XIV.
Um falso suicídio falhado. Um sonho interrompido com uma bolada na cabeça. Ô quirido, sem essa, vai! Xô! Talking of Dom, I must say I rather prefer our good old Don DeLillo. As más intenções. Ao ataque! Ao ataque!
Depois da conversa fruste havida com o director editorial da Escrever Direito Por Linhas Tortas, Dom Quixote acabou o final da tarde junto às águas do Tejo, tendo cavalgado até aos jardins da Torre de Belém, onde, nos relvados, à sombra de uma árvore, acabou por descansar, uma vez que o desânimo tinha novamente caído sobre si. Não foi fácil ali chegar, uma vez que o cavaleiro desconhecia o caminho a tomar. Chegou-se ao pé do Centro Cultural de Belém e, sem demoras, arriscou-se a atravessar ali mesmo a estrada, bem como a linha de comboio. Foi uma aventura e só por um triz a façanha não tivera final aziago, já que o comboio que vinha de Algés por pouco não o desfez em tiras. Quem viu, contou aos jornais e logo estes, no dia seguinte, trataram de refazer o filme dos factos garantindo em primeira página que o triste cavaleiro tentara o suicídio e falhara. «Dom Quixote investe pela morte», «Quixote, a desistência de um bravo», «Dom Quixote tenta o ponto final», «Dom Quixote, m capítulo para esquecer», eis alguns dos títulos que surgiram e que fizeram as delícias do povo, que assim seguia as andanças do cavaleiro como se de uma novela se tratasse. Quais seriam as cenas dos próximos capítulos?
Muita gente de cá para lá, crianças a jogar futebol, cães a correr que nem doidos, homens e mulheres pedalando bicicletas de montanha, muitos turistas de várias nacionalidades chegando em bandos e em autocarros, um ou outro cigano tentando vender relógios, óculos escuros, uma ou outra cigana negociando o futuro lido nas mãos a troco de cinco euros, uma azáfama! Recostado sobre as raízes de uma das frondosas árvores que ali existem, Dom Quixote, que não ficara minimamente atrapalhado com a situação do comboio, na verdade mal deu por ele tal a surdez que o afectava, depôs a lança a seu lado, aconselhou ao Rocinante que pastasse um pouco de relva, baixou a viseira do elmo e preparou-se para uma siesta.
Estava precisamente a entrar no primeiro sonho, antevendo um quadro idílico onde a sua bela Dulcineia lhe aparecia, sorrindo e sublime, de manto alvo descaindo sobre os ombros, pousada sobre nuvens brancas, quando uma bolada lhe acerta em cheio na cabeça. Atazanado, acorda em sobressalto e desata a língua num rol de imprecações para um miúdo que se aproximara para ir buscar a bola, vociferando cobras e lagartos, numa asneirada daquelas, bem à espanhola, que, uma vez mais, nem convém aqui citar. Foi-se então dali, pegando nas rédeas do seu alazão, e dirigindo-se ao café ali próximo. Chegado ao pequeno carreiro de pedra que leva à porta do estabelecimento, tratou de aí prender a sua montada. Dirigiu-se ao interior e pôs-se na fila para ser atendido. Serviu-se disto e daquilo, do mais e do que lhe aprouve, e uma vez na caixa registadora, pede-lhe a menina quantia avultada, de euros para cima de vinte! Dom Quixote nem queria acreditar; «setenta cêntimos um café?» – perguntou com ar de quem se sentia roubado. «Ó quirido», volveu-lhe uma empregada brasileira sem lhe dar grande importância, «não vem que não tem pra cima de mim, ‘cê só ‘tá pagando aquilo qui qué comê. Se ‘cê está se sentindo roubado, vá falá com o patrão, agora nem pense em mi xingá. Sem essa, vai! Xô!» Dom Quixote ficou-se com aquela resposta pronta e na ponta língua (afiada, sim!), pegou na sua bandeja e foi sentar-se na esplanada exterior.
