XVII.
De novo a autora. Um edil voltado para as coisas da cultura. A porca torceu o rabo. Mais uma grande ideia do director. A Vasco da Gama a 220 quilómetros por hora. Beijinhos aqui e acolá, o encontro de escritores, dito residência. A suite 69. Os olhos a caírem para um Pão de Rala e até ao presidente sabia bem um mergulho.
Há já um bom par de páginas que não trazemos aqui notícias da nossa autora. Aliás, leit motiv primordial para todo este arrazoado de palavras, para toda esta história de contornos assaz singulares e de desenlace desconhecido, inclusive ainda até para o próprio autor destas linhas. Mas vejamos então onde tínhamos deixado a nossa escritora de sucesso, a best seller entre os best sellers. Exactamente, atento e avisado leitor, tinhamo-la deixado vai não vai para se dirigir a uma cidadezinha do interior do país, cujo edil local, muito voltado para as coisas da cultura (que, descobrira recentemente até era coisa que estava na moda, pelo que talvez fazer umas coisitas na área lhe pudesse granjear alguma popularidade para as eleições que se aproximavam), se lembrara de convidar meia-dúzia de escritores para uma «residência literária».
Etelvina Prazeres, enquanto nome do momento, não poderia não ter sido convidada. Aliás, a primeira convidada, se calhar mesmo a única convidada com verdadeiro interesse aos olhos do autarca anfitrião. Etelvina nunca tinha ouvido falar em coisa semelhante, uma residência, para ela, era apenas uma grande casa, um casarão ou um palacete, como aquele em que em tempos não muito distantes vivera com o seu ex-presidente do tal clube desportivo nortenho, de resto, o homem que estivera na base do sucesso do seu livro. A verdade é que quando ela pensava que a convidavam para tirar umas feriazitas (mais do que merecidas) num qualquer turismo rural do interior, e já, alegre e contente, se preparava para fazer as malas, a conversa com o seu editor é que veio iluminá-la em parte quanto aos reais objectivos de iniciativas como aquela. Que sim, que até seria numa bela casa, talvez mesmo num turismo rural, disse-lhe o director editorial, mas que o propósito era que os escritores participassem em mesas-redondas com o público acerca das suas experiências de escrita, e, sobretudo, que essa residência lhes permitisse escrever um texto novo, de preferência acerca dessa mesma experiência.
Aí é que a porca torceu o rabo para Etelvina! Como diabo haveria ela de se pôr a escrever fosse o que fosse? Então o director não sabia também que fora o escritor-fantasma a escrever o seu livro, limitando-se ela a contar-lhe episódios avulsos da sua vida? O director editorial disse que sim, que sabia isso muito bem, mas que nestas coisas das residências a coisa era mesmo só para os escritores... A não ser... «A não ser o que?», perguntou-lhe logo a escritora, garantindo uma vez mais que sem a presença do seu fantasma, o Salvador, ela era incapaz de escrever uma palavra. «A não ser», disse o director, «que juntemos o útil ao agradável». E lá explicou o que tinha em mente. Contou a Etelvina dos anseios de reconhecimento de José Salvador, farto que estava da sua profissão de escritor-fantasma, chegando depois ao ponto que mais agradou à autora. Falaria com o fantasma para que a acompanhasse à dita residência. O homem haveria de ficar contente e certamente que lhe agradaria o facto de a acompanhar, de sair para o campo, de apanhar ar puro e fresco e, claro, contactar com os outros escritores. E como contornar a questão autárquica?, perguntou Etelvina. «Nada que não se possa solucionar», garantiu o director, pegando no telefone e pedindo à sua secretária, a dona Paula, que lhe fizesse uma «ligaçãozinha» para o senhor presidente de Câmara da povoação onde a dita residência teria lugar.
Pouco tardou em que a dona Paula lhe ligasse de volta pondo o director em linha directa com o autarca. A conversa correu com muitos rodriguinhos de apreciação mútua, com muitos assentimentos, e com a promessa de um visita oportuna do director ao presidente que o levaria a provar as iguarias da região. Etelvina não percebeu quais. «Prontos, está tudo resolvido», disse o director para a sua autora, «vou falar com o fantasma para também fazer as malas. A ver se o homem ganha uma corzinha!» Etelvina suspirou de alívio, assim, sim, teria imenso prazer em participar na residência. Ao director, pediu apenas que falasse com o fantasma no sentido de ele, durante o período da deslocação, actuar com a discrição possível, na sombra, por assim dizer, até para não dar muito nas vistas junto dos outros escritores.
