IX.
Paula lacrimosa. Uma tragédia que a todos fez estarrecer. Uma homepage sem sombra de cavaleiro. Uma reunião de urgência. E que tal substituir a lança por uma pistola a laser? A Dom Chicote e uns rabiscos ousados. Comprado, disse o director.
Dom Quixote, mil perdões mas agora eu, e definitivamente, tomarei em mãos as rédeas da narrativa, até porque o senhor conduz um cavalo e não se deve tirar as mãos dessas rédeas. No seu gabinete, com a Dona Paula muito chorosa e nervosa à sua frente sentada, o director editorial tentou perceber o que a deixara naqueles preparos, que mais parecia que lhe tinha morrido o homem ou tivesse perdido o emprego. Lacrimosa, Paula chegou-se a ele e olhando-o nos olhos fixamente disse apenas: «O Dom Quixote, o Dom Quixote». «Mas o Dom Quixote o quê, rapariga? O que é que tem o Dom Quixote?», respondeu-lhe ele ainda sem perceber. «Foi-se embora, partiu, o Dom Quixote foi-se embora, director editorial! E eu nada pude fazer para o deter. Não imagina, foi-se daqui que parecia um louco, bem um louco ainda mais louco porque louco, como todos o sabemos, já ele era...» E diz-lhe ele, com ares de quem já não estava a gostar muito da conversa: «Ó P’ala, veja se se acalma que você não está a dizer coisa com coisa. Mas que raio de coisas anda você a ler? Essa imaginação anda um bocado destravada, não?...»
O director editorial só caiu em si quando a Paula se virou para a estante atrás de si e lhe disse para olhar, que olhasse bem lá para cima, para a penúltima prateleira, ali, para o sítio do Dom Quixote, sim, o original, o verdadeiro Dom Quixote, aquele sem o qual nenhum outro livro poderia naquela casa editar-se pois que agora se fora embora e com a sua partida se hipotecavam quaisquer hipóteses de editar outros livros, sequer mesmo fazer reedições de que título fosse! Era o fim, «o fim, director editorial, não sei se está a ver bem a tragédia que nos aconteceu!», dizia a Paula, agora de novo se descontrolando e caindo num berreiro convulso. No gabinete, todos os que ali estavam estremeceram, de resto como o director editorial que ao olhar o pequeno pedestal onde estava o Dom Quixote original se viu, enfim, esfumar-se-lhe do rosto o sorriso que trazia nos lábios desde manhã cedo.
Rapidamente, como se impulsionado por uma mola, pôs as mãos no teclado e olhou para o écran. Acedeu à internet e clicando na barra dos Favoritos linkou para a página da editora. Passados quatro ou cinco segundos de um silêncio expectante, aparecia à sua frente a homepage com as imagens das capas dos livros em destaque e, em cima, do lado esquerdo, lá estava, uma barra negra sem letras e sem nada por cima. Onde antes se lia D. Quixote e em cima se via a sombra do cavaleiro sobre a sua montada, agora nada! Por momentos desanimado, o director editorial caiu sobre o seu cadeirão de braços e pediu a todos que se retirassem. Queria estar um pouco sozinho, precisava de se acalmar, de pensar nas consequências daquele acto, da fuga de Dom Quixote. Antes da Dona Paula sair, o director editorial ainda lhe perguntou se ela lhe ouvira alguma coisa, se ele dera alguma explicação, se justificara de algum modo a sua partida. Que não, respondeu ela, que apenas o ouviu gritar em tom furibundo o nome de Etelvina, Etelvina...
Não demorou muito até que o director editorial percebesse ou adivinhasse o que se tinha passado na cabeça de Dom Quixote. A verdade é que antes de decidir inverter o rumo editorial da empresa, o director editorial, embora muito ao de leve, antevira essa hipótese, embora não tenha acreditado verdadeiramente que o velho cavaleiro tivesse coragem para se ir embora. Agora, confrontado com a realidade, com a deserção do seu logotipo, o director editorial não tinha muito por onde escolher. Uma coisa era certa, tinha que seguir em frente, tinha de encarar o problema de frente e tomar decisões, pois sabe-se que é nessas alturas que se revelam os líderes. Sem perder mais tempo, mandou chamar os seus editores e reuniu com eles, pretendendo saber que opiniões tinham sobre o caso e o que achavam que se devia fazer.