«Hi, excuse me, is that really you? Dom Quixote himself?», chega-se-lhe à beira uma americana que estava sentada numa mesa ao lado da dele. «Como diz?», responde-lhe o cavaleiro denotando falta de paciência para tanta interpelação. «Well, well, what about this? Or well you are, or you can only be nuts, wearing that… that steel thing when’s so dam hot! Uau, Portugal is full of surprises, don’t you think so, darling?», virando-se para o marido, um poste de quase dois metros de altura, branco como o leite e certamente campeão de sardas lá no seu bairro, mais parecendo um hambúrguer do que uma pessoa. «Well, honey, he might very well be who you think he is, but, as far as it concerns to me, talking of Dom, I must say I rather prefer our good old Don DeLillo», respondeu-lhe o «pronto a comer» mais indignando o cavaleiro de triste figura que assim, e para que não tivesse de dar resposta à altura, se viu na circunstância de ter de se levantar e ir «colher amoras ao jardim».
Aos poucos a luz ia-se diluindo. A tarde despedia-se e com ela a grande maioria daqueles que por ali desfrutavam da bonomia do tempo e da beleza do lugar. Dom Quixote pegou nas rédeas do seu cavalo e dirigiu-se para os relvados a escolher uma boa árvore sob a qual se recolher e deitar, pensando já na noite que ali teria de passar. E a noite veio. Dom Quixote contorceu-se e remexeu-se mil e uma vezes até encontrar posição minimamente confortável que lhe permitisse dormir em paz e não acordar na manhã seguinte com um qualquer torcicolo ou dor nas costas. Fechou os olhos e para se tentar alhear dos problemas que lhe entretinham a mente sem dar tréguas, tentou assobiar uma zarzuela. Depois, o pensamento voltou a esgueirar-se-lhe e deu com ele a pensar nos muitos anos que tinha passado na editora, nos bons e nos maus momentos, mas sobretudo nos bons, que os maus, felizmente, tinham sido muito poucos.
Por fim adormeceu. Tão cansado estava das suas deambulações pela frenética Lisboa, que nem deu pelos mosquitos que trataram de lhe sugar o sangue a noite inteira. Não deu sequer pelos flashes das máquinas fotográficas de alguns paparazzi portugueses que tentavam arranjar material para vender às revistas e aos jornais. Para seu conforto de alma, teve a sorte de ser novamente visitado pelo sonho que a maldita bolada do miúdo que se dizia ser o Ronaldo tinha interrompido. Agora, sem futebol à sua volta, o sonho, sim, seguia bom curso e concretizava-se num beijo demorado e apaixonado que Dulcineia oferecia aos lábios do velho cavaleiro. Foi isso já a madrugada se levantava e sem perceber nem como nem porquê Dom Quixote abriu os olhos e à sua frente só via o focinho do Rocinante que o lambia de bom grado como se lhe quisesse lavar a cara e fazer desaparecer as ramelas.
Meio estremunhado, ainda mal se tendo direito nas pernas bamboleantes, Dom Quixote tentou abrir bem os olhos mas era tamanha a brancura da luz que o sol já por ali derramava que o cavaleiro viu-se algo contundido e atordoado, tendo apenas tido tempo para vislumbrar à sua frente, e a poucos metros de distância, um grupo de pessoas que, não teve dúvidas, àquela hora ali tão cedo não podiam de certeza ter boas intenções quanto à sua figura. Abriam os braços em estranhos movimentos de contenção, levantam uma perna para aqui, outra para acolá, baixavam o dorso, voltavam a abrir os braços como se numa luta de karaté, não, não podia ser boa coisa o que se preparavam para fazer. Queriam, de certeza, roubá-lo, despojá-lo dos seus últimos euros, quem sabe, atentar contra a sua vida ou roubar-lhe o Rocinante. Sim, era isso, queriam o seu alazão, e daí que não fizessem qualquer barulho naquelas suas movimentações suspeitas. «Ah, mas não, se pensam que apanham este velho guerreiro, bem enganados estão, ainda têm que fazer muito mais do que esses gestos patéticos para me apanharem», pensou Dom Quixote ao mesmo tempo que agarrou na sua lança, ergueu-se a custo para a garupa do Rocinante e logo investiu contra o grupo, gritando: «Ao ataque! Ao ataque!»
