segunda-feira, 30 de julho de 2007

Doping

gosto
francamente
da volta à frança
não gosto
francamente
de com o final
da volta à frança
voltar
invariavelmente
a pedalar
o ar
de lisboa

Horas trocadas

os relógios
do poema
não consegue o poeta
acertar

Ditos treslidos

o silêncio
é de coiro - aprendeu
a golpe de chibatadas
o preso que se recusou
a delatar os seus companheiros

Anomalias - Conto a conta-gotas - Fim

Prédios de má fama

Quando o homem que chorava por não ter aberto a porta ao amor, quando este lhe bateu à porta, reuniu dinheiro suficiente, mercê da sua mediatização televisiva e colunas de opinião pagas a peso de ouro, deixou o apartamento do prédio onde morava. Mudou-se então para um condomínio privado e passou a abastecer com as suas lágrimas ininterruptas, diluvianas, a piscina respectiva. Não era, contudo, feliz, porque se é bem certo que ter dinheiro dá muito jeito, a verdade é que não abrir a porta ao amor é muito mais grave do que não abri-la à sorte grande. Por sorte, no seu caso, o não ter aberto a porta ao amor foi como se tivesse aberto a porta à sorte grande. Não é assim tão complicado. Complicada, tornou-se, alguns meses depois, a vida do senhor do 7º, que, tendo já decorrido algum tempo, continuava a não pagar rendas e, encostado à parede pelos vizinhos condóminos, viu-se na circunstância de ter de aceitar a administração do condomínio. É claro que não aguentou e desta é que foi, ou melhor, se foi: mandou-se em voo livre. Era demais para um prédio que já tinha tanta má fama e publicidade; tremeu nos alicerces e ruiu acabando com a história.

domingo, 29 de julho de 2007

Anomalias - Conto a conta-gotas

XIX.

Presidente honorário (mas sem honorários)

No prédio do senhor do 7º, o que tinha ameaçado suicidar-se por causa da chinfrineira do homem que continuava a chorar por não ter aberto a porta ao amor, e que só não se suicidou por lhe tinham desculpado as rendas de condomínio em atraso, todos tinham ficado boquiabertos com a notícia do triplo assassinato, porque todos de imediato reconheceram a cara da Dona Sandra, a menina do prédio ali ao lado, aquela que, afinal, como vieram a saber, era a dona do tal cão que tinha sido abandonado, depois apedrejado até à morte por miudagem de má rês e, por fim, lançado no fundo do poço a que, em tempos, chamavam dos desejos. A verdade é que o choque não foi maior do que quando todos souberam que Sandra, afinal, era a dona do Bones, o pobre do cão que, abandonado por troca com umas férias-de-trabalho no Algarve, arriscou ladrar à solidão e foi morto, facto em consequência do qual resultou o tal cheiro estranho e pestilento que durante alguns dias alarmou e intrigou a vizinhança a ponto de ter surgido nos elevadores uma missiva em papel A4 pedindo a todos os condóminos que verificassem se nas suas arrecadações não estaria algum animal morto ou outra qualquer «anomalia» – foi o termo utilizado. Como o choque não foi maior, porque abandonar um cão é coisa que não se faz, o único comentário que se ouviu, da boca do senhor Azevedo, que por acaso até era presidente honorário (mas sem honorários) da mesa da assembleia financeira do Clube Português de Canicultura foi: «Puta que a pariu, cá se fazem cá se pagam.» O senhor Azevedo, já nos esquecíamos de dizer, era também o dono do Misha – um homem amargurado, portanto, desde que o seu gato desaparecera sem se dignar telefonar-lhe.

Cenas da próxima gota:

Quando o homem que chorava por não ter aberto a porta ao amor... ... Mudou-se então para um condomínio privado... ... Por sorte, no seu caso, o não ter aberto a porta ao amor foi como se tivesse aberto a porta à sorte grande...

sábado, 28 de julho de 2007

E agora, para um momento poético

fosse assim o mundo
em ponto de rebuçado
e os homens crianças
disputando apenas o chupa
chupa à boa vontade
de um deus descontraindo
em férias na noite
de todas as esplanadas
rente ao mar do Verão

sexta-feira, 27 de julho de 2007

E se...

E se a filha/ neta (não sei se as tem) do Alberto João Jardim quisesse abortar? E se não podendo fazê-lo na Madeira viessem a?... E se não podendo outras mulheres venham a?... O pior não é erradicar Jardim, o pior, nesta altura, é erradicar o medo que sopra na ilha. Sócrates esteve bem as palavras, aguarda-se que meta na ordem Jardim. Quanto a Cavaco, importava nesta matéria de saúde pública e respeito pela lei que desse mais cavaco ao assunto.

O poema

O poema é a maior de todas as janelas.

Anomalias - Conto a conta-gotas

XVIII.

A morte da esposa antes do Jorge Gabriel

O Alves soube da morte da esposa pelos noticiários televisivos. Foi mesmo quando estava prestes a mudar o canal para ouvir os comentários do Jorge Gabriel que a voz da locutora lhe prendeu a atenção ao falar num triplo assassinato em Lisboa. A verdade é que as mortes de Juliana e de Sandra (bem analisada a história, apenas porque falavam e falaram demais) apenas tiveram eco porque a elas se sucedeu, cronologicamente, a morte do homem de fato cinzento. Sim, porque a morte de um homem que veste fato cinzento, que se faz deslocar num BMW série 7, tem lugar reservado na garagem, pisca o olho às secretárias, passa horas na Internet a jogar póquer e ver miúdas, conversa sobre bola entre amena cavaqueira futebolística ao fim da tarde, e, sobretudo, é um empresário bem sucedido numa nova área de negócios tão prometedora como a da venda de Silêncio, é claro que essa morte é sempre mais relevante do que morte, ainda que tão brutal, de meros funcionários anónimos do sistema. No caso concreto, e como as três mortes estavam relacionadas, pelo menos assim logo a Polícia o deduziu, verificando o calibre das munições utilizadas, quer o homem de fato cinzento, quer Juliana e Sandra, tiveram direito aos seus famosos quinze minutos de estrelato televisivo – pena é que não estivessem vivos para assistir... «Foda-se!», disse o Alves. E sorriu com a sorte que tivera! «E não é que foi outro cabrão qualquer a sujar as mãos, poupando-me ao trabalho!», comentou, logo, logo carregando no botão do comendo televisivo a ver se ainda apanhava os comentários do Gabriel. Alves estava feliz, mesmo que desconhecendo que enviuvava cornudo, mesmo ignorando o balúrdio que iria ter de gastar com o enterro da Juliana.

