sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Editorial

Alice, do blog http://www.atraducaodamemoria.blogspot.pt/ alerta-me, e bem, para o facto de por duas vezes, nos dois primeiros parágrafos do capítulo VII de «A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote», surgir repetida a palavra «editorial». A verdade é que misteriosamente não consigo fazer com isso deixe de acontecer!

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Um livro lixado! Capítulo VII

VII.

Um Pêra Manca que desapareceu até à última gota. Coisas antigas, do Menano e da Severa. Alegria, alegria pura, e Dona Paula berrando ais e aflitos para grande espanto do director editorial.



É quase verdade, mas apenas quase verdade que o director editorial editorial passa este livro inteiro contente. E razões para tanto tinha-as de sobra, como vimos relatando e do relato se vai inferindo. Os horários tinham-se cumprido, os convidados não tinham faltado à chamada, os jornalistas responderam com a sua presença ao isco dos comes e bebes, Etelvina Prazeres não se tinha mostrado mal de todo na sua comunicação, ele próprio gostara assaz do seu discurso introdutório, a cena do Bigodes tinha funcionado, o almoço estava um pitéu, tal como o Pêra Manca que desapareceu das garrafas até à última gota. Porém, cedo se verá que esse seu estado de felicidade não durou para sempre.
Eram quase três da tarde quando Etelvina Prazeres e o director editorial, sempre seguido de perto pelo editor, saíram do Grande Hotel. Lisboa derretia ainda sob um sol inclemente e impiedoso, mais parecendo que se estava em Marrocos. Devidamente escoltada pelos capangas, a feliz autora despediu-se do seu director editorial e do seu editor e entrou no seu BMW, pois que tinha agora de descansar após um tão grande esforço matinal, que, soubessem, era coisa a que não estava muito habituada, o levantar-se cedo, pois, na verdade, estava muito mais habituada a viver a noite que o dia. Desculpassem, sim? Beijando-a nas faces, é claro que os dois desculparam e lhe disseram até à próxima, passe bem, nós vamo-la pondo ao corrente das vendas e contamos consigo para as próximas sessões de divulgação. Depois do BMW arrancar, de novo em grande aceleração, os dois homens dirigiram-se para o carro da relações públicas que os aguardava, pronta a seguirem para a editora.
Assim fizeram. E pouco tinham andado quando, passando pela zona da baixa da cidade, olhando o director editorial pela janela teve uma estranha sensação. Foi assim como se se tivesse assustado com alguma coisa, dando mesmo um leve salto na cadeira, endireitando as costas e abrindo os olhos mecanicamente. Vinham a descer a Rua do Ouro quando, olhando para a sua direita, na rua onde desemboca a estação de Metro da Baixa-Chiado, julgou ver um cavaleiro por entre as muitas pessoas que ali se cruzavam. Como a relações públicas guiava um pouco depressa e o semáforo se tinha posto verde, o director editorial ficou meio na dúvida sobre se efectivamente vira o que julgara ter visto. Ainda olhou para trás, perguntou ao editor se também tinha visto o mesmo, mas aquele... nada! «Cavaleiro? Qual Cavaleiro, director editorial? Não, não vi nada, vai ver foi só uma sugestão de tanto olhar para as nossas capas, isto é, para a capa do livro da Etelvina.» O director editorial concordou. Coçou a testa, estalou a língua e voltou-se para a frente, dizendo: «É, só pode ter sido uma alucinação, não foi uma manhã fácil. Um cavaleiro na Baixa, um Dom Quixote no Rossio, imagine-se, só mesmo eu, mas haveria de ter a sua graça, lá isso haveria...»
O percurso todo de volta até à editora levou-o o director editorial a cantarolar uns fados de que gostava, assim numa espécie de mix, misturando umas coisas antigas, do Menano e da Severa, com outras mais recentes, sobretudo algumas canções cantadas pelo Camané. Da Mariza não, que não gostava da pose encenada da figura, para além de que já não suportava vê-la no programa do Herman, e se era para ouvir cantar bem, bom, então que, nesse caso, preferia a Cristina Branco. «Na rua da solidão,/ Sem alegrias nem dores,/ Habita o meu coração/ À espera dos seus amores./ Meus amores onde estão?/ Uns partiram sem querer,/ Andam perdidos alguns,/ Outros são meus sem os ter/ Como se fossem nenhuns./ Quando e como os posso ver?/ Há castelos, há inimigos,/ Que não os deixam passar,/ Mas sei que não temem perigos/ E sei que me ouvem chamar./ Quero meus os seus castigos!/ Da rua da solidão,/ Onde o sol mal chega às flores,/ Parte, vai, meu coração,/ Em busca dos teus amores./ Meus amores vencerão.» E foi nisto uns bons quilómetros, mudando depois para uma quadra simples em honra da Severa, que já não sabia dizer quem a cantara originalmente: «O fado nasceu/ Num dia de Primavera/ Teve por berço a guitarra/ Por madrinha a Severa.»
Alegria, alegria pura, tanta que o próprio editor e a prestimosa e sorridente relações públicas se entreolharam como que ambos se perguntando se não haveria ali qualquer coisa a mais que falhava. Teria perdido um parafuso? Endoidecido? É bem certo que com o furo que era o livro de Etelvina as coisas, na empresa, muito possivelmente passariam a correr melhor. O livro vender-se-ia aos milhares, nisso todos acreditavam, e podia bem ser que ali estivesse o filão de que a editora necessitava para inverter um rumo de queda na evolução dos gráficos de vendas. Os últimos meses, todos o sabiam, não tinham sido nada fáceis e o futuro não se mostrava prometedor se a empresa continuasse apenas a insistir nos seus autores de sempre, sim, nos seus velhos autores, porque não dizê-lo abertamente?, nesses autores que escreviam muito bem, ninguém duvidava ou isso punha em causa, mas cujos livros, e a realidade contabilística nisso era muito crua, não havia maneira de se venderem, de interessarem ao público. De modo que apostar no livro de Etelvina, apesar de ter sido uma decisão controversa e difícil, ambos concediam, tal como os demais colegas de trabalho na editora, que era um passo não só acertado como necessário à sobrevivência de todos. Para mais, era só um livro! Que mal poderia vir daí ao mundo? A única coisa a que torciam olho, no entanto, era aquele comportamento do seu director editorial que, apesar de justificados motivos, lhes parecia algo excessivo... mas enfim, podia ser que lhe passasse...
Se o editor e a relações públicas se punham nestas dúvidas enquanto não chegavam à empresa e ouviam o seu director editorial numa quase desgarrada fadista, com mais razões de preocupação ficaram logo após terem dado por concluída a viagem. Chegados ao jardim da vivenda, estacionando no local onde estivera parado o BMW, mal saem do carro salta-lhes ao caminho, descendo as escadas a correr, a Dona Paula, berrando ais e aflitos, senhor director editorial para cá, senhor editor nem queira saber para lá, senhor director editorial, ai, o que vai ser de nós... «Mas o que vem a ser isto, P’ala? Acalme-se, mulher, acalme-se, vamos para dentro e conte-me tudo com calma!», diz-lhe o director editorial, pegando-lhe num braço e encaminhando-a para dentro da vivenda. Aos poucos, todos os funcionários da casa foram regressando da sessão de lançamento, e chegando à empresa bem dispostos e confiantes no futuro, logo, logo, ouvindo as lamúrias e desconsolos da Dona Paula, se punham de pulga atrás da orelha, estranhando o que se passava. Pois não era aquele um dia em que haviam todos de estar contentes? Só se compreendia se tivesse falecido um familiar à pobrezinha, aventou como hipótese alguém. Mas também, quem é que haveria de ter o mau gosto de se ir desta vida para a outra logo num dia como aquele, provavelmente o dia mais importante da história da editora?...

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Blogospérolas - Do blog de um taxista brasileiro

Um punhado de corridas soltas
Certos dias a literatura me abandona. Olho para meu dia de trabalho e vejo apenas algumas corridas avulsas. Uma passageira recuperando-se de um câncer de mama. Careca, devido à quimioterapia, ela está indo a uma loja especializada em perucas. Disse que não agüenta mais usar chapéus e lenços. Detalhe: leva junto seu sobrinho, com cabelos além dos ombros, que resolveu doar suas madeixas à tia doente. Professora de escola infantil, a passageira está envolvida em polêmica com pais de alunos que acham que o teatro pode induzir seus filhos ao homossexualismo (?). Casal de idosos discutindo entre si. A intolerância de ambos revela a que ponto pode chegar o desgaste de uma relação. Saíram do táxi tão alterados que esqueceram de pagar a corrida. Tive que chamar a dupla à realidade. Passageira quieta. Deu o destino da corrida e encolheu-se no canto do banco. Arrisquei oferecer-lhe meu livro, o Taxitramas. A partir daí o clima se descontraiu. Ficou com um exemplar para presentear o marido, que é jornalista. Mulher levando a mãe, cega, para passear no Jardim Botânico. A senhora idosa, que perdeu a visão há aproximadamente um ano, revelou que exercita os sentidos que lhe sobraram em meio aos sons, aos aromas, às texturas e aos sabores do parque. "Esta é a época das Pitangas!" Jovem jogador de futebol. Um empresário o trouxe da Bahia para tentar a sorte nas categorias de base do Grêmio. Levei-o até o Estádio Olímpico. Ao notar o desinteresse dos garotos que caçavam autógrafos no portão do estádio, meu passageiro sentenciou: "Um dia, eles vão correr atrás de mim". Histórias a granel, que qualquer taxista colhe em uma hora e tanto de trabalho.

A Arrumação dos Dias


A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Eu até publicava isso, mas... Capítulo VI

VI.

Um assobio misterioso. Um tipo de bigodes e figura avantajada. Autores à escala real. Doutora Etelvina, devo dizer-lhe que não leio um livro desde a 1ª classe!... Um escritor deve ter cuidado.