Na manhã do dia aprazado para a ida até à cidadezinha do interior onde todos os escritores ficaram de se encontrar pelas 11h30 da manhã, seguindo para residência onde deixariam as malas e logo depois para um almoço de boas-vindas, Etelvina estava com um nervoso miudinho. Ficara de se encontrar à porta da editora para apanhar o escritor-fantasma e ali estando, não havia maneira de ele aparecer. Por fim, lá apareceu trazendo uma malinha a tiracolo, vestindo calças brancas largas de linho e uma camisa cheia de flores amarelas e vermelhas, bem ao jeito e gosto africano. Os óculos escuros compunham a figura e davam o toque final. Etelvina não se conteve e começou a rir-se dele bem nas suas barbas, expressão embora fiel, talvez algo deslocada de um sentido real uma vez que o fantasma tinha muito pouca barba. Na verdade, despontavam-lhe nas faces apenas dois ou três pêlos mal semeados, o que a ninguém espantaria até porque onde é que já se viram fantasmas com barba?
Prosseguiram então viagem, passando a ponte Vasco da Gama a mais de 220 quilómetros por hora. Etelvina cantava com uma voz esganiçada as canções que o rádio ia debitando, com os hits mais recentes dos cantores de novela nacionais. Quanto ao escritor-fantasma, por trás dos seus óculos escuros seguia agarrado ao banco do BMW da autora, mais assustado do que um susto, todo ele pele de galinha e já a desfazer-se em rezas e promessas assim chegasse são e salvo ao destino. Transcorrida pouco mais de uma hora de viagem, sempre em alta cavalagem e grande gritaria a bordo, Etelvina e o fantasma chegaram à porta da Câmara Municipal, local marcado para encontro antes de seguirem até à residência. Tinham conseguido chegar a horas.
À sua espera estavam o presidente da Câmara e o seu vereador da Cultura, bem como os outros escritores. Etelvina, contudo, estranhou o seu número, pensou que seriam mais cinco, com ela seis, e a verdade é que estavam ali, para além do edil e do vereador, mais dez pessoas! «Dez, senhor presidente? Então não éramos só seis escritores participantes?» O presidente sorriu, pôs-lhe o braço sobre o ombro e apressou-se a esclarecê-la. A coisa era simples, é que todos os seus colegas escritores tinham também decidido participar na residência acompanhados dos seus escritores-fantasmas. Etelvina fez um grande ar de espanto mas lá acabou por sorrir, sentindo-se com isso muito melhor. Afinal, todos os grandes escritores têm os seus fantasmas. E nessa medida se calhar ela era mesmo uma grande escritora... Quem sabe, um dia não acabava mesmo por escrever poesia, essa tal arte maior da escrita reservada aos maiores entre os maiores.
Beijinhos aqui e beijinhos acolá, escritores e escritores-fantasmas cumprimentaram-se, alegrando-se pela experiência que tinham pela frente. Etelvina apresentou-se e apresentou o seu Zé, o seu querido fantasma. Curiosamente, o Zé já tinha tratado de se apresentar, estando agora em amena cavaqueira com os seus pares fantasmas, eles sim, afinal, os verdadeiros interessados na literatura e no programa a cumprir previamente definido pela autarquia conjuntamente com a biblioteca local, cuja directora entretanto também e juntara ao grupo. Um grupo alegre, jovial e colorido, sobretudo por via do garrido das corres das roupas dos escritores-fantasmas, que partiu em caravana até à tão sonhada residência, efectivamente, uma antiga casa apalaçada, situada no campo e agora transformada em moderno turismo rural.