O estrépito e a gritaria com que Dom Quixote se atirou sobre aquelas pobres almas, que mais não faziam do que apaziguar os seus espíritos, irmanando os seus gestos aos dos animais, tentando a simbiose perfeita entre o seu respirar e o brando rumorejar da Natureza, causou uma pequena revolução junto à Torre de Belém. Até os ciganos que já por ali cirandavam deram à sola, pondo-se a milhas e a salvo daquele inaudito cavaleiro que só podia ser do Apocalipse! Valeu que a intervenção rápida da GNR a cavalo pôs cobro à situação e acalmou os ânimos. Os agentes, já a par da situação e apercebendo-se de quem tinham pela frente, decidiram dar ao cavaleiro o devido desconto (não se sabe se por via da loucura que lhe reconheciam, se por pena dele e compreensão face à situação difícil em que se encontrava) e simplesmente mandaram-no ir à sua vida. Quanto aos iogas, até ficaram contentes pois a fuga que empreenderam deu-lhes a perceber (pelo menos assim concluíram do facto) que tinham encarnado na perfeição a destreza e rapidez das lebres.
Retomando a sua marcha pela cidade, os nervos refeitos e mais calmo, Dom Quixote predispôs-se a bater a nova porta editorial. Não podia dizer-se que o dia tivesse começado da melhor maneira, mas ele estava confiante em que a sorte mudaria. Antes, porém, havia que tratar da carcaça, isto é, do diabo da armadura que continuava a ranger por todos os lados numa chinfrineira de dar cabo dos ouvidos a qualquer um. Dom Quixote foi-se então até Algés, onde julgou encontrar uma oficina onde arranjasse quem lhe oleasse as juntas. Chegando à porta de uma, entrou pela garagem e foi um ver se te avias com o Rocinante a derrapar para trás e para diante nos óleos que se encontravam derramados no chão. Em cima da garupa, Dom Quixote tentava equilibrar-se mais parecendo que concorria num qualquer rodeo americano, daqueles em que os cowboys saem disparados de umas portinholas em cavalos bravos acabando, regra geral, e mais ou menos tempo passado, estirados no meio do chão poeirento, com sorte sem nenhum osso partido ou fracturado e com a cabeça inteira. Pois ali, o chão não era poeirento, era oleoso, de cimento e foi nele mesmo que às tantas Dom Quixote terminou com a sua montada também de cócoras a seu lado. A tropa de mecânicos que por ali andava ficou boquiaberta e quase todos, surpreendidos pela cena, deitaram a esconder-se atrás dos carros que reparavam, só depois se levantando vendo, também eles, quem era o ilustre e mediático cliente. E disso se apercebendo, acorreram depois a ajudar o pobre «ancião» (como um disse em surdina para outro) a levantar-se, ele que fazia um leve esgar de dor e apalpava o traseiro dorido pelo embate no chão duro.
Levantando-se com alguma dificuldade, a mão esquerda nas costas, a direita apoiando-se na lança, lá se recompôs o cavaleiro, desdenhando toda e qualquer ajuda dos mecânicos, a tempo de cumprimentar o chefe da oficina que à sua frente já se encontrava a querer saber que raio se passava e em que podia ele ajudar «o ilustre», como a ele se dirigiu. Se vinha a pensar em trocar o Rocinante por um carro em segunda mão? Se queria novas ferraduras para o animal? Se queria antes ver uma viatura mais jeitosa e poupadinha no consumo, que também se arranjavam? Dom Quixote agradeceu e disse que não, estranhando uma vez mais toda a gente parecer pensar que ele queria desfazer-se do seu velho companheiro. Não, não, que desejava apenas olear a maldita armadura que não se cansava de lhe azucrinar os ouvidos, bem como, cada vez mais, lhe dificultava os movimentos e a marcha, o que, em caso de contenda ou, em circunstâncias extremas, necessidade de fuga, podia revelar-se pormenor muito perigoso e nada despiciendo.