Foi descuido, sim, confesso. Quem quiser que se queixe ao provedor dos leitores de livros... É verdade que há dois capítulos deixei a pairar na atmosfera uma ponta deste novelo narrativo que talvez tenha intrigado alguns dos leitores. Ou talvez não, mas seguramente aqueles mais atentos aos pormenores, também aqueles críticos que esquadrinham um texto ao pormenor tentando agarrar um descuido do escritor, alguma coisita a que se possam agarrar para deitar abaixo a sua obra. Mas, sinto muito, desta vez talvez não tenham sorte, porque recupero aqui e agora a tal ponta do novelo que deixei a pairar lá mais para trás. Exacto, exactamente, o tal assobio misterioso que se ouvia no salão do último piso do Grande Hotel enquanto decorria a sessão de lançamento do livro de Etelvina Prazeres. E o nome dela, da autora, sim, que também alguém gritava com voz forte e sonante.
Volto um pouco mais atrás ainda e peço ao leitor que se recorde da conversa inicial havia entre Etelvina Prazeres e o seu director editorial editorial, essa, essa mesma, a das oito e pouco, ainda bem cedo no escritório da casa editora. Entre dentes e a medo, recordar-se-ão que às tantas Etelvina Prazeres perguntou ao director editorial por um tal de Bigodes – que depois soubemos ser mesmo nome próprio, portanto a passar a grafar-se com maiúscula – e se a coisa estava tratada. Pois, recordar-se-ão também, e não será preciso interromper a leitura para voltar às páginas iniciais, que o director editorial tentou logo ali abafar e matar o assunto dizendo que sim, que a autora não se preocupasse, que estava tudo tratado, que mais não se falasse no assunto e que o livro havia de ser um sucesso, ele tinha a certeza e o mais que disse foi para ali enterrar «a coisa» de uma vez por todas.
O assobio, pois: no meio daqueles convidados todos bem vestidos, um silvo estridente a sair de entre as muitas cabeças presentes e a sobrepor-se ao barulho das palmas. Nesse instante, do primeiro assobio, só mesmo o conviva mais atento poderia ter reparado num rápido piscar de olho que o director editorial lançou, por trás das costas de Etelvina, ao editor, que lhe correspondeu com um ligeiro anuir de cabeça. Não fosse eu, modéstia à parte, narrador atento e também nele não teria reparado. Mas felizmente que reparei, podendo este dado agora transmitir-lhe, caro leitor, e permita-me que o interpele assim de forma tão directa. Pois como adivinhará, esse assobio partiu, nada mais nada menos, do tal Bigodes – frisamos, com maiúscula, pois assim é conhecido e tratado pelos da sua roda –, sendo também ele o autor dos chamamentos por Etelvina.
Ora, o Bigodes. Não uma personagem qualquer, desde logo se avance, antes uma peça a não descurar neste somatório de tantos sucessos havidos num só dia! Tantos que dariam para metade de um livro, acreditem. Era impossível, de resto, não reparar nele ou não tropeçar nele, melhor dizendo, tal o avantajamento de carnes da sua figura. Para mais, o dito fazia-se notar pela farta bigodeira – que a início lhe dera alcunha e, está de ver, mais tarde virara nome próprio –, e pelas vestes que trazia coladas ao corpinho. Vermelho! Todo ele era vermelho, de um vermelho garrido e vivo, assim a lembrar os equipamentos de um clube da capital, um clube com pergaminhos futebolísticos, com feitos históricos de monta, embora, é bem certo, alcançados há muitos anos, que de então para cá tem sido uma seca de títulos maior do que aquela que, em certo momento da história recente, calhara em sorte ao seu rival da mesma cidade, mas esse a trajar de verde.
A chegada do Bigodes ao hotel também não foi pacífica, tendo desde logo alertado os funcionários para a «peça». Chegado ao átrio de entrada, não fez mais nada, dirigiu-se a passos e braços largos e abertos para Etelvina. Quer dizer, para aquela que ele julgava ser a Etelvina, mas que era, afinal, apenas uma «sócia» da autora em cartão feito à escala real. Ou seja, uma coisa muito na moda nalgumas editoras que para promoverem os seus autores, pelo menos aqueles que são considerados best-sellers, tratam de fazer réplicas deles em cartão à escala real, pondo-os depois em locais estratégicos para ajudar às vendas dos seus livros. Há uns tempos, e a este respeito, agora que aqui se fala nisso, ouvi a um jovem escritor algarvio de rendilhada imaginação uma história curiosa que ele congeminara e pensava vir a pôr em livro. Contava ele a história de um livreiro qualquer de província que levava um desses «escritores de cartão» na mala do carro quando, a caminho do Alentejo onde residia, foi mandado parar numa operação STOP da Brigada de Trânsito. Qual não foi o susto dos agentes quando, tendo mandado o homem abrir a bagageira, se depararam com a figura encolhida de Miguel Sousa Tavares, assim meio ao lusco-fusco. Não é que sacaram logo das pistolas e queriam levar o livreiro preso pensando que ele tinha sequestrado o autor do «Equador», tendo sido o cabo das tormentas para os levar a acreditar que não era uma pessoa que ali estava?! É bem verdade, tirem daqui a lição, andar com escritores na mala dos carros, ainda que de cartão, não é coisa recomendável.
De novo no hotel, agora para contar de como o Bigodes, tendo-se apercebido da gaffe que cometera com a figura de cartão de Etelvina, se dirigiu depois ao elevador subindo até ao local do lançamento da inovadora e singular obra-prima que ali se dava a conhecer ao mundo literário. Pois à custa do seu porte teve de subir sozinho com o ascensorista, um desgraçado que levou com a sua barriga e o seu cheiro a suor, e mal chegado à zona do restaurante começou a furar por entre os convidados para se chegar perto da mesa e dos seus três oradores. Deixou-se, a início, ficar a cerca de uns três metros do local e foi daí que lançou as suas assobiadelas e os seus gritos de apoio e incitamento à neófita autora.
No final dos discursos estava prevista a sessão de autógrafos da praxe. Embora ainda levemente nervosa com todo o aparato, a autora prontificou-se à tarefa deixando-se ficar no seu lugar na mesa, onde começou a receber as pessoas em fila, isto é, aquelas que já tinham enchido a barriga quanto baste e ali voltavam para não parecerem mal. De modo que a maior parte deles voltava com o livro numa das mãos e um croquete na outra, ou então uma tâmara enrolada em presunto, quando não mesmo uma suculenta perninha de frango. Curiosamente, quem não vinha com comida nas mãos era o dito Bigodes. Ao contrário, e sendo muito de espantar pois toda a gente conhecia aquele fervoroso adepto do clube encarnado, o Bigodes levava, sem exagero, uns sete ou oito livros em cada mão. Foi facto digno de grande espanto entre os convivas, pois ninguém ignorava que o livro de Etelvina Prazeres atacava fortemente o seu ex-marido, como se sabe, um renomado presidente de um clube do Norte. Era então óbvia, mais do que óbvia, a afronta que a presença do Bigodes ali significava. Ainda para mais com uma data de livros na mão!
Fingindo-se surpreendida, quando chegou a vez de Etelvina Prazeres assinar os livros do Bigodes, a autora fez um compasso de espera, olhando-o nos olhos. Nada se incomodando com isso, o Bigodes sorri-lhe dizendo: «Doutora Etelvina, devo dizer-lhe que não leio um livro desde a primeira classe, quando a isso fui obrigado. Em casa só tenho o livro das glórias do meu clube, que está lá junto aos DVDs e, se não me falha a memória, uma Bíblia que um dia lá deixaram uns rapazitos bem vestidos e de mala a tiracolo que se diziam testemunhas de não sei o quê... Eu disse-lhes que sim, que deixassem o livro já que faziam questão, mas que não os podia atender uma vez que nem sequer tinha visto o acidente... Mas, prontos, Doutora, é só para lhe dizer que apesar disso é com muito prazer e gosto que aqui vim para que me assine estes seus livrinhos. Para quê tantos, ora, ora, para oferecer aos amigos, claro! Faça favor, Doutora, isso, aí está muito bem, pois, pois... Este primeiro é para mim, ponha aí, para o Bigodes. Os outros...»
E esteve naquilo uns dez minutos, tecendo loas à Doutora, dizendo-lhe, um a um, os nomes dos amigos aos quais desejava ofertar a obra. Tudo foi correndo de forma pacífica até que no fim, depois de muita risada e estardalhaço – cumprindo assim a missão «publicitária» que lhe fora encomendada –,tudo ia dando para o torto, quando, já muito farto de ouvir e ver o Bigodes a engalanar-se todo a si e ao seu clube, não se mostrando capaz de engolir a afronta da sua presença ali, um adepto do clube nortenho esteve em vias de ir às trombas do Bigodes, só isso não acontecendo porque os dois capangas da senhora Etelvina intervieram de imediato pondo fim à hipotética contenda que se ficou por umas ofensas e uns palavrões de parte a parte. O Bigodes só dizia: «Anda cá que eu espeto-te um kit no focinho, ó filho da puta»; e o outro: «Bigodes de merda, vê lá é se não te fo...». Bigodes, sim, rimaria com o termo censurado, mas é melhor não entrarmos por aí sob pena de se achincalhar um texto que até agora tem sabido eximir-se a palavrões e asneiras, e, já sabem como é, um escritor tem que ter cuidado com estas coisas pois os críticos andam aí!

Cine-Silêncio Jim Jarmuch - Coffee And Cigarettes

Silence Artnews - O regresso do Cirque du Soleil


Quando ainda se apresenta em palco entre nós está já agendado novo regresso a Portugal do prodigioso Cirque du Soleil. Acontecerá entre 24 de Abril e 11 de Maio, no Passeio Marítimo de Algés. O novo espectáculo chama-se Quidam, pronunciado “key-dam”; vem do latim e significa transeunte anónimo, uma figura solitária numa rua qualquer, alguém que passa à pressa, que se sente sozinho no meio da multidão. Dirigido por Franco Dragone, Quidam transforma um mundo anónimo num espaço de esperança e de relacionamentos. Em palco maiss de 50 artistas de mais de dez países irão combinar arte acrobática, mestria técnica, criações extravagantes e inspiração musical excepcional, harmoniosamente entrelaçadas por um fio emocional dramático. Os bilhetes estão já disponíveis na FNAC, Bulhosa, Bliss, Worten e Abreu e à venda para os membros do Cirque Club em http://www.cirquedusoleil.com/

In Silence Progress - Jorge Martins


De 5 de Dezembro até 18 de Janeiro oportunidade, em Lisboa, na Giefarte, Rua da Arrábida, 54 B/C, para apreciar novo capítulo na pintura de um dos mais destacados pintores nacionais, Jorge Martins. «O Instante de Um Corpo» é o título desta reunião de novos quadros em que o artista se reinventa na procura do dizer.

Tábuas de Silêncio - O Fazedor de Teatro


Hoje e amanhã, às 21h00, no CCB, derradeiras oportunidades para (re)ver a peça «O Fazedor de Teatro», de Thomas Bernhard, que a Companhia de Teatro de Almada repõe com encenação de Joaquim Benite. «O Fazedor de Teatro» ganhou em 2004 o Prémio da Crítica.

Silence Artnews - Hermitage para crianças


Exposição Arte e Cultura do Império Russo nas Colecções do Hermitage
Visita Orientada para Crianças dos 6 aos 10 anos
Todos os Sábados às 15h00
Durante as férias de Natal, dias 17, 18, 20, 21, 27 e 28 de Dezembro às 15h00
Inscrições abertas através do telefone 213650800, ou na bilheteira da exposição no dia da visita

Silence Artnews - Colecção Tempo do Vinil

http://www.photosbyworld.com/e-card/tempodovinil/
À venda a partir de hoje, para rever e coleccionar os grandes marcos da música portuguesa das suas últimas décadas.

Histórias Fulminantes 51

O Senhor K. leu: Na perseguição que moveram ao ladrão as testemunhas oculares tropeçaram e partiram os óculos, pelo que o seu testemunho em tribunal não foi considerado válido.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Outros Silêncios

«O silêncio é invenção da boca humana. O animal levantou-se nas suas duas patas e escutou o não-ruído. O predador furtivo estava perto. O não-ruído é o que precede a caça e o caçador. O não ruído antecipa o uivo e a trituração. As criaturas fizeram então o silêncio para suplantar o não-ruído. A pausa das batidas do coração carnívoro e devorador. Até então a floresta mugia (...) Tristes criaturas guardaram o silêncio contra a morte, o não ruído. Cantam para fazer o silêncio, como os pássaros e as baleias no bojo das trevas. Um silêncio mortal sob o signo da sua finitude, a seta desferida, a certa, despedida.»

Maria Velho da Costa, in «Textos Pretextos», 2004

Pais e Filhos - Eagle-Eye Cherry - Skull Tattoo

Pais e Filhos - Neneh Cherry

Pais e Filhos - Don Cherry com Sonny Rollins

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote ou Epá ideia do caraças! V Capítulo

V.