Sentados à volta da mesa da sala de reuniões, o director editorial e cinco editores debateram o caso e disseram de sua justiça sobre o mesmo. A editora dos livros infantis confessou-se estar inconsolável, pois o Dom Quixote era uma personagem muito querida das crianças e ia ser muito difícil substitui-lo. O editor de romances não se mostrou preocupado por aí além, até porque de acordo com o novo desenho editorial da casa os próximos romances a pôr no prelo em pouco tinham que ver com o passado ao qual a figura do Dom Quixote estava intimamente ligada. A editora de poesia, essa lastimou, lastimou bastante a partida do cavaleiro, dizendo que sem a sua efígie a colecção «Moinhos de Vento» estaria condenada. O editor de ensaios, por seu turno, considerou interessante a aposta que o destino lhes punha na mão com o desaparecimento de Quixote e achou mesmo que tal facto poderia suscitar uma série de ensaios muito estimulantes acerca da ingratidão e da moral. Já o editor de banda desenhada exultava com o caso, congeminando já, numa série de folhas brancas à sua frente, uma historieta qualquer que havia de ser um sucesso, vendo-se, num dos desenhos, o Dom Quixote e o Rocinante a saltarem do alto da prateleira do gabinete do director editorial com a Dona Paula aflita de braços no ar.
«O problema, meus caros, o problema é a marca, a marca! O original! Vocês não vêem que a coitada da Dona Paula tem razão, como ela sabe que sem o original não podemos imprimir mais nada?!», perguntou, mais para o ar do que para os que ali estavam, o director editorial com voz grave, pedindo depois, e agora sim aos presentes, «soluções, soluções!» Houve quem sugerisse uma batida repartida pela cidade em busca do cavaleiro, houve que dissesse que o melhor era telefonar para Espanha, que provavelmente apanhariam o homem em casa da Dona Dulcineia, e houve ainda um outro que, mais frio e racional, disse que não adiantava chorar sobre leite derramado e que o melhor era olhar em frente. Quem sabe, escolher um outro cavaleiro, registá-lo e seguir em frente, tanto mais que a partir do marco que era o lançamento do livro de Etelvina muitas batalhas se perfilavam no horizonte. Porque não? Porque não escolher um daqueles guerreiros do cinema ou dos desenhos animados? Podia ser a figura recortada a negro do Mel Gibson, não sabia se estavam a ver, no filme em que fazia de um guerreiro invencível, ou então, quiçá, o Rambo!? Não era uma excelente ideia? Trocar um herói já antigo e cheio de mofo por um herói super-moderno e actual? Substituir a lança por uma pistola a laser? Trocar aquele fato mais do que demodé por um de linhas modernas, num tecido resistente ao suor e bem mais justinho ao corpo?...
A verdade é que nada daquilo convencia o director editorial. Ele esfregava a cabeça, dava voltas e mais voltas ao pensamento, mas só conseguia pensar no livro de Etelvina e nas futuras reedições que sem o Dom Quixote não poderiam fazer-se. Mas como, como resolver o assunto? E o que dizer a Etelvina quando se esgotasse a primeira edição? Que não tinham chancela, que o logotipo lhes fugira com vergonha de se ver impresso junto ao seu nome? E iam dar-se ao luxo de perder mais uns bons milhares de euros, logo agora, logo agora que tinham acertado na mouche depois de tantos e tantos fastidiosos romances de autores melancólico-depressivos que a única coisa que sabiam fazer era entretecer-se em narrativas sincopadas de toada negra e pseudo-poética? Ah, não, não, ele como director editorial, ele que tanto pugnara para chegar até ali, até àquele dia que prenunciava sucesso para a empresa como esta nunca antes, em quase vinte anos de existência, experimentara, ele não iria agora deixar cair tudo por terra só por causa de um cavaleiro de triste figura que se pusera em triste fuga.