Cenas da próxima gota:

No prédio do senhor do 7º... ... todos de imediato reconheceram a cara da Dona Sandra... ... A verdade é que o choque não foi maior do que quando todos souberam que Sandra, afinal, era a dona do Bones... ... «Puta que a pariu, cá se fazem cá se pagam.»...

terça-feira, 24 de julho de 2007

Outros Silêncios

«Silêncio? Que quer dizer? Que diz a boca do mundo?»

Carlos Drummond de Andrade, «Claro Enigma», Cotovia

Anomalias - Conto a conta-gotas

XVII.

Abílio confere a cor do fato


Se há coisa de que malandro não gosta é de ser ludibriado por malandro. Abílio, homem à antiga, educado na base do ou respeita ou se mata, não esteve com meias medidas. Comprou uma pistola com silenciador e começou a limpeza. Juliana foi a primeira vítima, mas só depois de obrigada a contar a quem tinha passado a informação sobre a qual jurara silêncio. Passo seguinte, Abílio pegou no seu velhinho Fiat 124, agora em versão Tunning, e dirigiu-se à empresa onde Juliana trabalhava. Juliana, Sandra e o homem de fato cinzento. Entrou, disse ao porteiro que ia levar uma carta ao Senhor Doutor – «Aquele, o de fato cinzento? – «Esse mesmo!» –, subiu, tocou à campainha e entrou. Sandra nem teve tempo para perceber quem ele era, o que queria e ao que vinha. Levou um balázio no meio da testa e caiu no chão. Um Abílio furioso, podemos garanti-lo, é uma das piores coisas que pode acontecer a alguém. Senão vejam, com um pontapé na porta do gabinete do homem de fato cinzento, Abílio entra de rompante, confere a cor do fato, dá uma espreitadela ao site de miúdas que estava linkado na Net e, acto contínuo, desfere mais um tiro certeiro na testa do homem de fato cinzento que estava mais branco do que um rato branco. Com a calma que assiste aos assassinos, Abílio foi-se embora não sem antes agarrar na chave do BM. Algum proveito havia de tirar da cornatura. Nunca tinha entrado numa máquina daquelas. Acelerou a fundo e desapareceu. Pensa-se que fugiu para Espanha, onde, julgava, havia boas possibilidades de o seu negócio vingar e onde talvez ainda ninguém se tivesse lembrado da ideia.

Cenas da próxima gota:

O Alves soube da morte da esposa pelos noticiários televisivos... ... «Foda-se!», disse o Alves. E sorriu com a sorte que tivera!... ... Alves estava feliz, mesmo que desconhecendo que enviuvava cornudo...

segunda-feira, 23 de julho de 2007

The Elephant Man






The fisherman's boat

DR ptn

Outros Silêncios

«Porque o amor será sempre do silêncio»

Daniel Faria, «O Livro do Joaquim», Edições Quasi

Cultura do futebol?

Ontem, um comentador futebolístico-televisivo falava muito e cheio de propriedade em «cultura do futebol». Confesso, é um conceito que me escapa... E espantam-me estas tiradas sobretudo porque, invariavelmente, saem da boca de gente inculta a quem, também invariavelmente, a massa cinzenta parece ter descido aos pés desde tenra infância.

Anomalias - Conto a conta-gotas

XVI.
Já os cornos de Abílio mais lhe cresciam

Quando o Abílio se apercebeu, ao dirigir-se ao Registo Nacional de Propriedade Industrial, de que fora «passado para trás» e que, algures no caminho entre a germinação da sua fabulosa ideia e as suas démarches para a pôr em prática, houvera uma fuga de informação, que é como quem diz «fuga de Juliana», passou-se dos cornos. Sim, porque nem só o Alves tinha cornos. Cornos, aliás, há-os de várias espécies, e estes, com que a puta da Juliana e, por corolário, Sandra e o homem de fato cinzento, lhe tinham adornado a testa, também não eram dos melhores e mais fáceis de suportar. Como era homem à antiga, armou-se logo de decisões e vinganças. Estava visivelmente fora de si e caminhava pelas ruas com um ar eufórico. Ai de quem lhe tolhesse passo! O que lhe tolheu a passada foi uma montra. Uma montra muito jeitosa, decorada apenas com um pano de seda de cor leitosa. E era sobre esse manto branco, puro e angelical, que surgiam, pela primeira vez, aos olhos de Abílio os diversos CDs da colecção «O Silêncio Quando Nasce é Para Todos». Já os cornos de Abílio mais lhe cresciam e os seus olhos lhe largavam as órbitas, quando repara que nas ruas, ali ao seu lado, diversos transeuntes levavam já os CDs nas mãos. Já em casa, explodiu de raiva ao ver as aberturas dos noticiários, dando conta das edições rapidamente esgotadas dos CDs contendo silêncio, e o anúncio publicitário onde o homem que chorava por não ter atendido quando o amor lhe bateu à porta promovia a supracitada colecção «O Silêncio Quando Nasce é Para Todos».