Trocas no desfiar do novelo narrativo. Dom Quixote às aranhas por Lisboa, dando ares, ais e uis de poeta. Um prestimoso oficial de segurança pública. Uma opinião discutível enquanto japoneses disparam em fila no Chiado. Ó Silva, epá, deixa o homem!...



Enquanto toda a sessão do lançamento de «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal» decorreu com franco sucesso, como disso atrás se deu conta e relato, Dom Quixote continuava como se às cegas deambulando pela cidade. Desnorteado, uma vez mais, pois à custa do imbróglio em que se metera na rampa do parque de estacionamento da Gulbenkian, o seu alazão deitara-se dali com ele à garupa desencabrestado pela cidade, fugindo, para onde o galope o levasse, dos automobilistas cujos carros amolgara com os cascos. Destreinado que estava, e como se o último dos automobilistas da fila tivesse feito marcha atrás para vir no encalço deles, Rocinante mal se tinha nas pernas quando, por fim, puderam refrear o passo e descansar um pouco. Mas não foi nada fácil, e a única coisa que os safou do encalço do furibundo automobilista foram os semáforos vermelhos que aquele encontrou pela frente e que Rocinante olimpicamente ignorou, com grande risco para as vidas de montada e cavaleiro.
E neste ponto aproveitamos para de novo passar a palavra ao próprio Dom Quixote, afinal, como ninguém, homem de bela e segura literatura. Creio que nas mãos da sua escrita ficarão bem entregues para atravessarem a leitura deste capítulo. Verdade também se diga, e o seu a seu dono, foi Dom Quixote quem começou este relato, tendo-me eu, narrador, às tantas, apropriado da sua narração sem pedir licença. Por isso mesmo, e desde já, é essa mesma licença que pedirei ao cavaleiro para mais daqui a pouco tomar de novo as rédeas deste relato, nomeadamente das peripécias ocorridas no outro lado da história, isto é, seguindo os passos do director editorial e sua equipa, até porque Dom Quixote já não se encontra perto deles para o poder contar. Mas calo-me, senhor Dom Quixote, a narrativa está por sua conta.
Estava a ver que nunca mais, homem. Eu para aqui perdido, aflito, sem saber para onde ir e o que fazer, e você aí, a entreter o leitor com palavreado. A isto, meu fiel Rocinante, à história antes que um qualquer escritor arrivista venha e se aproprie destas ocorrências, deste caso sui generis havido na edição literária portuguesa. E faço aqui o ponto da situação, até para minha própria contextualização. De outra forma, belisco-me (ai!!!) uma vez mais para confirmar que estou acordado, que tudo aquilo que até agora se contou se passou realmente, que eu, ilustre Dom Quixote de La Mancha, cavaleiro em Portugal há quase duas décadas pugnando pelo bom nome da literatura e da edição em português, me vi na circunstância de ter de me vir embora, envergonhado que estou do rumo editorial a que tentavam agregar o meu nome, a minha silhueta! Eu, na capa de um livro, lado a lado com o nome de Etelvina Prazeres!!! É lá isso possível? Ah, mas não, se pensavam que eu ia comer e calar bem se enganaram, Dom Quixote não cala nem consente porque é filho de boa gente. A moral, a moral e a dignidade acima de tudo, de todas as razões, de todos os propósitos. Maquiavel comigo não! Comigo nunca, que de outra estirpe de homens me faço, ontem, hoje e para todo o sempre, assim o afirmo sobre o nome da minha adorada Dulcineia.
E agora, onde estou? Que raio de cidade esta que já não conheço. Ups, o Marquês, o velho Marquês do Pombal, ah, sim, agora estou a ver onde estou, a velha Rotunda, pois então, se não me engano, para baixo, sim, para sul, deve estar para ali o Tejo. Ala, meu fiel Rocinante, que aqui não é bom sítio para nos determos por muito tempo, cuidado com os carros, ui, ai, vamos, vamos, atenção ao autocarro... Ah, sim, este cheiro, este cheiro, sim, conheço... a água, o rio, a frescura das águas do rio, sim, é o Tejo... Ah, velho e bom Tejo que nasces a beijar as terras de Espanha vindo exilar-te, por entre pedregosas e sinuosas margens que te oprimem, em solo lusitano...
Peço desculpa, mas tenho de interromper novamente o discurso de Dom Quixote, não porque o mesmo não seja interessante, mas antes porque o letrado se demora demasiado nos ais e uis que lhe custou mais este troço da sua fuga citadina em direcção às águas do Tejo. E ainda para mais quando começa a dar em poeta! De modo que, assim ele me desculpe e os leitores, reportarei desse percurso atribulado os acontecimentos mais relevantes para uma boa fluência da história, tentando eu mesmo levá-la doravante até ao fim. Era já hora do almoço e o nosso cavaleiro ainda não tinha levado nada ao estômago. Quer ele, quer o seu cavalo estavam, por assim dizer, esfaimados. De modo que foi a custo que desceram toda a Avenida da Liberdade, não só pelo calor como, voltamos a referi-lo, pelo trânsito que não dava mostras de melhorar.
A sorte do cavaleiro, como já dissemos, foi que todos na cidade que com ele se cruzavam achavam que era apenas um figurante numa qualquer campanha publicitária que os nossos vizinhos espanhóis estivessem a patrocinar em solo português. Provavelmente, a tentarem espetar a primeira lança de uma invasão castelhana em Portugal!, pensavam uns, enquanto que outros, pouco se importando com isso (sobretudo aqueles que até nem viam tal hipótese como algo a descartar – eram, sobretudo, tipos que no antigamente fumavam Ducados, torciam pelos espanhóis no hóquei em patins e, claro, sempre que podiam davam um salto a Badajoz a comprar caramelos e lavanda), dele se aproximavam a ver se lhes calhava um presentito qualquer, um recuerdo, quem sabe uma T-shirt a dizer Viva España, ou então um crachá ou até mesmo um caramelito que fosse...
Incomodado com a fome e com os portugueses que o abordavam no seu portunhol característico («Hombre, tienes presentes para mi?»; «Ó Quixote, o que é que tienes aí para a giente?»), Dom Quixote deles se ia libertando como podia, ora apontando-lhes a lança, ora sugerindo-lhes valente pontapé. «Não pares, meu alazão, não pares, que esta gente é pior do que as moscas à volta da bosta! Mete por aí, vá, vamos por esta rua a ver se os despistamos.» A verdade é que somente a eles, e a mais ninguém, se despistaram novamente, tendo ido parar ao Chiado após íngremes subidas que deixaram Rocinante extenuado. Tinham de parar e foi o que fizeram chegando ao Largo do Chiado, o velho «frade putanheiro», no dizer do grande escritor José Cardoso Pires, que Deus o tenha junto de si no Olimpo literário. E foi junto à estátua do dito frade, sempre na sua pose agoirenta de vendilhão de banha de cobra, que Dom Quixote desceu dos estribos dando alguma folga e descanso ao seu companheiro de fuga. Como se não houvesse ali lugar para deixar a montada Dom Quixote percorreu o lugar em volta com o olhar, até dar de caras com um agente da Polícia de Segurança Pública, que dele se aproximava com um bloquinho de multas na mão.
«Ora muito boa tarde senhor cidadão», disse o agente. «Então o que é que temos aqui?», perguntou ao Quixote como se não soubesse de antemão o que ali tinha e que não era senão um cavalo mal estacionado. «Já sei», respondeu-lhe o Quixote, «aqui não se pode estacionar, não é?» «Correcto, cidadão, é exacto, confirmo». «Ó senhor guarda, mas onde estaciono então o animal que me está prestes a desfalecer não tarda?». Apercebendo-se de que de facto Rocinante não estava nas melhores condições, para espanto e alívio de Quixote, o guarda disse-lhe que desta vez lhe perdoava a multazinha e que, sendo ele membro da direcção da Liga Portuguesa dos Amigos dos Animais, ele próprio teria muito gosto em levar dali o bicho e pô-lo a descansar em sítio apropriado, nas cavalariças da esquadra de Polícia que não era longe, era, imaginasse e visse nisso a sorte com que estava, mesmo ali ao lado, a dois passos!» Dom Quixote agradeceu e aceitou, dizendo ao prestimoso oficial de segurança pública que então daí por uma horazita, pouco mais ou menos, que era só o tempo de ajeitar o estômago, por lá passaria a buscar o animal para depois seguir viagem.
Assim fez e logo ali ao lado se sentou numa mesa que uns estrangeiros, entusiasmados pela cena que haviam testemunhado e fixado em fotografia, tinham acabado de vagar. Foi já sentado e com a lista dos comes e bebes na mão, que o empregado lhe trouxera, que virando-se para o lado deu de caras com Fernando Pessoa. Com Pessoa, vamos lá, enfim, com a estátua do poeta dos heterónimos. E foi coisa de mais espantar, pois era a primeira vez que quem frequentava a esplanada via lado a lado os dois vultos maiores das literaturas ibéricas... Bem, quer dizer, é uma opinião possível, pois certamente que outros a não corroborarão lembrando o narrador, assim pudessem, que outro vulto maior das letras lusas havia e que, por sinal, até bem perto daquela cena se encontrava. Era Camões, pois claro, também em forma de estátua cinquenta metros ao lado, mas, e concedemos neste ponto, com muito maior dignidade, já que a sua estátua não só era muito maior que a de Pessoa, que até se encontrava sentado, mais parecendo um velho que não se aguentasse nas pernas, como também mostrava muito claramente aos olhos do povo quem, de entre os aedos nacionais, era o maior entre os maiores. E quem? Ele, claro, o autor d’«Os Lusíadas», ou não encimasse a sua estátua o pedestal onde se encontrava, tendo abaixo de si, e a toda a sua volta, os outros lentes literários, numa clara posição subalterna.
Dom Quixote escolheu o bom e o melhor que constava na carta. E, claro, não familiarizado com a novidade dos euros não fez contas à despesa final. Verdade se diga que mesmo que as quisesse ter feito, não sei se teria conseguido chegar a valor fidedigno, ou não fosse ele um poeta, um escritor, um homem de letras e não de números! Mas adiante, para confirmar que estavam boas as entradinhas de presunto e cogumelos fatiados, que o strogonoff não lhe pareceu mau de todo (face à zona turística onde se encontrava) e que o gelado lhe caiu que nem ginjas, que por acaso também as tinha, no topo, em vez da costumeira, cereja. Lambeu os lábios por diversas vezes, afagou o estômago e limpou barbas e bigodes, dando-se por refeito de energias e satisfeito quanto baste. Quando olhou em frente, muito espantado ficou com uma fileira de japoneses que, uns ajoelhados, outros de pé, lhe tiravam fotografias a torto e a direito. Indignado por aquela invasão de privacidade, Quixote pegou instintivamente no elmo que estava na cadeira à sua frente e fez-lhes o gesto de quem lhes iria atirar-lho, acompanhando o acto de um sonoro Xôooo. Foi o suficiente para que todos, a rir a aos pulinhos, se fossem dali para diante a fotografar o mais que entendessem, detendo-se agora num pedinte com uns sete cães à sua volta que todos certamente acharam muito curioso e muito típico.
Como a sua figura teve o condão de chamar à esplanada inúmeros outros clientes, a gerência do estabelecimento de restauração fez o obséquio ou teve a delicadeza de deixar a conta de Dom Quixote por conta da casa, passe a redundância. Só quando isso mesmo lhe foi transmitido é que Dom Quixote se lembrou de que não tinha um tostão furado, ou deveria dizer um euro furado? Bem, ter até tinha, mas era pouca coisa, uma moeda de dois euros que trouxera de cima da secretária do Director editorial... Menos mal, agradecia muito ao gerente e até mais ver que tinha de ir buscar o seu alazão. Pegou no elmo e pôs-se a caminhar pela rua que ia dar ao Teatro Nacional de São Carlos. Perguntou a um transeunte pela esquadra e devidamente encaminhado para lá se dirigiu sem mais demoras. Chegado à esquadra, a coisa começou por não correr muito bem, já que o sargento que estava de plantão à porta não quis acreditar na sua história, para mais quando Quixote lhe diz que era, nem mais nem menos, Quixote, o próprio, em carne e osso, e que vinha buscar Rocinante que um colega do sargento para ali tinha trazido. «Pois, pois, tu és o Quixote e eu sou o Camões», atira-lhe o sargento em tom de graçola retorcendo o olho, fazendo de cegueta como o poeta de quinhentos. Que não, que não, que era verdade, jurava-lhe Dom Quixote, mas o outro nada, apenas lhe dizendo: «Epá, ó Quixote, já me estás a dar calores, zarpa daqui antes que te enfie a lança num certo sítio e vás daqui a arder para a tua terra, não sei se estás a perceber.» Ouvindo isto, Dom Quixote pôs-se aos berros, enxovalhado na alma que estava como não se lembrava havia muito tempo. Lá de dentro do pátio do quartel, ouvindo a berraria, surgiu então o agente que tinha levado o Rocinante para ali e, vendo a cena, logo tratou de tudo esclarecer e apaziguar os ânimos. «Ó Silva, epá deixa o homem que ele está a dizer a verdade... Quer dizer, a verdade sobre o cavalo. Agora, se diz que é o Quixote, epá deixa-o dizer, cada maluco com a sua fisgada! Tu não te lembras do agente Ramos que às tantas deu em dizer que era o Cesário Verde?» E por ali se ficou a conversa. Quixote e o agente de segurança foram aos estábulos buscar Rocinante e de novo o nosso homem se pôs ao caminho. Ainda que de rumo desconhecido. Fazia-se tarde, havia que encontrar rapidamente um local para passar a noite e com a calma suficiente para poder ordenar ideias, pensando no que fazer no dia seguinte.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Don Quijote de La Mancha