O mecânico chefe concordou e fez mesmo questão em fornecer de graça o óleo e a mão de obra para tal. Que era um prazer, que insistia, que não aceitava uma recusa, que a sua patroa até tinha lá em casa uma edição das suas aventuras e que havia de gostar muito de saber que ele lá tinha ido à oficina, quem sabe se calhar até mandava fazer uma placa a recordar a data, pois não era todos os dias que lhe entravam por ali adentro vips... «Não queremos, de modo nenhum, que o ilustre cavaleiro saia daqui enferrujado!», gracejou por fim, dando uma valente palmada no ombro do cavaleiro que foi projectado um passo em frente.
E assim ele próprio se pôs de volta de Dom Quixote, como damas em volta de uma noiva em prova de vestido, a despejar cuidadosamente uma gota de óleo aqui, outra acolá, à medida que, para aferir do bom andamento dos trabalhos, ia pedindo ao cavaleiro que levantasse o braço direito, depois o esquerdo, a perna, a outra, o calcanhar, etc. Terminada a operação de lubrificação, o chefe da oficina ainda perguntou a Dom Quixote se não gostaria que lhe fizessem um polimento geral, quem sabe, também, não estaria interessado «o ilustre cliente» numas rédeas mais modernas e desportivas para a sua montada? Coisas bonitas, Dom Quixote não imaginava quantas novidades já não existiam no mercado em matéria de «tunning equestre»... Agradecendo a ajuda e disponibilidade, embora recusando-as as ofertas finais por declarada falta de tempo, Dom Quixote agradeceu e despediu-se, levando o Rocinante pelas rédeas até ao exterior para só então seguir caminho até ao endereço da Ideias Fantásticas. Era a próxima editora a visitar. Quem sabe, a sua futura casa editorial.
Um falso suicídio falhado. Um sonho interrompido com uma bolada na cabeça. Ô quirido, sem essa, vai! Xô! Talking of Dom, I must say I rather prefer our good old Don DeLillo. As más intenções. Ao ataque! Ao ataque!
Depois da conversa fruste havida com o director editorial da Escrever Direito Por Linhas Tortas, Dom Quixote acabou o final da tarde junto às águas do Tejo, tendo cavalgado até aos jardins da Torre de Belém, onde, nos relvados, à sombra de uma árvore, acabou por descansar, uma vez que o desânimo tinha novamente caído sobre si. Não foi fácil ali chegar, uma vez que o cavaleiro desconhecia o caminho a tomar. Chegou-se ao pé do Centro Cultural de Belém e, sem demoras, arriscou-se a atravessar ali mesmo a estrada, bem como a linha de comboio. Foi uma aventura e só por um triz a façanha não tivera final aziago, já que o comboio que vinha de Algés por pouco não o desfez em tiras. Quem viu, contou aos jornais e logo estes, no dia seguinte, trataram de refazer o filme dos factos garantindo em primeira página que o triste cavaleiro tentara o suicídio e falhara. «Dom Quixote investe pela morte», «Quixote, a desistência de um bravo», «Dom Quixote tenta o ponto final», «Dom Quixote, m capítulo para esquecer», eis alguns dos títulos que surgiram e que fizeram as delícias do povo, que assim seguia as andanças do cavaleiro como se de uma novela se tratasse. Quais seriam as cenas dos próximos capítulos?
Muita gente de cá para lá, crianças a jogar futebol, cães a correr que nem doidos, homens e mulheres pedalando bicicletas de montanha, muitos turistas de várias nacionalidades chegando em bandos e em autocarros, um ou outro cigano tentando vender relógios, óculos escuros, uma ou outra cigana negociando o futuro lido nas mãos a troco de cinco euros, uma azáfama! Recostado sobre as raízes de uma das frondosas árvores que ali existem, Dom Quixote, que não ficara minimamente atrapalhado com a situação do comboio, na verdade mal deu por ele tal a surdez que o afectava, depôs a lança a seu lado, aconselhou ao Rocinante que pastasse um pouco de relva, baixou a viseira do elmo e preparou-se para uma siesta.