Cenas da próxima gota:

Se há coisa de que malandro não gosta é de ser ludibriado por malandro... ... Abílio pegou no seu velhinho Fiat 124, agora em versão Tunning, e dirigiu-se à empresa onde Juliana trabalhava... ... Abílio foi-se embora não sem antes agarrar na chave do BM... ... Acelerou a fundo e desapareceu.

sábado, 21 de julho de 2007

Os monstros da Alice




Árvores












«Olha estas velhas árvores, - mais belas
do que as árvores moças, mais amigas,
tanto mais belas quanto mais antigas
vencedoras da idade e das procelas...

o homem, a fera e o insecto à sombra delas
vivem livres de fomes e fadigas;
e em seus galhos abrigam-se as cantigas
e a alegria das aves tagarelas...

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! Envelheçamos
como as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,
agasalhando os pássaros nos ramos,
dando sombra e consolo aos que padecem.»


Olavo Bilac, «Poesia»

Outros Silêncios

«Só no silêncio se abrem todas as bocas,
despertam todas as vozes.»

Maria Sofia Magalhães, em «Da Sombra Que Somos», Deriva

Histórias Fulminantes 19

Duas famílias antagónicas e inimigas, uma de judeus e uma de palestinianos, mudaram-se para terreno neutro tentando provar que a coabitação era possível. Dessem-lhes terreno e a possibilidade de construírem as suas casas e tudo o mais que as fazia divergir ficaria para trás – assim pensavam os mentores da ideia. E assim se fez. Do nada, mostrando-se contentes, as duas famílias foram construindo as suas casas indo buscar blocos de pedra a uma pedreira próxima. Cada qual rezava para seu lado, ao Deus que queria, quando queria e quanto o entendesse. Todas as manhãs os vizinhos cumprimentavam-se e gabavam-se mutuamente as respectivas casas que iam crescendo a olhos vistos. À vez, iam-se servindo dos blocos de pedra necessários para as obras e, por vezes mesmo, ofereciam-se para levar as pesadas pedras uns aos outros. Em certa ocasião, o vizinho judeu pediu mesmo ao vizinho árabe um conselho sobre decoração. O vizinho árabe de bom grado respondeu e aproveitou para também colocar ao seu vizinho judeu uma questão acerca da qualidade dos materiais para os futuros acabamentos de interiores. O vizinho judeu respondeu com prazer. Pela primeira vez em muitos anos, as televisões puderam filmar crianças judias e palestinianas a brincarem juntas. E assim, ao longo de cerca de um ano, as duas famílias viveram numa coexistência pacífica, parecendo demonstrar ao mundo que, para além das divergências religiosas, o fim do conflito que separava as suas nações dependia apenas da construção de objectivos comuns. Algumas semanas depois, quando as habitações de ambas as famílias estavam prestes a ser concluídas, quando apenas restava colocar uma pedra a cada uma das casas, os dois pais de família acordaram bem dispostos e dirigiram-se para a pedreira a fim de trazerem consigo as últimas pedras. Foi quando lá chegaram que viram que restava apenas uma pedra disponível. Foi então que as notícias deram conta do final do cessar-fogo e as televisões se deslocaram ao local filmando o que restava dos brinquedos no jardim.

Anomalias - Conto a Conta-Gotas

XV.

O-i-o-ai, só a mim ninguém me cala

A história do homem que chorava ininterruptamente por causa de não ter aberto à porta ao amor ainda fazia correr tinta nos jornais e justificava tempos de antena nos programas televisivos da manhã, bem como nas aberturas de noticiários em horário nobre. Acreditem ou não, o nosso homem que chorava tornou-se, também ele, comentador televisivo, assumindo primeiro plano e granjeando vastas audiências. Começou também a assinar crónicas em jornais, uma delas num novo semanário, chamando à sua coluna «Chorar ao Sol». Numa revista cor-de-rosa, o título da coluna era outro: «Chorar sobre o Molhado». O homem que chorava estava na moda e foi nele que o homem de fato cinzento, ainda ao volante do seu BMW, pensou para assumir o rosto da campanha publicitária que na sua cabeça já fermentava. Seria uma coisa simples, mas eficaz. No ecrã televisivo aparecia o nosso homem que chorava precisamente a chorar durante alguns largos segundos e depois o som do seu pranto baixava, ouvindo-se a pergunta: «Está a ouvir este homem? É um homem que chora por todos os lados. Quantas vezes já pediu a Deus que o calasse? Fale connosco, o seu vizinho do 7º já o fez e reencontrou a felicidade.» Noutro anúncio, dezenas de bebés surgiam à volta de um homem sentado numa poltrona a tentar ouvir o Jorge Gabriel no «Jogo Falado». Lentamente, a câmara aproximava-se dos olhos do homem e aquilo que mostrava era um olhar apavorado, ouvindo-se de seguida «Se não pode calá-los, junte-se a nós.» O homem de fato cinzento, mais rato que os outros, estava quase a chegar ao escritório mas ainda teve tempo de pensar num outro spot. Uma câmara avança por entre dezenas e dezenas de corpos e conversas de mulheres, depois de algum tempo encontra um homem numa cadeira. Um grande plano da sua cara mostra que está feliz, o plano retrocede um pouco e mostra que o homem tem headphones nos ouvidos pelo que pode, relaxadamente, preparar-se para ouvir a emissão com Jorge Gabriel. E é este que diz, no final, «O-i-o-ai, só a mim ninguém me cala, mas para elas há uma solução!»

Cenas da próxima gota:
Quando o Abílio se apercebeu, ao dirigir-se ao Registo Nacional de Propriedade Industrial, de que fora «passado para trás»... ... passou-se dos cornos... ... O que lhe tolheu a passada foi uma montra... ... Já em casa, explodiu de raiva ao ver as aberturas dos noticiários...