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Epá, grande ideia! - capítulo IV

IV.

Coisa diplomática, visita de Estado e outras pressas ministeriais. Interesses superiores, Etelvina e os capangas. Aperitivos, drinks e jet set. Uma sessão que foi um sucesso, apesar da inexperiência da autora que em tempos imitara Whitney Houston.



Seis, sete quilómetros, por aí terá ficado a distância percorrida pela caravana editorial que naquela manhã deixara o escritório com grande estrépito de rodas comendo o asfalto. Batedores da GNR à frente e outros atrás, lá conseguiu o BMW atravessar o trânsito citadino e chegar a tempo e horas à recepção agendada para os convidados ilustres no Grande Hotel da capital. Parecia coisa diplomática, visita de Estado ou então as habituais pressas ministeriais, sempre a grande velocidade, mais do que a permitida por lei, justificada, claro está, pelas superiores razões de Estado, que a tudo servem, está de ver, quando necessário. E pelas ruas por onde passaram sempre a mesma indignação dos automobilistas, obrigados a parar para ceder passagem à comitiva. Os impropérios foram de índole diversa, não convém aqui reproduzi-los de modo a não tornar a escrita ou a leitura desagradáveis. Curiosamente, houve também alguns transeuntes que à passagem dos motociclistas e do BMW acenavam para os mesmos, provavelmente pensando que no seu interior era alguma figura de Estado estrangeira que se encontrasse de visita ao país. Tão eufórico e fora de si com tudo isto estava o director editorial que, às tantas, não resistiu mesmo, abrindo uma janela e com o braço de fora lá foi retribuindo acenos aqui e acolá. Parecia agora um candidato político em campanha e não fosse a senhora Etelvina ter-se queixado do vento excessivo que lhe perigava o penteado e ele teria continuado naquela «festa eleitoral» até final do percurso.
Tinham enfim chegado. O director editorial estava feliz, os horários cumpriam-se com pontualidade britânica graças à batida policial. Haveria, de resto, e oportunamente, de agradecer em pessoa ao comissário Lemos Matoso a disponibilidade própria e do seu pessoal para atendimento deste caso, sabendo, no imediato, intuir-lhe e reconhecer-lhe o seu interesse superior. Ao lado do director editorial, durante todo o percurso, a senhora Etelvina sempre de óculos escuros, agora nisso como que se solidarizando com os seus dois «capangas» que seguiam também no carro, um à frente e outro no banco de trás.
Quando todos deixaram o carro, foi, desta feita, a vez do pessoal do hotel se prontificar para lhes fazer escolta até ao átrio de entrada, onde já se encontravam dois ou três convidados mais madrugadores. Vendo a distinta comitiva, os turistas que por ali também se encontravam por mera casualidade, preparando-se para o pequeno-almoço ou para uma passeata a pé pela cidade, muito se admiraram com o que aos seus olhos se deparava. Um deles, um inglês ruivo e de ar leitoso, mais curioso, não fosse estar ali a cruzar-se com uma alta individualidade do país anfitrião, chegou-se ao pé de uma assessora de Imprensa e diz-lhe: «Who are they? The prime-minister’s wife?» Ao que ela, sorrindo: «Oh, no, no, much more important than that, a writer» (ficando na dúvida se deveria ter antes dito novelist). E acrescentou: «In fact, our prime-minister is not married.» «Oh», volveu o inglês, tendo certamente ficado a pensar que nem na sua Inglaterra se tratavam tão bem os escritores. E mais disse, pondo-se a andar para o sol exterior, ainda relanceando de novo o aparato da cena voltando a cara para trás: «Must be a very important one, who knows may be the next Saramago...» O director editorial nada disto ouviu, mas provavelmente teria gostado de o ouvir...
Beijinho para cá, beijinho para lá, muitas felicitações e os parabéns da praxe, a senhora Etelvina, já sem óculos, tentava agora, uma vez mais, descontrair. Um a um, o director editorial ia-a apresentando, orgulhoso, aos diversos convidados que iam chegando. «A nossa autora», dizia ele, aos que os outros e a senhora Etelvina sorriam com algum desconforto, apertando as mãos, no caso dos homens, beijando as faces no caso feminino. A todos os que iam chegando, num dos lados do salão de entrada do hotel, uma menina de farda vermelha e sorriso Pepsodent oferecia um exemplar do «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal». E todos, à vez, contentes com o seu exemplar se dirigiam agora para uma das suas portas do elevador onde um impecável ascensorista as aguardava para subirem até ao último andar do edifício, onde, no restaurante panorâmico, teria lugar o lançamento do livro propriamente dito. Em baixo, e como o tempo avançasse, também o director editorial, o editor e a autora se dirigiram prestes a um dos elevadores. Para trás, ficavam agora apenas a menina da banca de livros improvisada, e duas assessoras de Imprensas encarregues de receber os senhores e senhoras jornalistas, assim fossem chegando, aos quais entregariam um dossier de Imprensa. O livro, esse, teriam, posteriormente, de pedi-lo para os escritórios, assim o desejassem, pois aqueles exemplares que tinham trazido destinavam-se a oferta aos convidados.
No topo do edifício, com a luz alfacinha a trespassar as enormes e largas vidraças, inundando todo o ambiente, encontravam-se agora convidados e jornalistas em suficiência para que pudesse dar início à sessão. Antes disso, e enquanto empregados do hotel, serviam, de cá para lá, e de lá para a cozinha e regresso, uns aperitivos e uns drinks, conversava-se animadamente, uns de livro aberto, outros de olho nos acepipes, outros ainda, sobretudo esses malandros dos jornalistas, de olho na mesa dos mariscos. Junto à autora e ao director editorial, uma figura do jet set, aí dos seus sessenta bem entrados e plasticamente mantida em forma para a fotografia, referia, com ares doutos de crítica literária: «Querida, está óptimo, você nem imagina o prazer que eu tive ao ler o seu livro. Hummm..., a sério, mais emoção mesmo só nos livros da Susanna Tamaro e do outro... ai, como é que se chama?... aquele, ajude-me, ai... e eu que gosto tanto dele, o... o...» «Coelho? Paulo Coelho», ajuda-a a autora, mostrando assim os seus vastos conhecimentos literários e a abrangência das suas leituras. «O Paulo, sim!», responde-lhe a outra, tratando o escritor brasileiro como se o conhecesse lá de casa. E continuava, agora para o director editorial: «Parabéns pela aposta ganha. Acho maravilhoso dar voz a pessoas aqui como a senhora Etelvina, pessoas com algo de verdadeiramente interessante a dizer, pessoas que o meio editorial sempre calou afastando-se da realidade. Sim, porque eu acho que a literatura portuguesa já merecia autores assim. Parabéns, muitos parabéns querido.» E foi-se dali com o seu sorriso sempre ligado, como se se tivesse engasgado e estivesse aflita, de olhos esbugalhados.
O director editorial, também ele, parecia ter aprendido rápido com aquela gente da socialite lusa, que por tudo e por nada distribuía sorrisos e dizia, sem ter porquê a respeito do que fosse, «acho óptimo, óptimo, óptimo.» Apertos de mão, abraços à companheiro comuna aos mais próximos, o homem estava feliz, verdade se diga, e verdade se diga como havia muitos anos não o viam aqueles que com ele privavam diariamente. Aquilo, quanto a mim, que o conheci como poucos – tanto mais que foi com ele que trabalhei desde que vim para este país defender a dama da literatura –, não era apenas um caso de deslumbre editorial ante a possibilidade de ter agarrado em mãos um best-seller. Não, a coisa parecia-me, sinceramente, bem mais grave, coisa talvez mesmo a merecer visita a psicólogo ou a psiquiatra – sim, não espantem, pois não estão hoje tão na moda estes profissionais médicos, a quem quase já não existe quem não recorra por dá cá aquela palha! Pois a mim, parecia-me caso digno disso, era, claramente, uma patologia a merecer moldura clínica.
E agora que penso nisso, recrimino-me por não o ter notado mais cedo. Sim, logo quando, há cerca de um ano, o director editorial resolvera começar a frequentar um curso para reciclagem editorial à luz dos novos mercados, uma coisa que lhe chegou ao conhecimento por correio simples, num prospecto banal onde se convidavam os profissionais da área a frequentarem cursos diversos. Se a princípio achei por bem que o fizesse, até porque se encaminhava a passos largos para os sessenta anos, e pôr-se a par de novidades do mundo editorial parecia-me uma maneira acertada de não perder passo face aos últimos avanços na matéria, mais tarde, quando começou a frequentar feiras do livro «alternativas» e a comprar direitos sobre livros «duvidosos», de cariz esotérico e outros, aí, bem aí, eu devia ter-me apercebido de que alguma coisa dentro daquela cabeça não corria bem. Agora, agora parece tarde de mais; aquele brilho no olhar já não é o mesmo, já não lhe denoto o gozo literário que antes expressava e de que se orgulhava como poucos, mas antes um brilho que reluz como o raio de sol batendo no ouro dos cifrões, ou, para sermos mais contemporâneos, no brilho dos euros.
Embora com uma pequena décalage em relação aos horários estabelecidos, a sessão teve, enfim, começo. Na mesa, ao centro, o director editorial, a seu lado, a autora, do outro lado, o editor. À sua frente, um vasto auditório, agora muito bem composto, caras conhecidas, boa apresentação, e também os jornalistas, menos compostos, é certo, como é da classe, todos petiscando de copo na mão, agora fazendo silêncio para as palavras que o director editorial se preparava para dizer dando a sessão por aberta. Chamando a si as atenções, os microfones e os holofotes das televisões presentes, o director editorial, na primeira pessoa: «Meus amigos, senhoras e senhores, ilustres convidados, senhores jornalistas, começo estas breves palavras de apresentação do livro «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal», por agradecer, em primeiro lugar, e naturalmente, à autora. Agradecer o ter-nos escolhido para ser a sua editora, a sua casa editorial (querendo com isto dizer que é, doravante, como se em sua casa que entre nós queremos que se sinta), agradecer a sua disponibilidade demonstrada ao longo de todo o processo de preparação da obra e, sobretudo, a sua confiança nos nossos profissionais, desde o senhor editor aqui ao nosso lado, cuja presença e trabalho desenvolvido aproveito igualmente para felicitar, até aos designers que pensaram a capa, passando por todas as outras pessoas que, de uma forma ou de outra, se empenharam para que este livro viesse hoje a estar aqui, nas nossas mãos, pronto para chegar ao público, afinal de contas, razão última, e primeira, do nosso trabalho, do nosso existir. Etelvina Prazeres, como todos saberão, é uma mulher de armas – e não querendo, desde já, desvendar os segredos do livro, tirando-vos o prazer da leitura, posso, no entanto, dizer que passagens há que ilustram cabalmente isto que acabo de dizer. E, por conseguinte, Etelvina Prazeres não teme. Não teme pôr a verdade preto no branco, não teme dar a cara por esta sua verdade de cristal. Verdade de Cristal porquê? Porque se trata de uma verdade, a sua, que sendo cristalina também se revela capaz de quebrar com muitas outras verdades falsamente instaladas. Creio que para além disso, para além desses aspectos, mais ligados à vida do futebol nacional, nomeadamente aos momentos vividos com o senhor presidente de um conhecido clube nortenho que todos conhecem, este livro colhe, repito, este livro colhe igualmente por via da sua faceta sensível, por encobrir, descobrindo, nas entrelinhas do texto um outro cristal, um cristal que não é senão a personalidade simultaneamente dura e frágil de Etelvina Prazeres. Uma vida, em breves palavras, arrancada a pulso e com muito jogo de cintura, uma vida galgada degrau a degrau, amparando golpes sobre golpes, daqueles que a invejavam pelo modo como, subindo, conseguia manter a sua aura de integridade. Creio que a prova maior dessa sua inteligência na escalada da vida é o modo despretensioso como se revela neste livro, nesta obra que é a sua vida, a sua experiência, a sua cara. Espero que todos vós, tal como eu experimentei, sintam o mesmo prazer na sua leitura. À nossa nova autora, uma vez mais, o nosso obrigado».
Tendo-se contido, o discurso não durou muito mais de dez minutos. Os flashes dos repórteres fotográficos encheram a sala, tentando captar as reacções dos oradores e dos Vips presentes na sala, que, com grande probabilidade, fariam as capas das próximas edições das revistas cor-de-rosa. O auditório pareceu ter gostado do que ouviu e retribuiu com um caloroso aplauso. Do meio das palmas, ouviu-se mesmo um forte assobio e alguém que gritava bem alto «Etelvina, Etelvina, Etelvina...» O director editorial, com os braços esticados para diante pedindo de novo silêncio na sala, passou de imediato a palavra ao editor. Que disse, dizendo que o seu director editorial já praticamente tudo dissera: «Bom dia a todos... Eu queria apenas também agradecer à Etelvina a oportunidade profissional que me concedeu ao trabalhar comigo na realização deste trabalho. Creio que o resultado está à vista e é uma obra que honra o percurso de ambos. Devo, contudo, dizer que a maior parte do mérito pertence-lhe a ela, já que eu me limitei a sugerir este ou aquele enquadramento temático, este ou aquele prisma de apreciação, este ou aquele estilo de escrita. Etelvina, muitos parabéns!» Um novo aplauso entusiástico percorreu a sala, momento que os jornalistas aproveitaram para lançarem novo punhado de cajus e amendoins à boca. E nesse ínterim, de novo uma forte assobiadela e de novo o nome da autora ressoando entre as palmas: «Etelvina, Etelvina, Etelvina!!!» Novamente, o director editorial teve de intervir, desta feita, levantando-se mesmo e pedindo silêncio à audiência. Teria a palavra a autora, fizesse favor, o microfone era todo seu.
Com o micro à frente da cara, Etelvina mostrou-se à-vontade com o objecto. Quis mesmo segurá-lo com as mãos, aproximou a boca demasiado e o som das primeiras palavras soou algo distorcido. Dando-lhe uma dica em voz baixa, o director editorial explicou que não era necessário segurar o microfone e que poderia falar sem dele se aproximar em demasia. Etelvina sorriu e lá disse: «Peço perdão, não estou habituada a este tipo de objectos, a única vez que peguei num microfone foi quando servia à mesa e o dono do bar me pediu que subisse a palco para fazer uma imitação da Whitney Houston, que é uma cantora que eu adoro... E... e... prontos... eu peço desculpa, mas tudo isto é novo para mim... enfim... acho que o que vos queria dizer, para além de agradecer a vossa presença e o vosso apoio, é que estou muito contente, muito feliz mesmo com este livro, que considero um passo em frente na minha vida. Devo dizer que nunca pensei em escrever um livro, que era um objectivo que não estava nos meus planos, e que foi graças a estas pessoas ao meu lado que esse livro hoje existe e é uma realidade palpável. Eu sei, eu sei que vai ser uma coisa que vai suscitar muita polémica, mas eu tinha que o fazer, tinha que dizer a minha verdade, contar o meu lado da história. E, estou em posição de vos garantir, toda essa verdade de que vos falo no livro é verdadeira. Resolvi dar a cara porque acho que o passado não pode ser construído apenas sobre a verdade de alguns, para mais quando essa ou essas verdades são mentiras e fogem à verdade. Bom... não quero maçar-vos mais, acho que tudo aquilo que quererão saber se encontra respondido no livro, resta-me convidar-vos à sua leitura. Espero que gostem. Muito obrigada a todos pelo apoio.» Tendo falado num tom cálido e sentido, Etelvina pareceu ter chegado ao coração dos presentes que, uma vez mais – e já parecia estar-se num concurso televisivo –, brindaram a sala com uma ovação; desta vez mais breve, pois todos estavam com uma grande fome e ávidos de se atirarem às mesas. Foi o que aconteceu, saltando fila para os mariscos e uma outra para a zona da picanha, do peitinho e salcichinha brasileira. Escusado será dizer que os jornalistas foram os primeiros a tomar dianteira, deixando para o final as entrevistas à autora. O que esta achou bem, uma vez que temia os ditos profissionais, sendo que, a enfrentá-los, preferia fazê-lo já com uns copitos vertidos, tanto mais que a escolha vinícola prometia, «Pêra Manca», vendo-se que a editora não olhara a preços para que tudo corresse de feição. Não restavam dúvidas, o director editorial tinha aprendido alguma coisa em matéria de news management. O termo era novo no meio editorial nacional, mas fora recentemente introduzido por via de um jornalista-escritor, assim tipo Dan Brown, que em certa ocasião se mostrara reticente quanto aos métodos de promoção levados a cabo pelas editoras nacionais, segundo ele, errados, pois o mais que bastava era dar uma festança com comes e bebes para assim, e só assim, conseguir arrancar das redacções os tolos dos jornalistas. De outro modo não havia maneira, e os livros corriam o risco de morrerem à nascença. Não, dizia ele, o dito jornalista-escritor, mas jornalista de TV, «lá fora é que sabem, garanto-vos porque eu já lá estive e sei como é!». Certo ou errado, a verdade é que o lançamento da senhora Etelvina, havido em moldes que tais, portanto, internacionais, fora um sucesso. Todos, por conseguinte, tinham motivos e razões de sobra para estarem contentes e agora a encherem os estômagos com sincero e basto apetite. Os jornalistas primeiro que todos, claro.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Coisas de Doutor Lobo

