grandes conseguimentos profissionais. Pois era assim, animado desse estado de espírito, que entrou pelo gabinete adentro, despindo o casaco, pondo-o despreocupadamente sobre as costas da cadeira e esfregando as mãos no imediato como se tivesse acabado de chegar à empresa, tivesse vinte anos e se preparasse para encabeçar uma revolução.
Pela porta que o director editorial deixara propositadamente entreaberta, como se esperasse alguma personalidade mediática a todo o momento e não quisesse perder um só segundo em recebê-la, vislumbrei também nesse momento um corrupio lá fora, no hall de entrada, junto à máquina do café, bem ao lado da secretária da Dona Paula, a telefonista e recepcionista, também secretária do director. Seriam o quê agora? Nove e meia? Dez, vá lá?... Não, nove e meia, sim, ouvi claramente nas notícias intercalares da rádio que entretanto o director editorial ligara para ouvir as «gordas» do dia. O habitual: que o aumento dos impostos estava à porta; que a gasolina ia aumentar; que mais três explosões tinham deflagrado no centro de Bagdade; que o treinador do Benfica ainda acreditava ser capaz de vencer o campeonato, etc. Em notícia de última hora – susceptível por isso de posteriores desenvolvimentos que os jornalistas daquela rádio se encarregariam de acompanhar a todo o instante –, ouvi ainda falar de umas também já corriqueiras notícias acerca de suspeitas de suborno a árbitros de futebol. Interessado que estava em perceber o que se passava à entrada do escritório, com tanta gente ali a falar animadamente logo àquela hora, não consegui perceber, no imediato, a ligação entre aquela última notícia e a edição de um livro qualquer assinado por uma senhora, cujo nome também não logrei entender, mas que, concluía o jornalista com voz grave, iria, certamente, «ser uma bomba».
Por momentos ainda pensei que estivesse a fazer confusão, que a tal referência à bomba não fosse mais do que um qualquer desenvolvimento, também de última hora, às informações antes avançadas sobre o Iraque. De modo que me abstraí desse pensamento. De outra forma não poderia ser, de resto, pois a correria naquele escritório não parecia deixar de aumentar. O director editorial atarefava-se em arrumar ao milímetro os objectos sobre a sua secretária, compondo a sua geometria, alinhando o telefone com as linhas do cinzeiro, posicionando o teclado do computador de forma a estabelecer uma paralela perfeita com o écran, alinhando com apuro as três molduras onde surgiam, sorridentes, as fotografias da mulher e das três filhas. Depois, as estantes. Com um dedo, e afastando levemente para trás a cara acompanhando o gesto de um fechar do olho direito, como quem faz pontaria com arco e flecha ou espingarda, subtilmente tratou de alinhar todas as lombadas, passando depois, último acto, o dedo indicador direito sobre a largura da madeira a confirmar a ausência de pó. Por último, não menos importante, endireitou também os três quadros que se encontravam na parede por trás da sua cadeira, todos eles ostentando fotografias ampliadas. Num, via-se ele próprio lado a lado com o Presidente da República, por ocasião de uma sessão havida há já vários anos em que fora agraciado com a Grã Cruz de Mérito Cultural, em virtude, disse-se e leu-se na circunstância, «dos excepcionais serviços prestados à cultura nacional». Noutro, também ele surgia, agora abraçado ao Nobel poucas horas depois de este ter recebido a distinção da Academia Sueca, em Estocolmo. Na última moldura, uma vez mais surgia ele, desta feita, fazendo-se acompanhar de um grupo de escritores da casa. Não sei porquê, mas esta imagem sempre me fez uma espécie de comichão, creio que por via dos sorrisos que os escritores mostravam, não porque não soubessem sorrir mas porque se denotava que eram risos forçados. Até porque, conhecendo as suas obras, não batia a bota com a perdigota. Os seus livros eram negros, cifrados, herméticos, tristes e isso, acredito, muito havia de revelar sobre as suas almas ou estados de espírito. O que é facto é que riam, vá lá saber-se porquê, riam. Por causa dos números de exemplares vendidos dos seus livros é que não era de certeza. De modo que... estão a ver, uma comichão...