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Anomalias - Conto a conta-gotas

XIV.

Prestes a conseguir um Royal Flush

O homem de fato cinzento é, na verdade, um rato de negócios. A vida, para ele, é-lhe ensinado desde os primeiros passos e desde as primeiras palavras, é uma grande armadilha; uma espécie de gigantesco restaurante onde os homens, em economia livre, se comem todos uns aos outros. Metaforicamente, claro está. Ora, este nosso homem de fato cinzento (e o cinzento dos seus fatos talvez tenha, no fundo, que ver com a cor dos roedores citados) é um rato maior e mais inteligente que os seus pares. Para alguma coisa também terá, de resto, servido tanto empenho e investimento dos seus progenitores nos seus estudos. E já se começa a perceber o porquê do BMW e outras coisas. Não admira, pois, que este nosso homem de fato cinzento, ao ouvir a história que Sandra lhe contava, sobre a ideia de negócio do tal de Abílio, ao que parece o amante da Juliana, tenha no imediato arrebitado as orelhas, sinal de que lhe cheirara a dinheirola. O mundo é cruel, fraca gente tem muitas vezes fortes ideias, mas é a forte gente que delas vem a tirar lucro e proveito. Antes que o Abílio desse passo na concretização dos seus intentos, já o nosso homem de fato cinzento tinha saído mais cedo do escritório, tinha deixado um póquer a meio, quando estava prestes a conseguir um Royal Flush, e se dirigia ao Registo Nacional de Propriedade Industrial, registando o seu negócio de venda de silêncio. Satisfeito com a sua sagacidade e rapidez de actuação, saiu do edifício triunfante, entrou no BMW que deixara mal estacionado em cima do passeio, e dirigiu-se a uma loja de placas e placards e coisas afins pedindo uma placa em amarelo doirado dizendo: «O Silêncio é de Oiro».

Cenas da próxima gota:

Acreditem ou não, o nosso homem que chorava tornou-se, também ele, comentador televisivo... ... O homem que chorava estava na moda... ... dezenas de bebés surgiam à volta de um homem sentado numa poltrona a tentar ouvir o Jorge Gabriel no «Jogo Falado».... ... «Se não pode calá-los, junte-se a nós.»

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Em viagem com Michel Bourles






Anomalias - Conto a conta-gotas

XIII.

Uma posição a defender

Creio que já o aventámos. O homem de fato cinzento não é por acaso que veste fato cinzento. Digamos que ele tem uma posição e uma imagem a defender. Quais?... Claro, a posição de Doutor. Nas ruas, nos bares, nos cafés, nos cinemas, nos casinos, ninguém sabe o que ele faz. É Doutor. Ponto final. E ser Doutor nos dias que passam é importante, é ter uma imagem a defender, justamente, a imagem de homem de fato cinzento, de preferência fazendo-se deslocar num BMW topo de gama. Na sua vida, tudo, de resto, é de topo: comida, bebida, viagens, roupa, equipamento electrónico, tudo. A questão é, como se chega a homem de fato cinzento? A resposta não é fácil, mas há algumas pistas que permitem ao bom observador reconhecer um potencial futuro homem de fato cinzento logo nos primeiros anos de vida. Como, por exemplo, a T-Shirt de marca às riscas, a risca no cabelo sempre direitinha, jamais pisar o risco em termos de comportamento... Enfim, já se vê, uma vida riscada logo de início. É como se tudo já estivesse nele programado à nascença. Estão a ver a sua mãe, ainda de esperanças: «O meu filho vai ser um homem de fato cinzento»! Ou então o pai, olhando a sua colecção de gravatas: «Um dia, o meu filho há-de ser um belo homem de fato cinzento e há-de querer usar todas estas gravatas às riscas.» Depois, a vida faz o homem de fato cinzento, boa escola, boa vida, boa cunha, boa empresa. Tudo a direito, rumo ao lugar reservado na garagem do prédio de escritórios. Nestas vidas, dos homens de fato cinzento, não há como se enganar. Um dos fundamentos básicos da aprendizagem dos homens de fato cinzento é nunca desaproveitar uma boa ocasião. A ocasião faz o negócio, mesmo se também signifique dar a conhecer o ladrão. Como foi no caso deste nosso homem de fato cinzento, o do BM, do lugar na garagem, da piscadela de olho a Sandra, da Internet, tal, tal, tal.


Cenas da próxima gota:


O homem de fato cinzento é, na verdade, um rato de negócios... ... E já se começa a perceber o porquê do BMW e outras coisas... ... uma placa em amarelo doirado dizendo: «O Silêncio é de Oiro»...

segunda-feira, 16 de julho de 2007

O Ig(Nobel)

Saramago, uma vez mais, no seu melhor. Ontem, em entrevista a João Céu e Silva, no «DN», veio, qual prestidigitador da nação, título de que se deve achar merecedor, preconizar, até mesmo secundar, quiçá apoiar, a inclusão futura de Portugal naquilo a que chamou uma Ibéria. Por outras palavras, Saramago anda alheado do que seja o projecto de construção europeia, desconhece que o futuro do grande espaço europeu se faz mediante agregação e não por via de integrações. Pior é parecer-lhe bem aquilo que agoira - coisa em que os comunistas são pródigos, agoirar! -, que o país que lhe deu a língua em que escreve e se expressa possa vir a fenecer sob o jugo de uma Espanha disfarçada de Ibéria. De resto, não recordo discurso, texto ou entrevista alguma de Saramago em que o Nobel vislumbre à sua volta um lampejo de optimismo, de esperança, o que quer que seja. Chateia é que o nosso Nobel insista em meter colherada a torto e a direito em seara alheia; isto é, como nenhum outro nobelizado, Saramago mete o bedelho em tudo, critica tudo e todos, provavelmente achando que a distinção de Estocolmo lhe granjeia estatuto de vidente ou grande juiz. Que Saramago goste dos espanhóis porque estes lhe curvam a espinha da crítica literária, coisa que certamente lhe faz bem ao seu vasto e conhecido ego, compreende-se, que descambe em atoardas sem pingo de patriotismo só porque talvez ache que Portugal não se lhe curva como ele desejaria, isso já não se compreende e muito custa a admitir. A não ser a vendidos e quejandos sem pinga de amor próprio.