Como eram doze, e não seis, os participantes do evento, metade dos quartos da «residência» ficaram por conta dos homens e mulheres das letras, para ser mais concreto por conta de cinco escritores homens, seis escritores-fantasmas também homens e... e apenas uma escritora, Etelvina Prazeres, que, dada a grandeza do seu sucesso literário, tivera direito a uma suite, a número 69. E quanto prazer e honra ela tinha nisso, confessaria depois ao presidente que já não a largava como cão a um osso, quanto prazer em ser a única representante feminina num evento de tamanha importância. Deste primeiro contacto dos escritores com o local onde passariam a residir nos dias seguintes pouco mais há a dizer senão dois pequenos apartes: primeiro, as muitas malas com que Etelvina encheu o seu quarto, mais parecendo que trouxera consigo a totalidade do seu guarda-roupa; depois, que logo, logo, mal ali chegados, o seu escritor-fantasma desaparecera. Nada de especial se passara, pouco depois já ele também se dirigia para o hall de entrada, vindo do bar e acompanhado dos seus pares fantasmas, onde já estivera a bebericar um Porto de Honra, seguido de quejandos alcalóides. Zé Salvador ostentava um sorriso na cara de grande satisfação, era a primeira vez que sentia o prazer destes encontros literários e estava disposto a retirar da experiência tudo o que pudesse. A comitiva seguiu então para um restaurante ali próximo onde inúmeras iguarias regionais os aguardavam.
Os escritores e os escritores-fantasmas comeram que nem presidentes. Bem, quase como presidentes, porque se esses fossem tomados à imagem do presidente da Câmara local, que enfardava como Etelvina nunca vira, a imagem cairia por terra. Acompanhar a voracidade do estômago do homem era tarefa impossível para qualquer mortal, mesmo para qualquer escritor ou escritor-fantasma esfaimado, como se mostrava, de resto, Zé Salvador, repetindo três vezes o prato principal, depois de comer umas entradinhas, e preparando agora o ataque à mesa das sobremesas em regime de self service. Caíram-lhe os olhos para um Pão de Rala, para uns Morgados e para um arroz doce divinal feito com leite de cabra. Satisfeito, mas não terminado, Zé ainda encontrou espaço para uma fatiazinha de Sericá, pondo termo à refeição com a ameixa de Elvas da praxe seguida da degustação de uma aguardentezinha da garrafeira particular do Chefe que tinha tanto de «pomada» como de «bomba»!
No fim do repasto, a directora da Biblioteca local levantou-se distribuindo aos escritores uma folha A4 com o programa da «1ª Residência de Escritores Abel Antero - 2007» – Abel Antero era o nome de um escritor local que assim a autarquia aproveitava para homenagear, depois de ter descerrado uma placa na casa onde ele nascera e de conceder o seu nome a uma rua da localidade. Em amena e alegre conversa, os escritores, todos eles, se apressaram a entregar as folhas aos seus escritores-fantasmas, continuando as provas vinícolas da região comandadas pelo senhor presidente. Em conversa com Etelvina, o senhor presidente confessou-lhe que só tinha lido alguns parágrafos do seu «extraordinário» livro, que ela não levasse a mal, mas é que ele tinha um não-sei-quê com a leitura, que quase nunca conseguia arrancar do primeiro parágrafo e que a última coisa que lera já nem se lembrava. Gostava, sim, do Tio Patinhas, que comprava desde criança. No entanto, ressalvava, tinha lá em casa um Lobo Antunes que a editora lhe mandara e que, quem sabe um dia, com a graça de Deus, conseguiria ler. Embora duvidasse de ter tempo para essas coisas, tão «atazanado» andava sempre com os problemas que os seus opositores lhe arranjavam na Câmara. Etelvina, de sua parte, confessou também que não achava grande piada ao Tio Patinhas e que preferia mesmo o Donald. E sobre esta divergência entraram os dois em prolífica discussão.