Não andasse eu nisto há quase já uma vida inteira e dar-me-ia por parvo, não percebendo ou suspeitando o que se passava. Enfim, não é que nunca tivesse acontecido, mas, se bem me lembro, pelas minhas contas... duas... três, sim, talvez umas três vezes nos últimos vinte anos. Estou a falar deste engalanar, destes preparativos, como se ali fosse ter lugar um qualquer casamento. Mas não, topei logo o que devia estar a preparar-se. Não diria que fosse a visita do Santo Papa, mas era capaz de apostar que pela porta de entrada do escritório muito em breve, coisa de minutos (ou horas, a fazer fé nos atrasos habituais), entraria peixe graúdo. Escritor, não. Não me cheirava que fosse escritor, que fosse quem ele fosse não haveria de merecer tamanhos preparos. Nem sequer o Nobel, porque esse, sabia eu, havia muito que não deixava a ilha onde se exilara, e quando o fazia o mais das vezes era para participar em lançamentos de livros em locais estrategicamente pensados para o efeito – de resto, era impensável que tais momentos decorressem ali no escritório. Seguindo as ideias de um escritor-jornalista mediático, tornadas públicas aquando de um lançamento de um livro seu, lançar um livro tinha de ser coisa feita como em Espanha, no Brasil ou no estrangeiro, resumia. Isto é, em sede própria para levar os jornalistas a saírem das suas redacções, e isso, dizia com um sorriso jocoso, só se conseguia com festas e bolos. Resumindo, a si próprio se chamava tolo!
O facto é que o director editorial fisgou aquela ideia ao ler na Imprensa escrita as opiniões iluminadas do dito escritor em fase de aceitação crescente no mercado dos tops nacionais. «Pois se assim é, e ele lá deve sabê-lo, porque anda lá por fora, havemos de fazer da mesma maneira», pensou. E assim se fez doravante. Voltando um pouco atrás, dizia eu que haveria de ser coisa de vulto, figura política, por certo, talvez um ex-primeiro-ministro ou se calhar até mesmo o novo Presidente da República. Sim, talvez que ele estivesse já a pensar em publicar o tomo primeiro das suas grandes memórias, talvez já tivesse a coisa feita – em segredo, naturalmente, que é para que a coisa depois funcione em termos de efeito surpresa, porque nestas coisas dos livros o timming é fundamental. Pois estava capaz de apostar que seria o Presidente da República, tanto mais que agora me lembrava que, em recente visita à Índia, ele acabara de ser doutorado honoris causae em Literatura. Nem mais, era isso com certeza. Aproveitando a maré de aceitação dos seus méritos literários, quer em matéria de conhecimentos quer no que a obra feita respeita, o Presidente aprestava-se a lançar no mercado o primeiro volume das suas memórias. Enfim, é verdade que não estava no cargo há muito tempo, tinham passado apenas seis meses, mas enfim, o conselho editorial, reunido de emergência, provavelmente chegara à conclusão de que ali se desenhava uma boa oportunidade de negócio. Depois, era só questão de arranjar um nome minimamente intelectualizado para a obra e o prestígio do nome do senhor Presidente faria o resto. A decidir eu, iria por um título assim do género... «Seis Meses e Um Dia». Era mais do que certo que seria um sucesso. Por um lado, os seis meses a darem conta de meio ano de trabalho ininterrupto, de muita frescura nos acontecimentos, por outro, aquele «um dia» a suscitar nos leitores a curiosidade, a instilar no ar a ideia de que algo de especial se passara naquele dia... Sei lá!, como diria a outra. Sei é que ou muito me enganava ou seria mesmo a visita do senhor Presiden...