Anomalias - Conto a conta-gotas

XII.

Troca por troca

Entretanto, os cornos do Alves cresciam em silêncio. O que daria um outro CD, pensando bem, mas baixinho, não vá alguém roubar-nos a ideia. Alguém mais esperto, estão a ver, da laia dos malandros mais inteligentes, estão a ver, como há pouco atrás se disse. Talvez «O Silêncio dos Cornudos». Entretanto: «Estes Alves são uns bivalves...», gracejava Abílio ao ouvido de Juliana. E «silêncio» sobre tudo isto, pediu-lhe, esquecendo a laia da «peça» em tinha em mãos. O silêncio, como toda a gente sabe, é a alma do negócio, mas para este negócio era, sobretudo, também precisa muita calma. Coisa cujo significado Juliana desconhecia em absoluto. Assim, no dia seguinte, no escritório onde trabalhava o homem de fato cinzento, a nova cara-metade de Sandra, aquela que acreditava em coincidências, contou tudo à amiga. Foi, no seu entender, uma espécie de paga; toma lá esta história em troca daquela que ontem me contaste. Sandra ficou em pulgas, mesmo já não tendo o Bones em casa. E de pele arrepiada foi contar tudo ao homem de fato cinzento que, por acaso, sendo nove horas, acabara de chegar, estacionara o seu BMW série 7 no seu lugar reservado na garagem, e subira ao escritório onde já se encontrava à frente do computador desfiando as primeiras páginas dos desportivos, após o que se ligaria ao site do póquer, para depois «espreitar umas miúdas», ou umas «pitas», como a meio da tarde, fumando um cigarro no hall comum do prédio, gostava de dizer.

Cenas da próxima gota:

O homem de fato cinzento não é por acaso que veste fato cinzento... ... ser Doutor nos dias que passam é importante... ... A questão é, como se chega a homem de fato cinzento?

domingo, 15 de julho de 2007

O Cristo desculpe


O Cristo Redentor que desculpe, tenha santa paciência, mas maravilha, maravilha são as sardinhas assadas! Com elas, sim, redenção total!

Pedido

- O que vai querer?
- Um Tsunami, um Tsunami bem fresquinho, aqui para a Praia da Rocha, rápido, por favor?

Anomalias - Conto a conta-gotas

XI.

O silêncio é possível, fale connosco

Se bem o pensou, melhor o fez. E do tapete se levantou, qual boxeur que reencontrasse forças no fundo do nada para se reerguer e levar o mundo ao tapete. Calado que nem um rato, como convém ao negociante da área, logo tratou de arranjar nome para a empresa. «O Silêncio é de Oiro» pareceu-lhe apropriado. Como frases promocionais de lançamento do produto surgiram-lhe várias hipóteses: «Se não tem nada para dizer, cale-se para sempre!»; «Cansado do mundo? Ouça o silêncio que temos para si.»; «Há quanto tempo não se cala?» (este pensado especialmente para comentadores televisivos); «Procura silêncio? Ouça o que temos para si.»; ou então «O Silêncio é possível, fale connosco, baixinho!» A partir daí, Abílio deixou correr a imaginação, pensou em públicos e pensou em dirigir-lhes o seu produto. Para um público católico, venderia o CD «Silêncio de Catedrais» (gravado nas mais imponentes catedrais do mundo); para um público exótico e viajante, o CD «Silêncio dos Desertos» (a gravar no coração dos desertos); para um público gótico-mórbido, o CD «Silêncio Mortal» (a gravar em cemitérios); para um público intelectual, o CD «Silêncio Crítico» (a gravar directamente de textos de crítica literária); para um público erótico, o CD «Silêncio do Amor» (a gravar junto à pele de dois amantes apaixonados), e por aí adiante. Juliana estava embasbacada face à cabecinha pensadora do seu Abílio e já pensava nas Caraíbas, imaginando-se de biquini, óculos de chapéu de sol, debaixo do fresco de um coqueiro servida por dois negros nativos, atléticos e apetitosos...

Cenas da próxima gota:

Entretanto, os cornos do Alves cresciam em silêncio... ... Entretanto: «Estes Alves são uns bivalves...», gracejava Abílio... ... Sandra ficou em pulgas, mesmo já não tendo o Bones em casa...

sexta-feira, 13 de julho de 2007

Leituras de Areia

Chesterton. Gilbert Keith Chesterton, um dos grandes escritores britânicos dos séculos XIX/ XX (1874-1936). A Europa-América publica um dos seus clássicos em livro de bolso. «O Homem que era Quinta-Feira» é um magnífico relato político-filosófico em torno dos ideais do anarquismo e da moral humana. Dito mestre do paradoxo, Chesterton tem um discurso denso, elaborado, poético e filosófico. Pena é que o tamanho do corpo da letra desta edição de bolso nos ponha os olhos também em tamanho de bolso... pena também os lapsos de revisão, por vezes graves, muito graves.