Pois se ele não queria enfrentar a realidade editorial, se não desejava emprestar a sua imagem aos novos títulos e autores da casa, então que partisse, mais valia que o fizesse, que eles passariam muito bem. Tratariam, tão cedo como o dia seguinte, de arranjar uma nova chancela, um novo logotipo, não um cavaleiro, não o Mel Gibson ou o Rambo, mas antes uma coisa muito mais arrojada, sim, para dar nas vistas, sem medos ou preconceitos, uma imagem que casasse com os novos livros da editora. E ele, como director editorial, profissional de quem se esperam respostas quando os outros as não encontram, ele tinha já encontrado a solução. Pois se o Dom Quixote lhes voltara as costas, muito mal fizera pois o futuro da editora era dourado. E a todos logo ali, antes de encerrar a reunião, tratou de informar do que também ali, naquele instante, decidira. A Dom Quixote transformar-se-ia em Dom Chicote. Após um curtíssimo silêncio, os editores levantaram-se e aplaudiram, congratulando o director editorial por tão notável ideia, não ao alcance de qualquer mente, antes e tão-só de iluminados como ele que por alguma razão teria chegado a director editorial.
Tinha de ser tudo uma questão de horas, avisou o director editorial antes de deixar sair os editores com algumas indicações de trabalho. Depois, mandou chamar o departamento gráfico e pediu aos criativos que trabalhassem no novo logo que tão logo quanto possível teria de ser registado. Só assim se poderia dar continuidade ao trabalho, só assim se poderiam editar mais livros, só assim o livro de Etelvina veria sucessivas edições nas livrarias, nos hipermercados, nas bombas de gasolina e onde mais calhasse quererem vendê-lo. «Rápido, rápido», pediu o director editorial aos gráficos, dando-lhes umas horas para ver os primeiros «rabiscos» da coisa. «Rabiscos» foi a palavra que o director editorial efectivamente empregou ao enxotar os criativos do seu gabinete e, nem mais adequado ao termo, foi aquilo mesmo que lhe saiu nos ditos «rabiscos» que encomendara com a recomendação de que fossem «ousados». E ousados, como se sabe, é aquilo que os gráficos ou designers, como se lhes queira chamar, mais gostam de ser. Dêem-lhes rédea solta e a sua imaginação não pára. Tanto assim é que naquele caso não parou, bem pelo contrário, o que, passadas umas horas, trouxeram ao director editorial era algo muito à frente, algo verdadeiramente ousado e que deixou o director editorial de boca aberta, mas com olho arregalado, antevendo o grande impacto que tal ousadia iria causar. Pois que lhe tinham então trazido os gráficos? Um homem, um homem de costas, nu, rabinho bem nutrido e de linhas perfeitas, vendo-se preso por entre as duas «badanas» ou nádegas nada mais nada menos do que um chicote! Em baixo: Dom Chicote. Estava «comprado», disse o director editorial, nascia uma nova editora.
Paula lacrimosa. Uma tragédia que a todos fez estarrecer. Uma homepage sem sombra de cavaleiro. Uma reunião de urgência. E que tal substituir a lança por uma pistola a laser? A Dom Chicote e uns rabiscos ousados. Comprado, disse o director.
Dom Quixote, mil perdões mas agora eu, e definitivamente, tomarei em mãos as rédeas da narrativa, até porque o senhor conduz um cavalo e não se deve tirar as mãos dessas rédeas. No seu gabinete, com a Dona Paula muito chorosa e nervosa à sua frente sentada, o director editorial tentou perceber o que a deixara naqueles preparos, que mais parecia que lhe tinha morrido o homem ou tivesse perdido o emprego. Lacrimosa, Paula chegou-se a ele e olhando-o nos olhos fixamente disse apenas: «O Dom Quixote, o Dom Quixote». «Mas o Dom Quixote o quê, rapariga? O que é que tem o Dom Quixote?», respondeu-lhe ele ainda sem perceber. «Foi-se embora, partiu, o Dom Quixote foi-se embora, director editorial! E eu nada pude fazer para o deter. Não imagina, foi-se daqui que parecia um louco, bem um louco ainda mais louco porque louco, como todos o sabemos, já ele era...» E diz-lhe ele, com ares de quem já não estava a gostar muito da conversa: «Ó P’ala, veja se se acalma que você não está a dizer coisa com coisa. Mas que raio de coisas anda você a ler? Essa imaginação anda um bocado destravada, não?...»