Não. E palavra que nesse instante quase me engasgo! Não era o Presidente. Estava eu naquelas minhas elucubrações divinatórias quando, seriam já as oito da manhã, ouço grande zunzum no exterior do edifício. Cá do alto, deito olho pela janela e que vejo? Motas, motas de polícia azuis e brancas! Batedores policiais fazendo guarda e abrindo caminho para a entrada nos jardins de um enorme BMW preto metalizado que avançava agora aos poucos conduzido por um tipo de ar soturno, a lembrar um gangster dos tempos modernos. Via-se que vestia todo de negro, sobretudo comprido sobre camisola de gola alta também preta, uns óculos escuros de marca compunham a figura. Lembrei-me logo de uma cena vista há uns meses na televisão, em que no aeroporto de Lisboa uns tipos que tais foram esperar um empresário da redondinha para lhe fazerem uma espera. Ali mesmo, na gare das Chegadas internacionais, à frente das câmaras de televisão e dos olhos incrédulos de quem quisesse assistir à cena. Conversa para cá e para lá, percebendo-se que ao embrulho estava um tal guarda-redes brasileiro que viera jogar para um clube alfacinha de implantação internacional, salta estalada de meia-noite! Coisa digna de registo em país terceiro-mundista e que acabou e bem, mais tarde, por ir parar ao livro de um escritor que se propusera escrever sobre figuras de vulto desse emblema. O livro tivera algum sucesso de vendas, quer por parte das hostes do clube em causa, quer nas fileiras das equipas adversárias. Os primeiros abriram as carteiras pensando ir ao encontro de uma galeria de textos jubilatórios dos seus heróis, os outros leram a coisa de maneira diversa e compraram para «gozar o prato». Chamava-se «Seres Benfiquistas» e na altura em que foi editado suscitou alguma polémica, originou alguns programas televisivos de debate acirrado, mas que logo, logo se dissipou quando, algumas fins-de-semana depois, o «roubo» de um pénalti escandaloso num derby do campeonato inverteu as agulhas do engalfinhamento público.
Nestas coisas do futebol o melhor é mesmo uma pessoa não se meter, sob pena de perder a cabeça e sob pena de perder o fio à meada narrativa. De modo que continuo a relatar o que vi no exterior do escritório, numa altura em que o supracitado BMW topo de gama (esta, outra expressão que sempre me deu que pensar, pois o «gama» sempre me levava a pensar no verbo gamar...) se imobilizava sobre o relvado com um enorme pneu ameaçando perigosamente um canteiro de Jarros que o senhor Pinto ali cultivara ia para um par de meses. De sacho às costas, testemunhando a cena mudo e quedo, o senhor Pinto não queria acreditar no que via.
Nem eu! Mas não, não era pelos Jarros que o bom homem se ensimesmava enrugando a testa de espanto. Era porque, tão-só, ali a dois singelos passos dos seus olhinhos que a terra (a mesma onde cresciam as flores) havia de comer, se encontrava a dona Etelvina Prazeres. Nem mais, ela, ali, em pessoa, a sair pela porta o carro exibindo um ar de gravidade, como se à sua roda se respirasse um clima de perigo iminente. E quem não a reconheceria das muitas vezes que aparecera nas televisões e nas revistas cor de rosa acompanhando o seu distinto ex-companheiro de casa e cama, o presidente de um clube nortenho de grande flama e conquistas futebolísticas nas últimas duas décadas? Todos certamente, eu incluído, embora, como talvez já tenham notado, seja alguém que só liga ao futebol à distância, enojado que ando com esse meio de suborno e corrupção que todos concordam em existir mas ao qual ninguém parece interessado em pôr cobro. E agora, agora sai-me esta ao alcance da visão, que, juro-vos, eu não queria acreditar no que via.
Esbaforido, que outra palavra melhor não encontro para traduzir o seu ar, o director editorial sai porta do gabinete fora, olhos esgalgados, todo ele sorrisos e floreados, desce até ao jardim e beija a mão à senhora Etelvina Prazeres. Coisa digna de recepção monárquica – embasbaquei. Não tardou muito até que os dois subissem os poucos degraus que levavam ao escritório e entrassem pelo gabinete onde me encontro adentro, o gabinete do director editorial, portanto, que agora se desfaz em galanteios e encómios à senhora Etelvina, dando-lhe a conhecer, em breves e vaidosas apresentações, os cantos ao gabinete. «Esta fotografia foi tirada aqui... esta acoli... aquela acolá...» Confesso que não percebi ao que ali se encontrava. Vistas as coisas, não errara por muito, sempre era alguém ligado a um presidente, bom, embora não o da República, mas sempre um presidente... Mas porquê ali? A que vinha? De onde vinha? Para onde ia toda aquela cena que já me estava a corroer de inquietação?