Estava precisamente a entrar no primeiro sonho, antevendo um quadro idílico onde a sua bela Dulcineia lhe aparecia, sorrindo e sublime, de manto alvo descaindo sobre os ombros, pousada sobre nuvens brancas, quando uma bolada lhe acerta em cheio na cabeça. Atazanado, acorda em sobressalto e desata a língua num rol de imprecações para um miúdo que se aproximara para ir buscar a bola, vociferando cobras e lagartos, numa asneirada daquelas, bem à espanhola, que, uma vez mais, nem convém aqui citar. Foi-se então dali, pegando nas rédeas do seu alazão, e dirigindo-se ao café ali próximo. Chegado ao pequeno carreiro de pedra que leva à porta do estabelecimento, tratou de aí prender a sua montada. Dirigiu-se ao interior e pôs-se na fila para ser atendido. Serviu-se disto e daquilo, do mais e do que lhe aprouve, e uma vez na caixa registadora, pede-lhe a menina quantia avultada, de euros para cima de vinte! Dom Quixote nem queria acreditar; «setenta cêntimos um café?» – perguntou com ar de quem se sentia roubado. «Ó quirido», volveu-lhe uma empregada brasileira sem lhe dar grande importância, «não vem que não tem pra cima de mim, ‘cê só ‘tá pagando aquilo qui qué comê. Se ‘cê está se sentindo roubado, vá falá com o patrão, agora nem pense em mi xingá. Sem essa, vai! Xô!» Dom Quixote ficou-se com aquela resposta pronta e na ponta língua (afiada, sim!), pegou na sua bandeja e foi sentar-se na esplanada exterior.
«Hi, excuse me, is that really you? Dom Quixote himself?», chega-se-lhe à beira uma americana que estava sentada numa mesa ao lado da dele. «Como diz?», responde-lhe o cavaleiro denotando falta de paciência para tanta interpelação. «Well, well, what about this? Or well you are, or you can only be nuts, wearing that… that steel thing when’s so dam hot! Uau, Portugal is full of surprises, don’t you think so, darling?», virando-se para o marido, um poste de quase dois metros de altura, branco como o leite e certamente campeão de sardas lá no seu bairro, mais parecendo um hambúrguer do que uma pessoa. «Well, honey, he might very well be who you think he is, but, as far as it concerns to me, talking of Dom, I must say I rather prefer our good old Don DeLillo», respondeu-lhe o «pronto a comer» mais indignando o cavaleiro de triste figura que assim, e para que não tivesse de dar resposta à altura, se viu na circunstância de ter de se levantar e ir «colher amoras ao jardim».
Aos poucos a luz ia-se diluindo. A tarde despedia-se e com ela a grande maioria daqueles que por ali desfrutavam da bonomia do tempo e da beleza do lugar. Dom Quixote pegou nas rédeas do seu cavalo e dirigiu-se para os relvados a escolher uma boa árvore sob a qual se recolher e deitar, pensando já na noite que ali teria de passar. E a noite veio. Dom Quixote contorceu-se e remexeu-se mil e uma vezes até encontrar posição minimamente confortável que lhe permitisse dormir em paz e não acordar na manhã seguinte com um qualquer torcicolo ou dor nas costas. Fechou os olhos e para se tentar alhear dos problemas que lhe entretinham a mente sem dar tréguas, tentou assobiar uma zarzuela. Depois, o pensamento voltou a esgueirar-se-lhe e deu com ele a pensar nos muitos anos que tinha passado na editora, nos bons e nos maus momentos, mas sobretudo nos bons, que os maus, felizmente, tinham sido muito poucos.