O director editorial só caiu em si quando a Paula se virou para a estante atrás de si e lhe disse para olhar, que olhasse bem lá para cima, para a penúltima prateleira, ali, para o sítio do Dom Quixote, sim, o original, o verdadeiro Dom Quixote, aquele sem o qual nenhum outro livro poderia naquela casa editar-se pois que agora se fora embora e com a sua partida se hipotecavam quaisquer hipóteses de editar outros livros, sequer mesmo fazer reedições de que título fosse! Era o fim, «o fim, director editorial, não sei se está a ver bem a tragédia que nos aconteceu!», dizia a Paula, agora de novo se descontrolando e caindo num berreiro convulso. No gabinete, todos os que ali estavam estremeceram, de resto como o director editorial que ao olhar o pequeno pedestal onde estava o Dom Quixote original se viu, enfim, esfumar-se-lhe do rosto o sorriso que trazia nos lábios desde manhã cedo.
Rapidamente, como se impulsionado por uma mola, pôs as mãos no teclado e olhou para o écran. Acedeu à internet e clicando na barra dos Favoritos linkou para a página da editora. Passados quatro ou cinco segundos de um silêncio expectante, aparecia à sua frente a homepage com as imagens das capas dos livros em destaque e, em cima, do lado esquerdo, lá estava, uma barra negra sem letras e sem nada por cima. Onde antes se lia D. Quixote e em cima se via a sombra do cavaleiro sobre a sua montada, agora nada! Por momentos desanimado, o director editorial caiu sobre o seu cadeirão de braços e pediu a todos que se retirassem. Queria estar um pouco sozinho, precisava de se acalmar, de pensar nas consequências daquele acto, da fuga de Dom Quixote. Antes da Dona Paula sair, o director editorial ainda lhe perguntou se ela lhe ouvira alguma coisa, se ele dera alguma explicação, se justificara de algum modo a sua partida. Que não, respondeu ela, que apenas o ouviu gritar em tom furibundo o nome de Etelvina, Etelvina...
Não demorou muito até que o director editorial percebesse ou adivinhasse o que se tinha passado na cabeça de Dom Quixote. A verdade é que antes de decidir inverter o rumo editorial da empresa, o director editorial, embora muito ao de leve, antevira essa hipótese, embora não tenha acreditado verdadeiramente que o velho cavaleiro tivesse coragem para se ir embora. Agora, confrontado com a realidade, com a deserção do seu logotipo, o director editorial não tinha muito por onde escolher. Uma coisa era certa, tinha que seguir em frente, tinha de encarar o problema de frente e tomar decisões, pois sabe-se que é nessas alturas que se revelam os líderes. Sem perder mais tempo, mandou chamar os seus editores e reuniu com eles, pretendendo saber que opiniões tinham sobre o caso e o que achavam que se devia fazer.
Sentados à volta da mesa da sala de reuniões, o director editorial e cinco editores debateram o caso e disseram de sua justiça sobre o mesmo. A editora dos livros infantis confessou-se estar inconsolável, pois o Dom Quixote era uma personagem muito querida das crianças e ia ser muito difícil substitui-lo. O editor de romances não se mostrou preocupado por aí além, até porque de acordo com o novo desenho editorial da casa os próximos romances a pôr no prelo em pouco tinham que ver com o passado ao qual a figura do Dom Quixote estava intimamente ligada. A editora de poesia, essa lastimou, lastimou bastante a partida do cavaleiro, dizendo que sem a sua efígie a colecção «Moinhos de Vento» estaria condenada. O editor de ensaios, por seu turno, considerou interessante a aposta que o destino lhes punha na mão com o desaparecimento de Quixote e achou mesmo que tal facto poderia suscitar uma série de ensaios muito estimulantes acerca da ingratidão e da moral. Já o editor de banda desenhada exultava com o caso, congeminando já, numa série de folhas brancas à sua frente, uma historieta qualquer que havia de ser um sucesso, vendo-se, num dos desenhos, o Dom Quixote e o Rocinante a saltarem do alto da prateleira do gabinete do director editorial com a Dona Paula aflita de braços no ar.