Que sim, que estava muito bonito, que tinham feito um belo trabalho, com muito apuro e cuidados, de resto, como a obra era merecedora, que, enfim, «não se preocupasse, antes relaxasse, talvez um copo de água?, não?, um sumo? de laranja. Natural? Sim? Sim, óptimo, óptimo. Só um momento» – pegando no telefone. «P’ala... sim, sou eu, traga um sumo de laranja fresquinho para a senhora Etelvina, por favor, obrigado, até já, até já.» Mas a senhora Etelvina não dava mostras de se acalmar. Trazia o espírito, notava-se, em estado de altercação, percebia-se logo que no íntimo do seu peito volumoso alguma coisa a perturbava, e todo esse leve mal-estar o seu rosto denunciava, todo ele pesaroso e amedrontado, numa preocupação latente, uma qualquer coisa que a afligia... «Sabe, é a primeira vez. Vão crucificar-me! Tenho receio das reacções...» «Ora, ora, minha senhora, deixe isso por nossa conta, então, afinal estamos no mercado há quase duas décadas, somos profissionais. Não se preocupe que tudo está previsto, tudo se vai passar bem e conforme previsto. A propósito, recebeu a nossa nota informativa acerca dos horários, o lançamento, os locais e tal...» «Sim, sim, quanto a isso estou descansada. Tenho é receio das manifestações...» «Mas quais manifestações? Manifestações, vai ver, só as terá de apreço, de regozijo pela sua coragem.» «Acha?» «Tenho a certeza.» «Ainda bem. E... você sabe... aquele... aquele tipo dos bigodes crescidos... o do outro clube... sempre...» «Schuuu... es-que-ça! Não fale nisso... é coisa que não aconteceu... que nunca se passou. Quer dizer, passou-se mas não se passou se me faço entender. Sei que irá lá estar e não se fala mais nisso.» «Mas terá dinheiro para comprar quantos exemplares?...» «Ui, ui, ui, menina, esqueça isso, por favor, já lhe disse que a coisa está tratada. Digamos que o que a gente vai poupar em publicidade investiu-se nisso...»
Estavam nisto – o director editorial mais dois editores, que aquele mandara chamar –, num apaparicar da senhora que não parecia ter fim, como se a distinta fosse a primeira dama do país, quando batem à porta. De um salto, o director editorial põe-se em pé e dirige-se ansioso para a porta. Qual não é o meu espanto, vejo entrar por ali dentro duas secretárias carregando dois maços de livros, ainda com cheiro a tinta e devidamente embalados pela gráfica, de onde, notava-se, vinham acabadinhos de chegar. Bem sei que nestas coisas de livros novos há sempre, por parte de quem os trabalha, uma curiosidade enorme, uma ansiedade, diria mesmo, em ver o resultado final. Isto é, em ver os livros, tocar o objecto, apalpá-los, fazer correr-lhes as páginas, vê-los e observá-los em todos os seus pormenores, admirando o primor do trabalho, os bons acabamentos, o brilho correcto do verniz, a escolha acertada das cores. Tudo isto, claro está, com grande dose de orgulho à medida e um não dissimulado medo em encontrar-lhes alguma gralha de impressão.
Batem novamente à porta. Solícita e sorridente, Paula (ou P’ala, como dizia de forma afectada o director editorial) pede licença para entrar com uma bandejinha na mão onde equilibrava um copo com sumo de laranja e dois pratinhos com aperitivos salgados: amêndoas descascadas, amendoins torrados, pistácios, cajus e era tudo. «Obrigado, P’ala, pode sair.» Diz-lhe o director editorial, não parando, por isso, de admirar a obra em mãos acabada de sair do prelo. Lá fora, o mesmo burburinho irritante, com restantes editores, gráficos, designers, secretárias, telefonista e os demais funcionários da editora, todos eles em pulos. Ao lado deles, os capangas da senhora Etelvina Prazeres, firmes e hirtos que nem estátuas, ali, encostados à parede perto da porta do gabinete, sempre de óculos escuros nas carantonhas, com ar de poucos amigos, a postos para o que desse e viesse não fosse certamente alguém atentar contra a integridade da patroa. Percebi então que também do outro lado da porta toda aquela gente já entretecia comentários a propósito de um livro que passava de mãos em mãos. Gunchinhos, ais e uis, sorrisos disfarçados, lábios mordidos em espanto por esta ou aquela passagem que liam na diagonal, a coisa haveria de ser deveras interessante.