Agora o Miguel Veloso é lindo!... Mais um rabinho de cavalo e qualquer dia deixo de ser do Sporting.

Coisas de Doutor Lobo

Nem sei que achar desta palermice de chamar ao estádio de futebol (um estádio de futebol!) do Manchester United «teatro dos sonhos»... Que são todos uns actores, a inventar faltas e penaltis... bem, deve ser por aí. Só pode ser por aí.

Ganda poster de Ana de Amsterdam, com sua licença

«O João entrou no quarto no preciso instante em que eu chamava cabrão ao Octávio Teixeira que, na antena 1, logo pela manhã, se masturbava publicamente a falar do Hugo Chávez. Lançava o homem jactos espasmódicos de esperma bolorento, louvando a revolução venezuelana, os índices de alfabetização, a reforma agrária e a diminuição da pobreza. O meu filho olhou-me de viés, censurando-me a linguagem. Expliquei-lhe que metade do meu corpo é alentejano, metade do meu corpo gosta de açorda, coentros, poejos e beldroegas, metade do meu corpo sabe jogar ao jangro, metade do meu corpo vive na charneca de terras arenosas onde as alcagoitas ainda crescem entre os tomateiros e uma menina já morta penteia os cabelos longos de uma mãe que se chama Umbelina. Metade do meu corpo, disse-lhe eu, exausta, é alentejano e no Alentejo cabrão não é asneira. “E eu? Também sou um bocadinho alentejano? Também posso dizer cabrão?”, perguntou. Respondi-lhe que nem pensar, que nunca, mas nunca, se atrevesse a dizer cabrão à minha frente. Ter apenas um quarto do corpo alentejano, uma insignificância, não dá direito a tais liberdades linguísticas.»

Aprender a Rezar


É já amanhã, dia 27, terça, que irá ser lançado o novo romance de Gonçalo M. Tavares: «Aprender a Rezar na Era da Técnica» (Caminho). Vai acontecer na sala Veneza do Hotel Roma, na avenida homónima, ao número 33. No lançamento, para além do autor, vão estar, em debate sobre o assunto que dá título ao livro, António Mega Ferreira, José Pacheco Pereira e Manuel Gusmão. Ide!

O Viciado

Reparem. Segundo a Alice, este, com uma máquina fotográfica e apanhado em acção, sou eu. E chama-me viciado! A mim, que só por mero acaso e sorte, me apanhou a tirar-lhe uma fotografia!...

E agora para um momento foto-poético...


estava cansado
demasiado cansado
e à falta de lugares para estacionar
ali mesmo adormeceu
ainda assim abrindo os braços
como pedia o sinal
um para cada
lado lado
tentando a brasileira
compaixão do fiscal da emel
de sua graça Judas

do caso não se sabe
se houve direito a multa
ou a perdão

Prévert - As Grandes Famílias

Luís I
Luís II
Luís III
Luís IV
Luís V
Luís VI
Luís VII
Luís VIII
Luís IX
Luís X (cognominado o Teimoso)
Luís XI
Luís XII
Luís XIII
Luís XIV
Luís XV
Luís XVI
Luís XVIII
e depois mais ninguém... mais nada...
que raio de gente é esta
que não é capaz
de contar até vinte?