Anomalias - Conto a conta-gotas

X

Abílio vai ao tapete

Nem só os árbitros como o que roubou o Sporting são filhos da puta. É que há diversos modos de roubar, e nenhum é pior que os outros. Roubar é roubar. Ganha quem rouba mais, é a única diferença. Depois, há aqueles que sabem roubar e os que não sabem. Os primeiros, roubam e enriquecem. Os segundos, roubam e caem na merda, o mais das vezes atrás das grades. Abílio, o amante de Juliana, é da estirpe dos primeiros. Tire-se-lhe o chapéu que o homem sabe fazer a coisa. O truque, confessou ele a Juliana entre suores e lençóis, é saber aguardar pelo momento exacto. Ao bom malandro cabe-lhe apenas ser paciente, essa é, sem dúvida, a sua maior virtude. Não fez a coisa por menos, foi num outro dia de lençóis, mas também tapetes, que ouviu da Juliana os pensamentos para o ar do seu marido, o Alves, e logo se lhe fez luz. Os pensamentos sobre o silêncio, estarão recordados. A coisa de isso ser um bom negócio. Mas foi mais longe, nada de pacotinhos ou acções nem coisa que o valha, Abílio ia ser o primeiro vendedor de silêncio. Em que formato? Simples, CDs, CDs de silêncio. Um espectáculo de ideia; foi aí que, rejubilando com a sua inteligência, acabou por rolar com Juliana da cama para o tapete. E até lhe soube bem, aquele «leito» duro, o arranhar nas costas. «Ai, Julí, Julí, que ainda vamos fazer as malas mais cedo do que o que podíamos esperar!»

Cenas da próxima gota:

Se bem o pensou, melhor o fez... ... Calado que nem um rato... ... «O Silêncio é de Oiro» pareceu-lhe apropriado... ... «Cansado do mundo? Ouça o silêncio que temos para si.»...

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Anomalias - Conto a conta-gotas

IX.

Hei-de pensar nisso à séria

É de um tipo se atirar ao silêncio. Mas o mundo não vai permitir, o mundo não deixa, o mundo não vai deixar. A garganta do mundo não se cala. Na garganta do mundo cabem todas as mulheres como Juliana e como Sandra e cabem também todas as estações televisivas do mundo, e cabem ainda todos os comentadores do mundo, de todos os jornais, revistas e televisões, e cabe todo o ruído das cidades, dos trânsitos, do lixo musical, dos cães que ladram à solidão e que se calhar deviam calar-se. Há quanto tempo o mundo não se cala? O silêncio? O silêncio não existe, é uma palavra que devia ser erradicada do dicionário. Não há silêncio desde que o mundo nasceu e desde que nasceu que o seu choro se espalha pelos séculos, atravessa os tempos e vem acolher-se nos nossos ouvidos. Porque é aí que o ruído vive, nos nossos ouvidos, é de nós que se alimenta. Havia de ser um bom negócio, o do silêncio. Silêncio em pacotinhos, silêncio engarrafado, silêncio aos gomos, perfumes de silêncio, acções de silêncio, fundos de silêncio, silêncio em suaves prestações, silêncios a prazo, capitais de silêncio. Hei-de pensar nisso a séria, pensa a brincar Alves, o marido de Juliana enquanto pesca umas e outras da conversa do «Jogo Falado».

Cenas da próxima gota:

Nem só os árbitros como o que roubou o Sporting... ... Tire-se-lhe o chapéu que o homem sabe fazer a coisa... ... Os pensamentos sobre o silêncio, estarão recordados... ... «Ai, Julí, Julí, que ainda vamos fazer as malas»...


terça-feira, 10 de julho de 2007

Dádiva

Tive
uma ideia
e
dei-a.

Best of Saramago

Notícia: «O prémio Nobel de Literatura (1998) José Saramago alertou nesta segunda-feira a imprensa colombiana para uma "tentação autoritária" observada em sectores de esquerda que chegaram ao poder na América Latina. José Saramago disse que a esquerda "sofre uma espécie de tentação maligna que é a fragmentação" ao responder a uma pergunta do jornal El Tiempo sobre o ressurgimento de governos desta tendência na América Latina; deu a entender que mantinha suas reservas. "Há uma tendência autoritária em muitos países. Nada restou dos ideais", afirmou o prêmio Nobel, que também adotou um tom crítico com relação aos grupos armados que atuam na Colômbia, incluindo as guerrilhas de esquerda.» Mas onde é que este homem tem andado? Em que mundo tem vivido? Tentação? Só tentação?!

Leituras de Areia

«O Nosso GG em Havana» (Dom Quixote). Escreveu o cubano Pedro Juan Gutiérrez (Matanzas, Cuba, 1950) com a sua verve habitual. Destilando alcoóis e sexo barato quanto baste, tecendo um fresco assaz elucidativo sobre o viver e o sobreviver em Cuba, e em Havana em concreto (cidade à qual já dedicara vários livros). Como mote, um enredo mediano e «apressado», baseado em factos reais ocorridos na década de 50, que tem por protagonista o escritor Graham Greene, alicerçado em duas ou três achegas sobre obscuros interesses político-ideológicos que grassam a ilha de Fidel. Espanta é como Gutiérrez ainda consegue viver e escrever em Cuba!

Anomalias - Conto a conta-gotas

VIII.

Antes a vozinha do Ricardo

Juliana é uma mulher que gosta de falar. Sandra também. As mulheres, em geral, gostam de falar. As suas conversas são como hipermercados, nelas tudo se encontra, todas as histórias são possíveis e todas são passíveis de intermináveis comentários. O marido de Juliana é que já não a suporta. O homem anda desgraçado da vida. Chega a casa ao fim do dia, de rastos, e ainda tem de levar com as histórias do emprego de Juliana. Hoje foi a vez da história da Sandra, a colega que acredita em coincidências e que, ao que parece, viu uma novela na 4 e que não sei quê, e tudo se assemelhava à sua vida e também havia um cão morto! Que diabo, um cão morto!? E isso é notícia? Faz conversa? Uma merda de cão morto!? Há certamente qualquer anomalia na cabeça destas mulheres, resmunga para consigo Alves, o marido de Juliana que está prestes a ter uma coisa má, pois não há maneira de a mulher o deixar ouvir os comentários do Jorge Gabriel ao seu Sporting e ao filho da puta do árbitro que sancionou o golo com a mão no último jogo para a Liga. «Antes a vozinha do Ricardo», pensa.