Por fim adormeceu. Tão cansado estava das suas deambulações pela frenética Lisboa, que nem deu pelos mosquitos que trataram de lhe sugar o sangue a noite inteira. Não deu sequer pelos flashes das máquinas fotográficas de alguns paparazzi portugueses que tentavam arranjar material para vender às revistas e aos jornais. Para seu conforto de alma, teve a sorte de ser novamente visitado pelo sonho que a maldita bolada do miúdo que se dizia ser o Ronaldo tinha interrompido. Agora, sem futebol à sua volta, o sonho, sim, seguia bom curso e concretizava-se num beijo demorado e apaixonado que Dulcineia oferecia aos lábios do velho cavaleiro. Foi isso já a madrugada se levantava e sem perceber nem como nem porquê Dom Quixote abriu os olhos e à sua frente só via o focinho do Rocinante que o lambia de bom grado como se lhe quisesse lavar a cara e fazer desaparecer as ramelas.
Meio estremunhado, ainda mal se tendo direito nas pernas bamboleantes, Dom Quixote tentou abrir bem os olhos mas era tamanha a brancura da luz que o sol já por ali derramava que o cavaleiro viu-se algo contundido e atordoado, tendo apenas tido tempo para vislumbrar à sua frente, e a poucos metros de distância, um grupo de pessoas que, não teve dúvidas, àquela hora ali tão cedo não podiam de certeza ter boas intenções quanto à sua figura. Abriam os braços em estranhos movimentos de contenção, levantam uma perna para aqui, outra para acolá, baixavam o dorso, voltavam a abrir os braços como se numa luta de karaté, não, não podia ser boa coisa o que se preparavam para fazer. Queriam, de certeza, roubá-lo, despojá-lo dos seus últimos euros, quem sabe, atentar contra a sua vida ou roubar-lhe o Rocinante. Sim, era isso, queriam o seu alazão, e daí que não fizessem qualquer barulho naquelas suas movimentações suspeitas. «Ah, mas não, se pensam que apanham este velho guerreiro, bem enganados estão, ainda têm que fazer muito mais do que esses gestos patéticos para me apanharem», pensou Dom Quixote ao mesmo tempo que agarrou na sua lança, ergueu-se a custo para a garupa do Rocinante e logo investiu contra o grupo, gritando: «Ao ataque! Ao ataque!»
O estrépito e a gritaria com que Dom Quixote se atirou sobre aquelas pobres almas, que mais não faziam do que apaziguar os seus espíritos, irmanando os seus gestos aos dos animais, tentando a simbiose perfeita entre o seu respirar e o brando rumorejar da Natureza, causou uma pequena revolução junto à Torre de Belém. Até os ciganos que já por ali cirandavam deram à sola, pondo-se a milhas e a salvo daquele inaudito cavaleiro que só podia ser do Apocalipse! Valeu que a intervenção rápida da GNR a cavalo pôs cobro à situação e acalmou os ânimos. Os agentes, já a par da situação e apercebendo-se de quem tinham pela frente, decidiram dar ao cavaleiro o devido desconto (não se sabe se por via da loucura que lhe reconheciam, se por pena dele e compreensão face à situação difícil em que se encontrava) e simplesmente mandaram-no ir à sua vida. Quanto aos iogas, até ficaram contentes pois a fuga que empreenderam deu-lhes a perceber (pelo menos assim concluíram do facto) que tinham encarnado na perfeição a destreza e rapidez das lebres.