Jacques Prévert, «Palavras», Sextante

E agora para um momento poético...

colombo
sabes colombo
domingo pois claro
as grandes viagens fazem-se hoje
circunavegando o mapa dos shopings

até porque
lá fora o dia negro lá em casa
o drum & bass
o drama em baixo
e em cima o trip
hop a trip via pescoço via osso
via radar que afinal todo o bairro
vocês sabem a jungle é questádar

de modo que colombo
assim em grandes desembarques aos domingos
com os índios todos chegando
uns em chagas outros a chagar
bmcliogolfgtpunto ou corsa
kitados naturalmente que os semáforos
que as estradas
vê se andas seu camelo... a da tua mãe
e assim como assim a tarde faz-se tarde
e
mulher tocandar
pra casa que o futebol
não espera
putos
bóra
deixa essa merda manel
o pai inda quer passar o totoloto no café e depois
chekar no carlinhos suéleron já chegou

sónia quéque temos pro jantar?
pai pai vistaquelas naiquerJordan?

Histórias Fulminantes 50

Andava triste e cinzento na vida. Como uma velha bota abandonada junto ao esgoto. Decidiu sair em grande: vestiu-se com as cores da família e saiu para a rua num dia de sol a perder-se nas cores do arco-íris.

Serralves 4










De modo que temos ainda muito a aprender com a Natureza.

Serralves 3


E a resposta é:

Serralves 2

Não. O que nos leva à seguinte questão: existe arte na «arte» que não desperta emoções?

Serralves 1

Sejamos sinceros: o barco em que seguiam as obras de Robert Rauschenberg naufraga entre os Estados Unidos e Portugal. Alguém choraria uma lágrima que fosse?

Serralves

Questão a levantar, assim se pudesse, aos artistas que actualmente expõem em Serralves: Do you, at this stage, have any ideia of where you want to go to?

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - ou Está bem escrito mas... Capítulo III


III.

Uma decisão a 180 graus. Ó Senhor Dom Quixote, olhe que se constipa. Um trânsito infernal, Amadeo de relance, um bilhete por pagar, apitos enervantes e duas caras que mais pareciam
de críticos de arte.



E foi então que tomei mais uma decisão, uma outra decisão que novamente iria fazer com que minha vida desse uma volta de 360 graus... Bem, 360 não, porque assim voltaria ao mesmo ponto de partida... eh... 180, pronto, 180 graus. Em suma, decidi partir. Que um homem que não parte fica, e um homem que fica é um homem que se resigna! – disse ainda para o Rocinante que anuiu com a cabeça em forma de aprovação. E fui-me dali, daquela casa onde permaneci durante quase duas décadas, assistindo a um trabalho digno, exigente, válido, louvável, pois que tantos bons escritores e tantos belos livros dera ao burgo literário lusitano.
Tantos livros, tantas capas, tantas páginas, tantas palavras, tantas histórias, tantos poemas, tanta vida vivida assistindo ao parto de cada uma daquelas obras de que agora me preparava para despedir, ali no gabinete do director editorial, onde eu, no cimo de uma prateleira, me encontrava e me achava como se em casa. Mas, não, disse não, resolvi insurgir-me contra a imoralidade editorial que alastrava como febre pelo país. Afinal eu era Quixote e Quixote jamais poderia compactuar com este estado de coisas. E não, não fossem dizer que era o ar dos tempos, a inevitabilidade no rumo do negócio, que ou seria desse modo ou não seria, que era a única forma de inverter um rumo de queda, que a editora precisava de se adaptar aos tempos difíceis, que precisavam de títulos assim, de obras que dessem lucro, lucro, lucro. Podiam dizer o que quisessem, não podiam era aviltar a minha imagem apondo-me a efígie, de mim e do meu fiel Rocinante, num destes objectos em forma e com aparência de livro, mas que, na verdade, mais não são do que reles afrontas ao livro enquanto objecto.
Não, aquilo era um negócio, uma mera negociata com vista à obtenção de lucros fáceis... e sim, agora entendo o que dizia o director editorial quando a «autora» Etelvina lhe perguntava se estava tudo tratado com o tal adepto das bigodes, que só podia ser o famoso Bigodes... Que o livro fosse um negócio, sim, sem objecções, mas um negócio de paixões, de afectos, de amor ao livro e à literatura. Ora, eu, eu enquanto personagem maior da literatura mundial não poderia ficar ali, alinhando com aquela perversão do conceito de livro, ainda por cima emprestando a minha imagem a uma «coisa» que me recusava a chamar livro. Não, gente de bem, não chamaria livro a uma coisa tão abjecta e repugnante. Rocinante, vamo-nos daqui para outras empreitadas, vamo-nos para outras demandas, que aqui já não nos merecem. Bem dito, melhor feito. Levantei-me de um pulo, como se animado de novo fôlego, e, com a ajuda de uma das prateleiras da estante, saltei para a garupa do Rocinante. Também ao meu fiel companheiro pareceu agradar-lhe esta minha súbita decisão. Nada que eu não esperasse de um alazão destes, também ele pouco dado ao imobilismo e aos ares de um gabinete que padecia de arejamento o quanto antes. Ali por mais umas horas, naquele ar conspurcado pelo cheiro a tinta do livro da senhora Etelvina, e um homem e um alazão eram capazes de desfalecer!
Ajeitei o elmo na cabeça, peguei no escudo e na lança, esporeei ao de leve a barriga do Rocinante e investi de rompante contra a porta, dando-lhe uma estocada que a rebentou para grande susto da Dona Paula que, coitada, aproveitava a ausência do patrão para fazer uns telefonemas às amigas. A pobre senhora nem tentou impedir-me, tão assustada estava ao levar com a minha figura pela frente. O mais que disse, depois de se recompor ligeiramente, foi qualquer coisa do género: «Ó senhor Dom Quixote, então isso é coisa que se faça, pregar-me assim um susto desses? Olhe que isso não se faz, olhe que a filha de uma vizinha minha, outro dia, até tinha acabado de sair de minha casa, e quando pôs o pé na rua, veio um palerma numa mota e passou-lhe a um centímetro dos pés, o senhor Dom Quixote nem queira acreditar. Até hoje está que parece uma tontinha! Ai, mas onde é que o senhor vai assim vestido, de elmo e tudo com este calor? O senhor Dom Quixote olhe que se constipa...»
Deixei-a a falar, melhor, a matraquear sozinha e fiz-me ao caminho. Quer dizer, à estrada... e que estrada! A avenida onde se encontrava sediada a editora estava completamente engarrafada, ao que pude perceber, vendo ao longe as luzes de uma ambulância, devido a um acidente qualquer. Foi pois, com grande dificuldade e também habilidade, que avançámos, eu e o meu fiel Rocinante, por entre os carros parados, entre queixas e insultos, pois que, diziam, não era a melhor altura para fazer campanhas publicitárias e que não sei que não sei que mais, até mesmo que eu devia ser preso por estar a usar um animal para propósitos comerciais! Propósitos comerciais, eu? Essa não me entrava nem à lei da bala e logo dei ao meu fiel Rocinante permissão para que na roda dianteira do dito automobilista imprecador se aliviasse ele de quantos líquidos na bexiga tivesse. Assim o fez e o que vos digo é que o coitado devia estar aflito há muito tempo.
A progressão, porém, no meio daquele caos e com o asfalto quente e escorregadio não era fácil, nada fácil, perigoso mesmo, tendo eu por diversas vezes chegado a pensar que ia ao chão. Não aconteceu e lá nos aguentámos, subindo a avenida até uma rotunda próxima. A princípio não sabia para onde me dirigir. Sabia apenas que queria ir-me dali e encontrar um lugar calmo onde pudesse assentar ideias e pensar no que iria fazer de futuro. É como vos disse, passei despercebido por entre os muitos automobilistas e transeuntes apenas porque todos pensavam que eu não passava de mais uma daquelas campanhas publicitárias modernas, em que se faz tudo e mais alguma coisa para chamar a atenção das pessoas. Tipo pôr meninas descascadas a oferecer laranjadas ou coisa que o valha. Pois aqui todos pensaram que haveria de ser mais uma lança espanhola a entrar no mercado português, desta feita, uma coisa metaforizada por via da minha figura. «Olha, olha, lá vem o Dom Quixote a invadir Portugal», «Ó bacano, o que é que tienes para oferecer-me, chico?», «Ouve lá, ó espanhol, sai da frente, deves pensar qu’isto já é tudo teu, não?», «Ó arreda, coño de mierda, vai prá tua terra»... Foram apenas algumas preciosidades linguísticas que ouvi, para não vos maçar mais os ouvidos com a terminologia automobilística lusitana.
Mas de tráfego ainda eu não tinha visto nada, que não havia de me conseguir pôr dali para fora tão cedo quanto desejava. Um inferno, aquele trânsito que tive o azar de encontrar e mais ainda no qual tive a desdita de em enredar. Digo bem, enredar, já que aquilo era pior que um teia de aranha. Pois eu queria seguir a direito e já o trânsito me levava por outra direcção, pois eu queria então sair noutra rua e logo uma fila de carros me levava para outro lado, e assim consecutivamente que creio bem para percorrer uns quinhentos metros estive naquele frenesim cerca de uma hora e picos. O pior é que eu já nem sabia onde estava. Como havia tantos anos não saía da editora já não conhecia o mapa da cidade. Melhor, conhecia algumas coisas, tinha uns certos pontos de referência, um ou outro edifício que se mantinham – bem certo, agora lado a lado com novos prédios em betão e vidro –, um ou outro jardim, uma estátua aqui, outra acolá, mas a verdade é que me perdi com tanta rotunda encontrei pela frente. Juro-vos que por momentos cheguei a pensar que todo o país estivesse agora transformado numa gigantesca rotunda! Não havia dúvidas, a ver pela amostra da capital, a febre das rotundas apanhara todos os autarcas e não admirava que o trânsito e os automobilistas entrassem em parafuso. Os automobilistas e os editores, pelos vistos, disse para comigo voltando a relembrar-me do porquê da minha fuga.
Com muito esforço e suor, que o sol forte a bater-me na chapa da armadura e do elmo mais instilava no meu corpo, cheguei por fim a local que reconheci por se manter praticamente inalterado no seu contexto físico. O trânsito tinha-me atirado – é este o termo – para uma rua ao fundo da qual divisei uns amplos e frondosos jardins. Sim, só podia ser a Gulbenkian, era certamente a Gulbenkian. Foi para lá que a galope me dirigi com o meu fiel Rocinante. Farto que estava de ter tanta gente em polvorosa à minha volta, apaziguou-me a ideia de aí poder vir a descansar alguns momentos, antes de decidir que rumo dar à vida. Porém, qual não foi o meu espanto quando, aí chegado, dei de elmo, ou de caras, com uma pequena multidão que à entrada da fundação se aglomerava com um prospecto na mão. Já a trote e depois a passo, aproximei-me, e uma vez mais poucos foram aqueles que me ligaram por aí além. Só um ou outro aproveitaram para tirar umas fotografias, que não pude impedir, ainda por mais que deteste aparecer nelas, pois acho-me sempre muito magro e isso enerva-me, tanto mais que nunca percebi porque não engordava já que comia como se fosse um rei ou ministro.
Mas logo, logo percebi ao que ali estavam. Entusiasmava-os um tal de Amadeo, que, ao que percebi, era pintor e ali via a sua obra exposta numa grande retrospectiva. Perguntei a uma das pessoas que ali estavam se o homem pintava coisa de jeito, coisa que se visse, assim uma bonecada de jeito, como o Dalí ou o Picasso, os pintores espanhóis, se conhecia?... O homem olhou-me com desdém e quase indignação dizendo apenas, «santa ignorância»! Passei adiante, que ali não haveria de colher grandes ensinamentos. Dirigi-me antes para as traseiras da fundação, para os jardins onde me recordava existir um belo lago com patinhos e cisnes. Com sorte ainda ali estava e nada mais a calhar uma vez que o Rocinante se encontrava sequioso. Estava o meu bravo alazão a matar a desmedida sede quando se aproxima um guarda, fato cinzento, óculos escuros, crachá ao peito (dizendo: Silva Cardo – Segurança) e walkie-talkie na mão a fazer zumbido. Como o homem viesse por trás do Rocinante, e ouvindo este o dito zumbido, pensa tratar-se de varejeira que se lhe aproximasse do lombo e zás, nem o pensa duas vezes, alça a pata direita e tunga, coice no desgraçado guarda que só tem tempo para mandar um grito, mais parecendo um pavão. Sorte a dele, que a patada o apanha de raspão, ainda assim não o livrando de tamanho susto que o leitor bem pode imaginar. Eu próprio suei as estopinhas quando lhe vi os cascos a lamberem a farda!
Quando tudo poderia ter acabado mal, com queixa e voz de prisão e essas coisas todas desagradáveis, sobretudo para um estrangeiro em Portugal, para mais sem papéis – por mais conhecido ou célebre que seja; pois que raio lhe haveria de interessar que eu fosse ou deixasse de ser o celebérrimo cavaleiro de la Mancha, provavelmente a personagem literária mais conhecida de todos os tempos e em todos os lugares... –, a verdade é que nem me posso queixar, já que o supracitado Silva Cardo, apesar dos seus apelidos pouco convidativos ao trato, se revelou um belo compincha. Que sim, que percebia que estava um calor danado, coisa como não se via ia para não sei quantos anos no país, e que já tinham morrido não sei quantos velhotes no Alentejo, alguns também até mesmo lá para cima, para o Norte, onde a chaga dos incêndios não havia modos de se combater, gado nem se fala, e que, de facto, os animais sofrem muito, têm uma sede danada e que coitadinho do bicho, que compreendia, efectivamente, mas que... tinha ordens! E ordens, amigo, disse ele, são para cumprir. «Pacta sunt servanta», rematou feliz a ver se eu sacava que tinha tido alguns estudos em leis e latim. «Ora, nem mais», disse-lhe eu, «e que ordens vêm a ser essas, amigo?...» (ensaboando-lhe o pêlo) «É muito simples, o senhor só tem de estacionar o animal no parqueamento!» Nem regateei, que com esta gente é melhor não pedir muito, sobretudo quando têm as tais «ordens» enfiadas na cabeça. «Vamos, alazão, a estacionar no parque, quem sabe é fresquinho e ao menos tens sombra!» O Rocinante anuiu, mas contrafeito, o que era compreensível já os parques eram para veículos motorizados e ele de motor só tinha quatro patas. A vida, porém, é feita destas surpresas e menor não tive quando cheguei à rampa do parque e me quiseram fazer pagar bilhete! Recusei-me e dei meia volta. Mas foi o início de mais um problema, pois atrás de mim estavam já dois carros em espera com condutores cujos rostos de amigáveis nada tinham, mas mesmo nada; dir-se-ia, não fossem os potentes carros, que eram críticos de arte. Apitadelas mais apitadelas, põe-se nervoso o Rocinante e sai-me dali a escoicinhar por tudo o que é lado, aferroando, posso assegurar, não menos que uma boa meia-dúzia de coices na chapa dos carros o que, naturalmente, mais enfureceu os seus ocupantes que já se aprestavam a sair do seu interior para ajuste de contas na base do corpo a corpo, e este, meus caros, não está nem estava para tanto. «Rocinante, ainda não há-de ser aqui que descansamos, força nesses cascos e vamo-nos daqui a galope enquanto é tempo.»