Cenas da próxima gota:

É de um tipo se atirar ao silêncio... ... Há quanto tempo o mundo não se cala?... ... Havia de ser um bom negócio, o do silêncio... ... pensa a brincar Alves...

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Anomalias - Conto a conta-gotas

VII.

Que giro!


Era curioso como a história da novela da 4 tinha semelhanças com a história e a vizinhança de Sandra. Porque Bones era o nome do cão de Sandra e porque, ao que vão as coincidências, até havia uma Dona Sandra na história que podia muito bem ser... ela! Que giro! Amanhã no escritório já teria pano para mangas de conversa com a Juliana. Sim, porque Sandra lera um livro e, ao contrário do que lá se dizia, acreditava em coincidências. Pois não era uma coincidência a história da novela? E não era uma coincidência ter encontrado a sua alma gémea no seu agora mais-que-tudo homem de fato cinzento? E não era uma coincidência que também ele, à imagem dos seus anteriores homens de fato cinzento, fosse igualmente casado? Claro que sim.


Cenas da próxima gota:

Juliana é uma mulher que gosta de falar... ... O marido de Juliana é que já não... ... Que diabo, um cão morto!? E isso é notícia? Faz conversa? Uma merda de cão morto!?...

Esta vai para o Salazar

«El viajero era ela». O título não engana. Vem na revista do «El Pais» deste domingo e condensa a magnífica história de um oficial do exército britânico que integrou a primeira expedição inglesa que alcançou o topo do Everest. O bravo herói chamava-se, à data, James... Foi isso em 1953. Anos passados, em 1972 a sua vida mudou. James submeteu-se a uma operação de mudança de sexo, passando a responder pela graça de Jan. Hoje, octogenária e avó de nove netos, ela (que era ele) é uma «abuelita» muito especial, tendo-se tornado numa das caras mais famosas da literatura de viagens entre os súbditos/ súbditas de Sua Majestade. Eu, com preocupação, li a história e não deixei de me lembrar do meu intrépido amigo viajante Tiago Salazar, a quem desejo igual sucesso nas letras de andarilho, mas sorte distinta em matéria de manutenção da sua personalidade sexual! É que não me vejo bem, daqui a uns anos, a ir visitar a avózinha Tiga... Ai, hombre!!!

Modernos

O escritor moderno, apercebo-me agora, para além de já frequentar ginásios e apresentar saúde, não tira férias, ou se tira encontra sempre uma oportunidade para responder aos mais diversos reptos. Assim, o escritor moderno opina sobre a palermice das sete maravilhas do mundo e sobre as outras tantas lá do seu quintal (ainda a tvi se lembra de fazer um concurso com as sete maravilhas da casa de famílias portuguesas... aposto que ganhava o quadro com o menino a chorar!), o escritor moderno está presente para dizer de sua justiça sobre o sobreaquecimento global. Ele, digamos, tem algo a dizer. Eu tenho pouco a dizer, venho de férias, a minha maravilha privada chama-se praia e piscina, e a minha contribuição para a salvação do planeta passa pelo abaixamento dos níveis de stress. Está visto que não sou escritor com algo a dizer. Mas também foi por isso mesmo que escolhi este título intelectualóide para este blog.

domingo, 8 de julho de 2007

Enfim, livre!

Aí está, está no «DN» de hoje. Zita Seabra, tire-se-lhe o chapéu, reconhece, em entrevista, os podres do comunismo em que durante anos e anos de «ledo engano» adolescente e juvenil acreditou pia e cegamente e faz um mea culpa. Só espanta pelo tardio desse reconhecimento, espanta também pelo delírio ideológico em que toda aquela gente se embebeu, e em que muitos ainda hoje vivem embriagados. Como Zita diz, e bem, apenas o lado onírico do comunismo, acreditando numa sociedade igualitária (impossível à luz do real social e dos comportamentos humanos; talvez apenas possível em círculos comunitários muito restritos), o distinguiu da brutalidade das mortes propugnadas pela barbárie nazi; com uma agravante, os mortos nazis estão contabilizados (pelo menos em grande parte, ou não houvesse da parte ariana a conhecida obsessão com a contabilização), os mortos comunistas em grande parte foram apagados, cobardemente, da História. Tudo isto Zita reconhece corajosamente, e bem. Mais corajoso teria sido reconhecê-lo noutras alturas, mas a sua coragem vem ainda a tempo, uma vez que ainda hoje muitos dos seus ex-companheiros de Partido insistem em ler a História de outra maneira, ou então não ler estas partes incómodas da História. Saramago é um desses «cegos» (tão curioso, logo ele que escreveu o tão elucidativo «Ensaio Sobre a Cegueira»!), um intelectual que prefere ler a história à sua maneira, de acordo com a cartilha comunista e unitária, que é a visão comunista do mundo e dos dias. E interessante, tanto quanto certíssimo, é o que Zita afirma logo a início: a liberdade é algo de muito difícil, implica a responsabilidade de decidir: «Quando se recupera a liberdade o mundo torna-se muito mais complexo. Não é tão fácil sobreviver. Mas a liberdade é muito boa.» E pensar nos anos de liberdade que Zita perdeu! E pensar nos anos de liberdade que milhares e milhares de pessoas perderam ao longo de décadas e décadas de jugo comunista!