Batiam quase as três da tarde de um dia que se mostrava cheio de sol e calor, quando o presidente chama a empregada de mesa do restaurante dizendo-lhe para dizer ao Chefe para pôr a dolorosa na conta da Câmara. Depois, dirige-se aos escritores e aos escritores-fantasmas convidando-os a dar seguimento ao programa estabelecido pela directora da Biblioteca, no caso um encontro com o público para apresentação das obras respectivas. Chegando-se uns aos outros, os escritores-escritores, não os fantasmas, trocaram breves impressões e rapidíssimas conclusões que imediatamente trataram de transmitir ao presidente da Câmara por intermédio de Etelvina Prazeres fazendo uso do elevado capital de simpatia que esta nutria junto do edil. E que lhe comunicou aquela? Que os escritores achavam que estando um belo dia de sol, estando um calor que apenas convidava ao desfrute de um banho de piscina, estando, ainda para mais de barrigas cheias, seria bem melhor que pudessem ir para a residência e aí aproveitar o resto da tarde com uns mergulhos oferecendo aos corpos um belo bronzeado. Consideravam eles que tal hipótese bem melhor serviria os intentos primeiros de vir a conseguir que eles se inspirassem para a redacção de um qualquer texto original. O presidente ouviu, considerou, em voz baixa, que compreendia muito bem a situação, que até a ele lhe apetecia um banhito, quem sabe até os poderia acompanhar no gozo da piscina, e que teria apenas de dar uma palavrinha à directora da Biblioteca, que, adiantou entre dentes, é uma chata do piorio sempre com os livros e os escritores atrás dela!
Assim disse, assim fez e assim regressou para junto de Etelvina dizendo-lhe que estava tudo resolvido, que tinha tido uma excelente ideia e que só tinha de ir a casa buscar os calções de banho e a toalha, deixar o vereador da Cultura na Câmara, e que em menos de nada se lhe juntaria na residência, oferecendo-se, desde logo, para lhe pôr o creme nas costas, assim ela o permitisse, naturalmente, e não visse nisso incómodo de maior ou qualquer avanço de sua parte. «Senhor presidente, por quem é? Então ia eu achar tal coisa de uma pessoa tão distinta como o senhor?» E a ideia? A ideia do presidente? Ah, pois claro, esta: o edil lembrou-se e bem de «convidar» os escritores fantasma a fazerem as vezes dos escritores na dita sessão de apresentação de obras ao público local. Pois se não tinham eles enchido o papo, e de que maneira, essa haveria de ser a forma de pagarem o repasto. Sim, que isto de andar a escrevinhar livros não é trabalho que se veja. Ainda para mais escritores de segunda fila, escritores-fantasmas.
E todos se foram então às suas vidas e afazeres. Os escritores dirigiram-se a banhos para a residência, todos metidos no BMW de Etelvina, em busca de inspiração soalheira para as suas empreitadas literárias, no seu Mercedes o autarca levou consigo o vereador e a directora da biblioteca, enquanto que aos escritores-fantasmas foi-lhes indicado que aguardassem um pouco que no entretanto uma camioneta da Câmara os viria buscar para levá-los até à Biblioteca Municipal onde tratariam de entreter conversa com a audiência, dando a conhecer a vida e obra dos escritores que representavam. A coisa acabaria por correr mal de todo. A princípio os locais que ali se deslocaram na intenção de conversar com os seus escritores favoritos ainda desconfiaram de que lhes estavam a enfiar um grande barrete, mas depois da conversa engatar e fluir, com os escritores-fantasmas a falarem de literatura com algum conhecimento de causa, a verdade é que, no final, todos os presentes se convenceram de que aqueles escritores, sendo fantasmas, tinham muito mais a dizer e para dizer do que os verdadeiros escritores.
Entretanto, estirada ao sol junto à piscina, em biquini deveras poupado no tecido e com um elaborado cocktail que bebericava por uma palhinha, Etelvina encontrava-se no melhor dos mundos, rodeada pelos cinco escritores e pelo presidente de Câmara que, cheio de ciúmes, tratava de enxotar os escritores para longe, ao mesmo tempo que preparava os óleos com que trataria de ungir a sua autora predilecta. «É bom que desapareçam, senão ainda os obrigo a ir para a Biblioteca aturar aquela gente», disse o presidente a Etelvina que achou a piada óptima, respondendo, «ó senhor presidente, não é preciso tanto, olhe que isso era uma maldade! Afinal de contas só estávamos a trocar ideias acerca dos nossos escritores-fantasmas, que são como as empregadas lá em casa e assim... Seu maroto, tem a certeza de que esses óleos são para bronzeados ou para massagens?»