sábado, 24 de novembro de 2007

Digo eu

Antes internado a ter uma interna.

Dom Quixote, Acto I, Nina Ananiashvili e Alksei Fadeyetchev

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - ou epá não podemos ficar de mal com ninguém! - Capítulo II

II.

Abraços e bacalhauzadas. Algumas técnicas de descontracção. Dona Paula e um pobre e jovem autor. Rocinante nervoso. O destino da Princesa. Os fantasmas da escrita, um sapão de todo o tamanho e uma agradável surpresa de arrasar.



Ainda antes de deixarem o escritório, consegui perceber que toda aquela azáfama ainda não tinha acabado. Mal a porta se tinha aberto todos quantos lá fora se encontravam, no hall de entrada da editora, se abateram sobre a senhora Etelvina e o director editorial. Uns, cumprimentavam a distinta, parabenizavam-na, como gostam de dizer os brasileiros, outros, avançavam mesmo de livro em mão, pedindo-lhe o autógrafo da praxe. É como vos digo, parecia cena digna de estrela de Hollywood. E logo os capangas da «autora», afastando com os braços quem se aproximasse demasiado, apenas vociferando entre dentes e por trás do escuro das lentes, «calma, calma, calminha». O director editorial sorria e também ele era cumprimentado pelo pessoal da editora. Ali estava ele, a receber também os abraços e as bacalhauzadas como se, uma vez mais, ele, capitão de navio, houvesse descoberto fórmula ou tesouro capaz de endireitar o barco que chefiava levando-o a deixar para trás mares revoltos ou perigosas correntezas que se aprestassem a levar o navio ao fundo. Sim, a senhora Etelvina era, aos olhos de toda aquela gente, a terra firme havia muito ansiada, o farol que haveria de nortear, daí por diante, os novos e luminosos destinos da casa editorial. Numa palavra, a salvação.
Os capangas faziam o seu trabalho com eficácia, pelo que logo, logo, após meia-dúzia de autógrafos, a senhora Etelvina e o director editorial, seguido de perto pelos dois editores, e agora também por uma prestável relações públicas, se encaminharam, passos largos, para o BMW que já se encontrava com o motor a roncar, preparado, adivinhava-se, para um arranque em grande. De resto, à saída do portão da vivenda, também já os batedores da Polícia se tinham encarregue de parar o trânsito, não fosse a comitiva chegar atrasada ao seu próximo destino. Qual? O lançamento editorial, num grande hotel da capital, como logo a seguir confirmei espreitando uma folha A4 que o director editorial, na sua exaltação desmedida, esquecera em cima da secretária. Era o alinhamento dos planos para o dia e lá estava: «8h00 – Recepção nas instalações da senhora Etelvina»; «8h30 – Chegada dos primeiros exemplares da gráfica»; «9h00 – Pequeno-almoço com convidados no Hotel Lisboa XXI»; «10h00 – Recepção à Imprensa»; «10h30 – Lançamento editorial». Acabo de ler e ouço lá fora o chiar dos pneus do BM a que se juntaram algumas buzinadelas de protesto dos automobilistas que tinham sido mandados parar pela Polícia e que nada percebiam do que se estava a passar. «Parece qu’isto é São Bento», disse um, enquanto um taxista gritava pela janela: «Filhos da puta, deixem trabalhar quem quer trabalhar!»
Abstraí-me da cena, do trânsito que se avolumara e agora demorava em retomar o fluxo normal, e peguei num dos livros de um dos maços que ali fora deixado. Li novamente, a como se confirmar aquilo que não queria confirmar: «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal». Até este momento estive, como se adivinha, num grande processo de contenção. Usei para tanto, de todos os estratagemas que me lembrei. Fiz mesmo uso das técnicas de descontracção aconselhadas àquelas pessoas que sofrem de ataques de pânico e que, mal começam a sentir que o comando sobre a mente lhes foge, iniciam esses exercícios de fuga para a frente, para fintar a força do psicológico. Bem vistas as coisas, nada mais nada menos do que tentar entreter o espírito com outras coisas que não a ideia fixa de que, de um segundo para o outro, podem vir a desfalecer, a sentir-se descontrolados, a não mais conseguir aguentar-se nas pernas. E então lá começam, antes do tremer dos braços, do peito, das pernas, assim, por exemplo, a contar para si «um, dois, três, quatro, cinco, seis , sete, oito ,nove , dez, onze...» e por aí adiante até que o espírito acalme, até que a cabeça retome o juízo e deixe de «macaquear». Pois foi isso que fiz, tal a comichão que aquela cena me estava a dar. Não contei os números, mas inspirei bem fundo a ver se me varriam os nervos e se me acalmava.
Tudo, enfim, estava mais pacificado. O ambiente tornara à quietude habitual. Nesse entretanto, batera à porta um escritor, que vinha ver as provas do seu livro, que dizia ter isso mesmo combinado, ainda no dia anterior, com o editor, e que, está de ver, bateu com a porta na cara. Que teria de voltar no dia seguinte, foi o que lhe disse friamente a Dona Paula, a coitada da recepcionista que foi a única a ter de permanecer nas instalações para dar seguimento aos serviços mínimos. Um pouco contristada, terá sido mesmo um pouco ríspida para com aquele jovem autor que ali se apresentara, ávido de pôr os olhos no seu primeiro livro. Nessas ocasiões, quando um aspirante a escritor não é ainda nada mais do que isso, o peso de uma recepcionista sobre um potencial jovem autor é enorme. Não sei mesmo se uma resposta daquelas pode levar ao claudicar do ânimo para empreender uma relação com o mundo da literatura, pelo menos uma relação que não tenha como mero objectivo o escrever para a gaveta. E faço aqui um parênteses para falar nessa questão. Mas alguém acredita que alguém escreve para a gaveta? Só se for para a gaveta dos outros! Sejamos sérios, se as pessoas escrevessem para a gaveta certamente que já existiria no mercado uma editora com esse nome, uma editora com fundos inesgotáveis, claro está, ou melhor, uma editora sem fundo... Não, escrever para a gaveta ninguém escreve, quando muito para o baú, como o Pessoa, mas esse era quem era, e não havia também gaveta que lhe aguentasse o espólio!
Agora perdi-me... Ia na dona Paula, creio, pois, e o pobre do jovem autor que ainda não fora naquele dia que vira as provas há tanto ansiadas. Uma carreira em risco, depois daquela resposta, acreditem, uma carreira em risco! Mas, pronto, desconte-se o mau humor à Dona Paula, triste que se encontrava por ter sido a única a ter de ficar para trás, a «aguentar o barco da casa», o correio que chega, os telefonemas, os cheques, as facturas que chegam, as miudezas do dia-a-dia, está de ver. Também, verdade, verdade é que o senhor Pinto também ficou, embora lá fora, no jardim, a cuidar das plantas e das flores, provavelmente contente por à noite já ter assunto de conversa em casa. Adiante. Voltei então ao livro em mãos. Lá me tinha conseguido acalmar, o que ficara a dever a alguns exercícios de relaxamento. Mais difícil foi conter a inquietação ao meu fiel Rocinante. Os animais são assim, é sabido que pressentem o estado de espírito dos seus donos, tomando-lhes a exacta ou exactas emoções, animando-se também eles do mesmo ânimo. Se estamos maldispostos tornam-se belicosos, e no caso dos cavalos se não temos cuidado arriscamo-nos a sofrer um coice. Já se estamos contentes, felizes, tornam-se dóceis a afectuosos, podendo qualquer um acariciá-los sem qualquer risco. Pois, o meu Rocinante estava nervoso, visivelmente nervoso, tal como eu estava e nisso não o culpo, senão a mim. Mas lá me acalmei e lá o acalmei, descendo-lhe o dorso devagar, dando-lhe umas palmadinhas afectuosas no pescoço, fazendo-lhe festas nas crinas. «Calma, meu velho amigo, calma, não há-de ser nada. Havemos de seguir adiante de cabeça erguida, não te preocupes, havemos de seguir adiante.»
Já não sou um homem propriamente novo. Vivi muito, vi muito e muito dei já que contar nas minhas aventuras que o mundo inteiro conhece. E pelejei como nenhuns, pelejei até moinhos, pelejei ventos e fantasmas, dir-se-ia que a mim próprio me pelejei... Pelo menos, assim o terão em conta aqueles que me julgam louco. Quando me reformei, julguei que a vida se tinha acabado e que terminaria os meus dias em paz e sossego junto com a minha Dulcineia. Ah, mas não, não era isso que o futuro me reservava, que aos grandes homens outro destino se encontra traçado que não o das existências que não deixam rasto nesta vida, que não o daqueles que se acomodam ao passar rotineiro e cinzento dos dias, dos meses, dos anos! Não, a mim esperavam-me ainda outros voos, outros moinhos se perfilavam no horizonte da minha errância. A convite de portugueses foi com grande dificuldade, embora com não menos sentido de responsabilidade e do dever, que tomei a opção de deixar as minhas terras castelhanas e vir para o país vizinho, pondo assim os meus créditos e valor à disposição de nova empreitada na defesa de uma nova dama, a literatura.