Anomalias - Conto a conta-gotas

VI.

O do 7º esquerdo

Houve então um homem, o do 7º esquerdo, que por acaso era canhoto, politicamente à esquerda, usava risca no cabelo do lado esquerdo e tinha um carro com o volante à esquerda, mas que não acreditava em coincidências, que, perante o berreiro do vizinho, ameaçou suicidar-se, coisa que, ao contrário do senhor Azevedo, do rés-do-chão, podia fazer, já que vivia no 7º e o acto pensado de suicídio consistia num voo livre picado. Todos protestaram ao vê-lo acercar-se perigosamente da marquise que dava para o poço onde um certo cão, de sua graça Bones, fora encontrado, ao que parece para ali lançado por miudagem com requintes de malvadez. Ninguém queria mais publicidade negativa no prédio, já bastava o cão, que nem sequer era de nenhum deles, mas pertencia à Dona Sandra, do prédio ao lado, já bastava o choro do homem que, esperando, não foi atender o amor à sua porta e agora definhava em pranto para todo o sempre. Donde que lhe suplicaram que desistisse dos seus intentos. E foi o senhor Azevedo que, após a mais rápida reunião de condóminos do mundo (coisa para figurar no Guiness, e em adenda tal ponto ficou de se tratar em reunião seguinte), e ainda que a contragosto, algo azedo, comunicou ao senhor do 7º que em troca da sua desistência de pôr fim à vida lhe perdoariam o ano e meio de rendas de condomínio em atraso e a promessa de que ele, no ano seguinte, não teria de assumir a administração do prédio. O homem do 7º esquerdo achou bom o negócio e reentrou com o pé direito em casa. Só mais tarde se lembrou de que não resolvera o problema do barulho com a choradeira do senhor que não atendeu o amor e que por isso continuava num pranto desmedido – qual Maria Madalena qual quê!

Cenas da próxima gota:

Era curioso... ... Porque Bones era o nome do cão de Sandra... ... Que giro!... ... Sim, porque Sandra lera um livro... ... Claro que sim...

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Anomalias - Conto a conta-gotas

V.
A testemunha e a carta

Na novela da 4 havia um homem que esperava. Toda a sua vida tinha esperado. Esperado que a sorte lhe batesse à porta, esperado que o amor lhe batesse à porta. Os dias passavam, a campainha tocava, voltava a tocar, insistia novamente, mas ele nem se mexia. Tinha medo, medo que fosse o azar a bater-lhe à porta. Ou então um daqueles meninos chatos a quererem fazer inquéritos à hora do jantar, ou então o sacana do guarda nocturno (a pé a desoras!) a cobrar não sei o quê ou que mensalidade com um ar de quem nos olha e diz «se não passas para cá a massa parto-te o carro todo», ou, quem sabe até, um par de senhoras idosas a quererem vender a fé de Cristo para ajudar à construção de uma igrejola lá na sua freguesia, quem sabe mesmo, uma testemunha de Jeová perguntando se Deus já me visitara! Certa tarde a campainha da porta soou insistentemente, parecendo mais que quem tocava fosse um cobrador, um daqueles tipos de fato negro apostados em só desandar dali para fora quando as dívidas fossem saldadas. O homem que esperava, que toda a sua vida tinha esperado e que, por medo, nunca atendia a porta, nesse dia estremeceu. Enterrou-se no sofá a ouvir a estridência da campainha à medida que suores frios lhe iam assolando o corpo e, quando finalmente, já ao fim da tarde, quem lhe batia à porta desistiu de o fazer, descobriu que tinha ganho uma brutal enxaqueca. Só alguns dias depois, quando recebeu uma carta registada, soube que perdera a oportunidade da sua vida – o amor batera-lhe à porta e ele não atendera. «Lamentamos informá-lo mas acaba de perder a oportunidade de conhecer o amor da sua vida.» O homem caiu então num choro terrível, num berreiro que mais parecia estarem ali a abrirem um porco à facada, e foi uma chatice. Lá no prédio foi uma enorme chatice porque, a partir desse dia, já ninguém conseguia pregar olho.

Cenas da próxima gota:

Houve então um homem, o do 7º esquerdo... ... Todos protestaram ao vê-lo acercar-se perigosamente da marquise... Donde que lhe suplicaram que desistisse dos seus intentos...

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Anomalias - Conto a conta-gotas

IV.
Sandra também não chorou

Porque o homem de fato cinzento lhe prometeu divorciar-se em breve, porque lhe prometeu aumento salarial, porque lhe prometeu, no futuro próximo, algumas escapadelas ao estrangeiro, quem sabe, já para o mês que vem, ao Brasil. A mulher? Que não, que Sandra não se preocupasse, ele tratava do assunto, trataria do assunto com o mesmo profissionalismo com que conduzia os seus negócios, com a mesma lisura com que vestia diariamente o seu irrepreensível fato cinzento, saía de casa, chegava ao escritório às nove, entrava no seu gabinete, jogava póquer na Internet, almoçava, discutia futebol com os porteiros do prédio, voltava à Internet e depois regressava a casa, noite alta, conduzindo ao som do «Bancada Central». Por tudo isto, por acreditar no seu homem de fato cinzento, Sandra chegou a casa, sentiu um leve mau cheiro no ar, mas nem se lembrou de saber por onde andava o Bones. Sandra, portanto, não chorou. Limitou-se a ligar a televisão, sintonizando a novela da 4.

Cenas da próxima gota:

Na novela da 4 havia um homem que esperava... ... Só alguns dias depois, quando recebeu uma carta registada, soube que perdera a oportunidade da sua vida... ... Chorou horrivelmente...

quarta-feira, 4 de julho de 2007