De novo a autora. Um edil voltado para as coisas da cultura. A porca torceu o rabo. Mais uma grande ideia do director. A Vasco da Gama a 220 quilómetros por hora. Beijinhos aqui e acolá, o encontro de escritores, dito residência. A suite 69. Os olhos a caírem para um Pão de Rala e até ao presidente sabia bem um mergulho.
Há já um bom par de páginas que não trazemos aqui notícias da nossa autora. Aliás, leit motiv primordial para todo este arrazoado de palavras, para toda esta história de contornos assaz singulares e de desenlace desconhecido, inclusive ainda até para o próprio autor destas linhas. Mas vejamos então onde tínhamos deixado a nossa escritora de sucesso, a best seller entre os best sellers. Exactamente, atento e avisado leitor, tinhamo-la deixado vai não vai para se dirigir a uma cidadezinha do interior do país, cujo edil local, muito voltado para as coisas da cultura (que, descobrira recentemente até era coisa que estava na moda, pelo que talvez fazer umas coisitas na área lhe pudesse granjear alguma popularidade para as eleições que se aproximavam), se lembrara de convidar meia-dúzia de escritores para uma «residência literária».
Etelvina Prazeres, enquanto nome do momento, não poderia não ter sido convidada. Aliás, a primeira convidada, se calhar mesmo a única convidada com verdadeiro interesse aos olhos do autarca anfitrião. Etelvina nunca tinha ouvido falar em coisa semelhante, uma residência, para ela, era apenas uma grande casa, um casarão ou um palacete, como aquele em que em tempos não muito distantes vivera com o seu ex-presidente do tal clube desportivo nortenho, de resto, o homem que estivera na base do sucesso do seu livro. A verdade é que quando ela pensava que a convidavam para tirar umas feriazitas (mais do que merecidas) num qualquer turismo rural do interior, e já, alegre e contente, se preparava para fazer as malas, a conversa com o seu editor é que veio iluminá-la em parte quanto aos reais objectivos de iniciativas como aquela. Que sim, que até seria numa bela casa, talvez mesmo num turismo rural, disse-lhe o director editorial, mas que o propósito era que os escritores participassem em mesas-redondas com o público acerca das suas experiências de escrita, e, sobretudo, que essa residência lhes permitisse escrever um texto novo, de preferência acerca dessa mesma experiência.
Aí é que a porca torceu o rabo para Etelvina! Como diabo haveria ela de se pôr a escrever fosse o que fosse? Então o director não sabia também que fora o escritor-fantasma a escrever o seu livro, limitando-se ela a contar-lhe episódios avulsos da sua vida? O director editorial disse que sim, que sabia isso muito bem, mas que nestas coisas das residências a coisa era mesmo só para os escritores... A não ser... «A não ser o que?», perguntou-lhe logo a escritora, garantindo uma vez mais que sem a presença do seu fantasma, o Salvador, ela era incapaz de escrever uma palavra. «A não ser», disse o director, «que juntemos o útil ao agradável». E lá explicou o que tinha em mente. Contou a Etelvina dos anseios de reconhecimento de José Salvador, farto que estava da sua profissão de escritor-fantasma, chegando depois ao ponto que mais agradou à autora. Falaria com o fantasma para que a acompanhasse à dita residência. O homem haveria de ficar contente e certamente que lhe agradaria o facto de a acompanhar, de sair para o campo, de apanhar ar puro e fresco e, claro, contactar com os outros escritores. E como contornar a questão autárquica?, perguntou Etelvina. «Nada que não se possa solucionar», garantiu o director, pegando no telefone e pedindo à sua secretária, a dona Paula, que lhe fizesse uma «ligaçãozinha» para o senhor presidente de Câmara da povoação onde a dita residência teria lugar.
Pouco tardou em que a dona Paula lhe ligasse de volta pondo o director em linha directa com o autarca. A conversa correu com muitos rodriguinhos de apreciação mútua, com muitos assentimentos, e com a promessa de um visita oportuna do director ao presidente que o levaria a provar as iguarias da região. Etelvina não percebeu quais. «Prontos, está tudo resolvido», disse o director para a sua autora, «vou falar com o fantasma para também fazer as malas. A ver se o homem ganha uma corzinha!» Etelvina suspirou de alívio, assim, sim, teria imenso prazer em participar na residência. Ao director, pediu apenas que falasse com o fantasma no sentido de ele, durante o período da deslocação, actuar com a discrição possível, na sombra, por assim dizer, até para não dar muito nas vistas junto dos outros escritores.