Retomando a sua marcha pela cidade, os nervos refeitos e mais calmo, Dom Quixote predispôs-se a bater a nova porta editorial. Não podia dizer-se que o dia tivesse começado da melhor maneira, mas ele estava confiante em que a sorte mudaria. Antes, porém, havia que tratar da carcaça, isto é, do diabo da armadura que continuava a ranger por todos os lados numa chinfrineira de dar cabo dos ouvidos a qualquer um. Dom Quixote foi-se então até Algés, onde julgou encontrar uma oficina onde arranjasse quem lhe oleasse as juntas. Chegando à porta de uma, entrou pela garagem e foi um ver se te avias com o Rocinante a derrapar para trás e para diante nos óleos que se encontravam derramados no chão. Em cima da garupa, Dom Quixote tentava equilibrar-se mais parecendo que concorria num qualquer rodeo americano, daqueles em que os cowboys saem disparados de umas portinholas em cavalos bravos acabando, regra geral, e mais ou menos tempo passado, estirados no meio do chão poeirento, com sorte sem nenhum osso partido ou fracturado e com a cabeça inteira. Pois ali, o chão não era poeirento, era oleoso, de cimento e foi nele mesmo que às tantas Dom Quixote terminou com a sua montada também de cócoras a seu lado. A tropa de mecânicos que por ali andava ficou boquiaberta e quase todos, surpreendidos pela cena, deitaram a esconder-se atrás dos carros que reparavam, só depois se levantando vendo, também eles, quem era o ilustre e mediático cliente. E disso se apercebendo, acorreram depois a ajudar o pobre «ancião» (como um disse em surdina para outro) a levantar-se, ele que fazia um leve esgar de dor e apalpava o traseiro dorido pelo embate no chão duro.
Levantando-se com alguma dificuldade, a mão esquerda nas costas, a direita apoiando-se na lança, lá se recompôs o cavaleiro, desdenhando toda e qualquer ajuda dos mecânicos, a tempo de cumprimentar o chefe da oficina que à sua frente já se encontrava a querer saber que raio se passava e em que podia ele ajudar «o ilustre», como a ele se dirigiu. Se vinha a pensar em trocar o Rocinante por um carro em segunda mão? Se queria novas ferraduras para o animal? Se queria antes ver uma viatura mais jeitosa e poupadinha no consumo, que também se arranjavam? Dom Quixote agradeceu e disse que não, estranhando uma vez mais toda a gente parecer pensar que ele queria desfazer-se do seu velho companheiro. Não, não, que desejava apenas olear a maldita armadura que não se cansava de lhe azucrinar os ouvidos, bem como, cada vez mais, lhe dificultava os movimentos e a marcha, o que, em caso de contenda ou, em circunstâncias extremas, necessidade de fuga, podia revelar-se pormenor muito perigoso e nada despiciendo.
O mecânico chefe concordou e fez mesmo questão em fornecer de graça o óleo e a mão de obra para tal. Que era um prazer, que insistia, que não aceitava uma recusa, que a sua patroa até tinha lá em casa uma edição das suas aventuras e que havia de gostar muito de saber que ele lá tinha ido à oficina, quem sabe se calhar até mandava fazer uma placa a recordar a data, pois não era todos os dias que lhe entravam por ali adentro vips... «Não queremos, de modo nenhum, que o ilustre cavaleiro saia daqui enferrujado!», gracejou por fim, dando uma valente palmada no ombro do cavaleiro que foi projectado um passo em frente.
E assim ele próprio se pôs de volta de Dom Quixote, como damas em volta de uma noiva em prova de vestido, a despejar cuidadosamente uma gota de óleo aqui, outra acolá, à medida que, para aferir do bom andamento dos trabalhos, ia pedindo ao cavaleiro que levantasse o braço direito, depois o esquerdo, a perna, a outra, o calcanhar, etc. Terminada a operação de lubrificação, o chefe da oficina ainda perguntou a Dom Quixote se não gostaria que lhe fizessem um polimento geral, quem sabe, também, não estaria interessado «o ilustre cliente» numas rédeas mais modernas e desportivas para a sua montada? Coisas bonitas, Dom Quixote não imaginava quantas novidades já não existiam no mercado em matéria de «tunning equestre»... Agradecendo a ajuda e disponibilidade, embora recusando-as as ofertas finais por declarada falta de tempo, Dom Quixote agradeceu e despediu-se, levando o Rocinante pelas rédeas até ao exterior para só então seguir caminho até ao endereço da Ideias Fantásticas. Era a próxima editora a visitar. Quem sabe, a sua futura casa editorial.
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