Só eu, até então, nada ainda percebera do que se passava. Quer dizer, soube logo quem era a dita senhora e percebi depois que estaria, de alguma forma, ligada àquele livro misterioso que agora, também ela, afagava nas mãos delicadas sobre os joelhos, detendo, aqui e ali, numa ou noutra páginas ao acaso, o dedo indicador da mão direita, contrastando o vermelho vivo do seu verniz com o branco seco das páginas. E pela primeira vez, sorriu. Sorriu ao voltar a fechar o livro e ao ver novamente a sua fotografia na capa, bem como ao ouvir os outros dizendo que estava «maravilhosa, óptima, fantástica, uma verdadeira senhora»... disse o director editorial, corrigindo: «Bem, perdão, naturalmente que uma senhora já é!» E para disfarçar estendeu-lhe o exemplar que tinha nas suas mãos pedindo-lhe no imediato um autógrafo. A senhora Etelvina Prazeres, nesse momento inaugural da sua carreira literária, não conseguiu disfarçar a vaidade que já a roía no peito. «Com certeza, senhor director editorial, onde é que assino?» «Onde entender, cara autora», volveu-lhe o prestimoso director editorial, abrindo-lhe o livro nas páginas iniciais. «Aí, aí, pode ser aí», apontou com o dedo da mão esquerda enquanto com a outra levava à boca um punhado valente de cajus. «Ai, sabe como é isto, um vício, começa-se a comer e não se consegue parar...»
Etelvina Prazeres lá apôs o seu nome na terceira página do livro, uma daquelas que se deixa em branco no início, regra geral onde aparecem as dedicatórias ou as epígrafes. Ali, no caso, não havia epígrafe, o que era de estranhar. Ao contrário, no final do livro a autora fazia os seus agradecimentos da praxe a quem a ajudara a tomar em mãos e levar a bom porto tal empresa, de que ela jamais se suspeitara capaz, reiterou quando acabava a assinatura. «Ora, ora», disse-lhe logo o director editorial desvalorizando a questão, «minha querida autora, soubesse você a quantidade de escritores que para aí andam e não sabem alinhar meia-dúzia de frases com lógica umas atrás das outras. Imaginasse você a quantidade deles que não faz ideia do que seja uma frase com sujeito, verbo e complemento! E as concordâncias? Ai as concordâncias!». Etelvina sorriu, mais descontraída, e de novo todos se puseram a gabar a excelência da obra em mãos. E o director editorial naquilo, como eu nunca vira em anos e anos de trabalho. Autora para aqui, autora para ali, que o sucesso estava garantido e que se ela assim o entendesse desde já poderiam começar a pensar num novo volume. Ao que ela: «Ai, não sei, talvez seja demasiado cedo, queria primeiro ver a reacção do público, dos leitores, da crítica, quem sabe. Mas obrigada desde já, obrigada por acreditar em mim».
Não penso que o director editorial verdadeiramente acreditasse nela. Quer dizer, pelo menos como autora, como futuro vulto ou promessa da literatura nacional. A verdade é que não parecia o mesmo, não podia tratar-se do mesmo profissional exigente que eu conhecia, de anos e anos de trabalho de autêntica prospecção literária, de descoberta de novos valores, daquele director editorial sob cujos auspícios haviam nascido, ao longo de cerca de duas décadas, tantos e tão bons autores. No romance, no teatro, na poesia, no ensaio... E agora!? Agora ali, babando-se com a senhora Etelvina Prazeres e com aquela que, percebi, seria ou era a sua primeira obra literária. Quando, depois de muitas trocas de palavras, os dois se levantaram, acompanhados pelos editores presentes, para saírem do escritório, consegui por fim aperceber-me de que género de livro se tratava. Virando-se de costas para o local onde me encontrava, o director editorial pegou no livro com a mão esquerda e levantou-o no ar, repetindo «Um sucesso! Um sucesso!» Foi então que vi, foi então que vi tudo, vi e não queria acreditar. Era eu, sim, eu, eu mesmo, eu ali na capa daquele livro com autoria da senhora Etelvina Prazeres. E por cima de mim, um pouco abaixo do título, que era, tão-só, o nome da dita cuja, o subtítulo da «obra» que, ao lê-lo de relance, de imediato algo me elucidou sobre o seu cariz: «Verdades Verdadeiras».

1 comentário:

Daniel J. Skråmestø disse...

Por favor, letra pretas sobre fundo (quase) branco! A bem dos olhos do leitor.