Na manhã do dia aprazado para a ida até à cidadezinha do interior onde todos os escritores ficaram de se encontrar pelas 11h30 da manhã, seguindo para residência onde deixariam as malas e logo depois para um almoço de boas-vindas, Etelvina estava com um nervoso miudinho. Ficara de se encontrar à porta da editora para apanhar o escritor-fantasma e ali estando, não havia maneira de ele aparecer. Por fim, lá apareceu trazendo uma malinha a tiracolo, vestindo calças brancas largas de linho e uma camisa cheia de flores amarelas e vermelhas, bem ao jeito e gosto africano. Os óculos escuros compunham a figura e davam o toque final. Etelvina não se conteve e começou a rir-se dele bem nas suas barbas, expressão embora fiel, talvez algo deslocada de um sentido real uma vez que o fantasma tinha muito pouca barba. Na verdade, despontavam-lhe nas faces apenas dois ou três pêlos mal semeados, o que a ninguém espantaria até porque onde é que já se viram fantasmas com barba?
Prosseguiram então viagem, passando a ponte Vasco da Gama a mais de 220 quilómetros por hora. Etelvina cantava com uma voz esganiçada as canções que o rádio ia debitando, com os hits mais recentes dos cantores de novela nacionais. Quanto ao escritor-fantasma, por trás dos seus óculos escuros seguia agarrado ao banco do BMW da autora, mais assustado do que um susto, todo ele pele de galinha e já a desfazer-se em rezas e promessas assim chegasse são e salvo ao destino. Transcorrida pouco mais de uma hora de viagem, sempre em alta cavalagem e grande gritaria a bordo, Etelvina e o fantasma chegaram à porta da Câmara Municipal, local marcado para encontro antes de seguirem até à residência. Tinham conseguido chegar a horas.
À sua espera estavam o presidente da Câmara e o seu vereador da Cultura, bem como os outros escritores. Etelvina, contudo, estranhou o seu número, pensou que seriam mais cinco, com ela seis, e a verdade é que estavam ali, para além do edil e do vereador, mais dez pessoas! «Dez, senhor presidente? Então não éramos só seis escritores participantes?» O presidente sorriu, pôs-lhe o braço sobre o ombro e apressou-se a esclarecê-la. A coisa era simples, é que todos os seus colegas escritores tinham também decidido participar na residência acompanhados dos seus escritores-fantasmas. Etelvina fez um grande ar de espanto mas lá acabou por sorrir, sentindo-se com isso muito melhor. Afinal, todos os grandes escritores têm os seus fantasmas. E nessa medida se calhar ela era mesmo uma grande escritora... Quem sabe, um dia não acabava mesmo por escrever poesia, essa tal arte maior da escrita reservada aos maiores entre os maiores.
Beijinhos aqui e beijinhos acolá, escritores e escritores-fantasmas cumprimentaram-se, alegrando-se pela experiência que tinham pela frente. Etelvina apresentou-se e apresentou o seu Zé, o seu querido fantasma. Curiosamente, o Zé já tinha tratado de se apresentar, estando agora em amena cavaqueira com os seus pares fantasmas, eles sim, afinal, os verdadeiros interessados na literatura e no programa a cumprir previamente definido pela autarquia conjuntamente com a biblioteca local, cuja directora entretanto também e juntara ao grupo. Um grupo alegre, jovial e colorido, sobretudo por via do garrido das corres das roupas dos escritores-fantasmas, que partiu em caravana até à tão sonhada residência, efectivamente, uma antiga casa apalaçada, situada no campo e agora transformada em moderno turismo rural.