Mas foi isso há coisa de vinte anos, pouco mais, pouco menos. Agora, pesam-me as pernas, já os braços e os músculos não me obedecem como antes. Por isso, e apenas por isso mal desmontei o meu fiel Rocinante e logo tomei uma cadeira onde me sentei a ver o livro de vos falei... «A Verdade de Cristal»... Bem, nisto tive que conceder, se o director editorial poderia ter perdido a lucidez e a sanidade mental em matéria de escolhas editoriais, já não posso dizer que tivesse perdido o jeito para a escolha de títulos. Pois, pois... «Etelvina Prazeres», naturalmente, o nome próprio e apelido, a convocar no imediato todos os que conhecem a figura, todos ansiando revelações explosivas, algumas eventualmente sórdidas, picantes até... E depois o inteligente subtítulo, «A Verdade de Cristal» e as diversas possíveis leituras da palavra «cristal». Por um lado, a remeter para uma vida de princesa, neste caso sabe-se lá oriunda de que mundos ou submundos, e logo a presunção de um cristal frágil, prestes a quebrar-se a qualquer instante, mas prestes também a quebrar tudo à sua volta no momento da sua própria quebra. Uma, a dama de ferro, esta a dama de cristal, querem ver... cogitei. Atrevi-me enfim a avançar, folheando as primeiras páginas.
Não foram precisas muitas linhas de leitura para logo confirmar as minhas piores suspeitas. O prefácio, de resto, mostrou-se elucidativo, cristalino quanto ao teor da «obra». Dizia assim: «O desatar corajoso de alguns dos nós mais apertados da sociedade portuguesa. Os pontos nos iis por parte de quem os viveu e sofreu na pele. Um testemunho arrepiante sobre os bastidores do futebol nacional. O bê-á-bá do poder jogado fora das quatro linhas. O sofrimento de uma mulher que foi princesa e agora querem ver na ruína. Um profundo soco no estômago daqueles que pensavam que calar seria a opção. Também um olhar sensível sobre o mundo dos relvados e os homens do apito. Um abrir de portas aos balneários de uma vida a dois.» Assinava a pérola introdutória um brasileiro que, não me falhem os conhecimentos futebolísticos, era seleccionador nacional. Nessa altura, já não sabia se haveria de rir ou chorar. Ergui alto as sobrancelhas, inspirei fundo e lá continuei, abrindo ao acaso as páginas, deitando vista por aquelas linhas certamente inauguradoras de um novo e elevado capítulo da literatura nacional...
Eu ria e chorava, ria e chorava com o que ia lendo. Eram estórias do arco da velha as que ali se encontravam. Despudoradamente, a senhora Etelvina desfiava a teia do seu passado, abrindo luz sobre momentos difíceis da sua vida. Os primeiros anos de labuta passados a trabalhar honestamente num bar nocturno e de fauna duvidosa, o desunhar-se para encontrar pão para a boca, etc. e tal, e, mais adiante, algumas lágrimas depois, explicitando os pormenores acerca do momento em que conhecera o presidente do tal clube com impacto na Liga nacional com quem, primeiro, viria a amigar-se e pouco depois viria mesmo a coabitar. Foi amor à primeira vista, depreendi das suas palavras emocionadas e da lembrança dos pequenos gestos de amor que ele tivera para com ela, como homem nenhum antes houvera tido a gentileza. Que a esse tempo era um perfeito cavalheiro, um gentleman. Certo é que pouco tempo depois a então jovem incógnita deixaria o anonimato para passar a ser a mais importante senhora a norte do país. Transformada numa autêntica princesa (lá está, a tal ideia do cristal), retirada ao mundo infame onde prestava serviços, a nova senhora que nascera para o mundo dava agora novos mundos e alegrias ao sequioso mundo da Imprensa cor-de-rosa. Sim, para trás tinham ficado a miséria de uma vida cheia de espinhos a agruras, o presente fazia-se de muita elegância e discrição quanto baste, de muitos vestidos e jóias, de muita maqueáge e horas gastas em spas. Comportar-se-ia como uma verdadeira dama e nisso pusera todas as suas forças e empenho.
Era pois o destino a traçar linhas correctas à sua vida, que ela merecia isso e muito mais. Finalmente, o destino fizera justiça aos seus esforços de mudança, à sua persistência em lutar por um lugar ao sol, ainda que não a sul, mas a norte. E pelo meio do emocionado e emocionante relato, os pormenores sublimes, amorosos, deliciosos... Os problemas aerofágicos do seu mais que tudo, a sua comunidade de pontos negros, enfim, a vida íntima do casal ali, completamente aberta, desflorada como uma inocente virgem. «Quero ser um livro aberto», era o título de um dos capítulos. Outro era: «Não abro mão dos meus direitos». E ainda outro: «Abrir o passado para ganhar o futuro». O verbo abrir era, curiosamente, e ao longo de todo o livro, uma estranha constante, vá lá saber-se porquê. Também assaz interessante era um capítulo intitulado «Pernas para que te quero!» Ao que percebi, nele se dava conta de uma história de contornos macabros e policiescos. Até aí nada de novo ou de muito espantar, até porque um homem como eu já viu de tudo nesta vida. A coisa, porém, tomava foros de incredulidade no ponto em que Etelvina Prazeres se autodenunciava num caso de suposto linchamento encomendado. Dizia ela que quando, a páginas tantas, o seu esposo quis dar uma lição a um certo «filho da puta» – e as aspas denunciavam que a expressão saíra da boca do esposo, não da dela, que nunca dizia asneiras – que o andava querer incriminar numas patranhas havidas com o mundo não menos aconselhável da arbitragem, ela própria se disponibilizara para levar a tarefa a bom porto, isto é, contratando os pulhas que, por tuta e meia, tratariam de levar o tal do «filho da puta» à razão e ao bom senso. Mais dizia que a coisa se tinha feito sem dificuldades de maior, ou não fossem aqueles que ela contactara verdadeiros profissionais, gente de valor inquestionável na matéria, e que, de resto, nunca a tinham deixado ficar mal em nenhuma circunstância. Só não especificava quais.
E lá vinha tudo, tintim por tintim, como se fosse um receituário médico ou um descritivo contabilístico, com o deve e o a ver, neste caso, com as somas implicadas no «negócio», o montante avançado e o mais entregue depois de efectivado o trabalho, o local, a data, fulano tal, beltrano e sicrano que, sim senhora, garantia e isso mesmo estava disposta a afirmar, necessário fosse, perante as autoridades, também ali tinham estado e atestado mão ao supracitado «filho da puta», novamente entre aspas, não fossem dizer que ela não era pessoa de bem ou a quem faltasse decoro ou educação. Confesso, custou-me a crer que tudo aquilo fosse verdade, isto por mais pantanoso que fosse o charco do nosso futebol que tantas alegrias tinha dado ao povo no ainda fresquinho na memória campeonato do mundo da Alemanha. Mas depois pensei, não, algum fundo de verdade isto há-de ter, pois não é por dá cá aquela palha que alguém, como esta pobre Etelvina, a si próprio se denuncia correndo riscos de ir parar à prisão. Das duas uma, ou é pura mentira e tudo o que escreve não passa de pura invenção a reboque de primários instintos de vingança agora que já não era primeira dama, tendo, em consequência, perdido uma série de privilégios, ou é pura verdade e, uma vez mais, é ainda o instinto de vingança, elevado ao máximo, que a anima para a levar a testemunhos que tais. Uma espécie de amok, tal como o diagnosticou literariamente Stefan Zweig, só que, neste caso, não derivado de um estado de amor, mas antes de uma falta de amor tremenda; ao outro e a ela própria.
Outra parte do livro que me deixou de rastos, leia-se prestes a cair da cadeira, foi o posfácio, no qual o editor relatava, de forma não muito extensa, o processo de trabalho com a «autora» até dar o livro por terminado. E dizia ele que não, que ao contrário do que se poderia esperar, ou do que muitos poderiam julgar, por má fé ou mera inveja, a senhora Etelvina tinha sido uma agradável surpresa! E que ela própria fora a primeira a assumir não ser escritora, pondo imensas reservas sempre que entregava um capítulo. A verdade é que tínhamos escritora, tínhamos mão! Mão? – pergunto eu. Mão!? Pois não reconheci eu logo à primeira leitura de um ou outro parágrafo que a única mão que ali estava nas entrelinhas era a do escritor-fantasma que trabalhava para a editora! Uma vergonha! Então a senhora tinha mão! Mão invisível, só se for. No caso concreto, a do José Salvador. Não sei se será o melhor momento, mas até acho que seja uma boa altura para dizer uma palavra de agrado a estes homens, a estes fantasmas da escrita. Uns tipos que até sabem o que fazem, que sabem escrever, que escrevem os livros aos quais os outros dão a cara e não se importam com isso, com que os outros ganhem fama e proveito enquanto eles se ficam com o magro salário do mês, longe das entrevistas, dos jornais, dos programas televisivos com a menina que se encosta às estantes num namoro literário de mau gosto. Coitado do Salvador! Um tipo curioso, sim, deixem-me também que vos diga, um companheiro de muitas noites. Um tanto ou quanto pálido, de feições esbranquiçadas, ar leitoso, por vezes meio assustador, mas pronto, creio que isso acaba por ser natural na sua profissão... Esquisito, agora que penso nisso, é ele só trabalhar à noite. Pois é, é curioso, não me lembro de alguma vez o ter visto por cá de dia...
Mas pronto, era o que vos dizia, «uma agradável surpresa» e que «tínhamos mão». Esta última arrasou-me, devo confessar. Um homem como eu já viveu muito para saber que durante a vida tem de se saber engolir muitos sapos, agora há sapos e sapos, e este nem uma coisa nem outra, este era um sapão de todo o tamanho, um sapo que não havia estômago que aguentasse. Rocinante, disse para o meu velho companheiro de estrada, creio que, uma vez mais, é chegada a hora de mudar de caminho, de trilhar novos rumos que estes em que nos plantamos em nada nos merecem já. Pelo contrário, desmerecem-nos! Desmerecem-nos!