Como eram doze, e não seis, os participantes do evento, metade dos quartos da «residência» ficaram por conta dos homens e mulheres das letras, para ser mais concreto por conta de cinco escritores homens, seis escritores-fantasmas também homens e... e apenas uma escritora, Etelvina Prazeres, que, dada a grandeza do seu sucesso literário, tivera direito a uma suite, a número 69. E quanto prazer e honra ela tinha nisso, confessaria depois ao presidente que já não a largava como cão a um osso, quanto prazer em ser a única representante feminina num evento de tamanha importância. Deste primeiro contacto dos escritores com o local onde passariam a residir nos dias seguintes pouco mais há a dizer senão dois pequenos apartes: primeiro, as muitas malas com que Etelvina encheu o seu quarto, mais parecendo que trouxera consigo a totalidade do seu guarda-roupa; depois, que logo, logo, mal ali chegados, o seu escritor-fantasma desaparecera. Nada de especial se passara, pouco depois já ele também se dirigia para o hall de entrada, vindo do bar e acompanhado dos seus pares fantasmas, onde já estivera a bebericar um Porto de Honra, seguido de quejandos alcalóides. Zé Salvador ostentava um sorriso na cara de grande satisfação, era a primeira vez que sentia o prazer destes encontros literários e estava disposto a retirar da experiência tudo o que pudesse. A comitiva seguiu então para um restaurante ali próximo onde inúmeras iguarias regionais os aguardavam.
Os escritores e os escritores-fantasmas comeram que nem presidentes. Bem, quase como presidentes, porque se esses fossem tomados à imagem do presidente da Câmara local, que enfardava como Etelvina nunca vira, a imagem cairia por terra. Acompanhar a voracidade do estômago do homem era tarefa impossível para qualquer mortal, mesmo para qualquer escritor ou escritor-fantasma esfaimado, como se mostrava, de resto, Zé Salvador, repetindo três vezes o prato principal, depois de comer umas entradinhas, e preparando agora o ataque à mesa das sobremesas em regime de self service. Caíram-lhe os olhos para um Pão de Rala, para uns Morgados e para um arroz doce divinal feito com leite de cabra. Satisfeito, mas não terminado, Zé ainda encontrou espaço para uma fatiazinha de Sericá, pondo termo à refeição com a ameixa de Elvas da praxe seguida da degustação de uma aguardentezinha da garrafeira particular do Chefe que tinha tanto de «pomada» como de «bomba»!
No fim do repasto, a directora da Biblioteca local levantou-se distribuindo aos escritores uma folha A4 com o programa da «1ª Residência de Escritores Abel Antero - 2007» – Abel Antero era o nome de um escritor local que assim a autarquia aproveitava para homenagear, depois de ter descerrado uma placa na casa onde ele nascera e de conceder o seu nome a uma rua da localidade. Em amena e alegre conversa, os escritores, todos eles, se apressaram a entregar as folhas aos seus escritores-fantasmas, continuando as provas vinícolas da região comandadas pelo senhor presidente. Em conversa com Etelvina, o senhor presidente confessou-lhe que só tinha lido alguns parágrafos do seu «extraordinário» livro, que ela não levasse a mal, mas é que ele tinha um não-sei-quê com a leitura, que quase nunca conseguia arrancar do primeiro parágrafo e que a última coisa que lera já nem se lembrava. Gostava, sim, do Tio Patinhas, que comprava desde criança. No entanto, ressalvava, tinha lá em casa um Lobo Antunes que a editora lhe mandara e que, quem sabe um dia, com a graça de Deus, conseguiria ler. Embora duvidasse de ter tempo para essas coisas, tão «atazanado» andava sempre com os problemas que os seus opositores lhe arranjavam na Câmara. Etelvina, de sua parte, confessou também que não achava grande piada ao Tio Patinhas e que preferia mesmo o Donald. E sobre esta divergência entraram os dois em prolífica discussão.
Batiam quase as três da tarde de um dia que se mostrava cheio de sol e calor, quando o presidente chama a empregada de mesa do restaurante dizendo-lhe para dizer ao Chefe para pôr a dolorosa na conta da Câmara. Depois, dirige-se aos escritores e aos escritores-fantasmas convidando-os a dar seguimento ao programa estabelecido pela directora da Biblioteca, no caso um encontro com o público para apresentação das obras respectivas. Chegando-se uns aos outros, os escritores-escritores, não os fantasmas, trocaram breves impressões e rapidíssimas conclusões que imediatamente trataram de transmitir ao presidente da Câmara por intermédio de Etelvina Prazeres fazendo uso do elevado capital de simpatia que esta nutria junto do edil. E que lhe comunicou aquela? Que os escritores achavam que estando um belo dia de sol, estando um calor que apenas convidava ao desfrute de um banho de piscina, estando, ainda para mais de barrigas cheias, seria bem melhor que pudessem ir para a residência e aí aproveitar o resto da tarde com uns mergulhos oferecendo aos corpos um belo bronzeado. Consideravam eles que tal hipótese bem melhor serviria os intentos primeiros de vir a conseguir que eles se inspirassem para a redacção de um qualquer texto original. O presidente ouviu, considerou, em voz baixa, que compreendia muito bem a situação, que até a ele lhe apetecia um banhito, quem sabe até os poderia acompanhar no gozo da piscina, e que teria apenas de dar uma palavrinha à directora da Biblioteca, que, adiantou entre dentes, é uma chata do piorio sempre com os livros e os escritores atrás dela!
Assim disse, assim fez e assim regressou para junto de Etelvina dizendo-lhe que estava tudo resolvido, que tinha tido uma excelente ideia e que só tinha de ir a casa buscar os calções de banho e a toalha, deixar o vereador da Cultura na Câmara, e que em menos de nada se lhe juntaria na residência, oferecendo-se, desde logo, para lhe pôr o creme nas costas, assim ela o permitisse, naturalmente, e não visse nisso incómodo de maior ou qualquer avanço de sua parte. «Senhor presidente, por quem é? Então ia eu achar tal coisa de uma pessoa tão distinta como o senhor?» E a ideia? A ideia do presidente? Ah, pois claro, esta: o edil lembrou-se e bem de «convidar» os escritores fantasma a fazerem as vezes dos escritores na dita sessão de apresentação de obras ao público local. Pois se não tinham eles enchido o papo, e de que maneira, essa haveria de ser a forma de pagarem o repasto. Sim, que isto de andar a escrevinhar livros não é trabalho que se veja. Ainda para mais escritores de segunda fila, escritores-fantasmas.
E todos se foram então às suas vidas e afazeres. Os escritores dirigiram-se a banhos para a residência, todos metidos no BMW de Etelvina, em busca de inspiração soalheira para as suas empreitadas literárias, no seu Mercedes o autarca levou consigo o vereador e a directora da biblioteca, enquanto que aos escritores-fantasmas foi-lhes indicado que aguardassem um pouco que no entretanto uma camioneta da Câmara os viria buscar para levá-los até à Biblioteca Municipal onde tratariam de entreter conversa com a audiência, dando a conhecer a vida e obra dos escritores que representavam. A coisa acabaria por correr mal de todo. A princípio os locais que ali se deslocaram na intenção de conversar com os seus escritores favoritos ainda desconfiaram de que lhes estavam a enfiar um grande barrete, mas depois da conversa engatar e fluir, com os escritores-fantasmas a falarem de literatura com algum conhecimento de causa, a verdade é que, no final, todos os presentes se convenceram de que aqueles escritores, sendo fantasmas, tinham muito mais a dizer e para dizer do que os verdadeiros escritores.
Entretanto, estirada ao sol junto à piscina, em biquini deveras poupado no tecido e com um elaborado cocktail que bebericava por uma palhinha, Etelvina encontrava-se no melhor dos mundos, rodeada pelos cinco escritores e pelo presidente de Câmara que, cheio de ciúmes, tratava de enxotar os escritores para longe, ao mesmo tempo que preparava os óleos com que trataria de ungir a sua autora predilecta. «É bom que desapareçam, senão ainda os obrigo a ir para a Biblioteca aturar aquela gente», disse o presidente a Etelvina que achou a piada óptima, respondendo, «ó senhor presidente, não é preciso tanto, olhe que isso era uma maldade! Afinal de contas só estávamos a trocar ideias acerca dos nossos escritores-fantasmas, que são como as empregadas lá em casa e assim... Seu maroto, tem a certeza de que esses óleos são para bronzeados ou para massagens?»
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