«O problema, meus caros, o problema é a marca, a marca! O original! Vocês não vêem que a coitada da Dona Paula tem razão, como ela sabe que sem o original não podemos imprimir mais nada?!», perguntou, mais para o ar do que para os que ali estavam, o director editorial com voz grave, pedindo depois, e agora sim aos presentes, «soluções, soluções!» Houve quem sugerisse uma batida repartida pela cidade em busca do cavaleiro, houve que dissesse que o melhor era telefonar para Espanha, que provavelmente apanhariam o homem em casa da Dona Dulcineia, e houve ainda um outro que, mais frio e racional, disse que não adiantava chorar sobre leite derramado e que o melhor era olhar em frente. Quem sabe, escolher um outro cavaleiro, registá-lo e seguir em frente, tanto mais que a partir do marco que era o lançamento do livro de Etelvina muitas batalhas se perfilavam no horizonte. Porque não? Porque não escolher um daqueles guerreiros do cinema ou dos desenhos animados? Podia ser a figura recortada a negro do Mel Gibson, não sabia se estavam a ver, no filme em que fazia de um guerreiro invencível, ou então, quiçá, o Rambo!? Não era uma excelente ideia? Trocar um herói já antigo e cheio de mofo por um herói super-moderno e actual? Substituir a lança por uma pistola a laser? Trocar aquele fato mais do que demodé por um de linhas modernas, num tecido resistente ao suor e bem mais justinho ao corpo?...
A verdade é que nada daquilo convencia o director editorial. Ele esfregava a cabeça, dava voltas e mais voltas ao pensamento, mas só conseguia pensar no livro de Etelvina e nas futuras reedições que sem o Dom Quixote não poderiam fazer-se. Mas como, como resolver o assunto? E o que dizer a Etelvina quando se esgotasse a primeira edição? Que não tinham chancela, que o logotipo lhes fugira com vergonha de se ver impresso junto ao seu nome? E iam dar-se ao luxo de perder mais uns bons milhares de euros, logo agora, logo agora que tinham acertado na mouche depois de tantos e tantos fastidiosos romances de autores melancólico-depressivos que a única coisa que sabiam fazer era entretecer-se em narrativas sincopadas de toada negra e pseudo-poética? Ah, não, não, ele como director editorial, ele que tanto pugnara para chegar até ali, até àquele dia que prenunciava sucesso para a empresa como esta nunca antes, em quase vinte anos de existência, experimentara, ele não iria agora deixar cair tudo por terra só por causa de um cavaleiro de triste figura que se pusera em triste fuga.
Pois se ele não queria enfrentar a realidade editorial, se não desejava emprestar a sua imagem aos novos títulos e autores da casa, então que partisse, mais valia que o fizesse, que eles passariam muito bem. Tratariam, tão cedo como o dia seguinte, de arranjar uma nova chancela, um novo logotipo, não um cavaleiro, não o Mel Gibson ou o Rambo, mas antes uma coisa muito mais arrojada, sim, para dar nas vistas, sem medos ou preconceitos, uma imagem que casasse com os novos livros da editora. E ele, como director editorial, profissional de quem se esperam respostas quando os outros as não encontram, ele tinha já encontrado a solução. Pois se o Dom Quixote lhes voltara as costas, muito mal fizera pois o futuro da editora era dourado. E a todos logo ali, antes de encerrar a reunião, tratou de informar do que também ali, naquele instante, decidira. A Dom Quixote transformar-se-ia em Dom Chicote. Após um curtíssimo silêncio, os editores levantaram-se e aplaudiram, congratulando o director editorial por tão notável ideia, não ao alcance de qualquer mente, antes e tão-só de iluminados como ele que por alguma razão teria chegado a director editorial.
Tinha de ser tudo uma questão de horas, avisou o director editorial antes de deixar sair os editores com algumas indicações de trabalho. Depois, mandou chamar o departamento gráfico e pediu aos criativos que trabalhassem no novo logo que tão logo quanto possível teria de ser registado. Só assim se poderia dar continuidade ao trabalho, só assim se poderiam editar mais livros, só assim o livro de Etelvina veria sucessivas edições nas livrarias, nos hipermercados, nas bombas de gasolina e onde mais calhasse quererem vendê-lo. «Rápido, rápido», pediu o director editorial aos gráficos, dando-lhes umas horas para ver os primeiros «rabiscos» da coisa. «Rabiscos» foi a palavra que o director editorial efectivamente empregou ao enxotar os criativos do seu gabinete e, nem mais adequado ao termo, foi aquilo mesmo que lhe saiu nos ditos «rabiscos» que encomendara com a recomendação de que fossem «ousados». E ousados, como se sabe, é aquilo que os gráficos ou designers, como se lhes queira chamar, mais gostam de ser. Dêem-lhes rédea solta e a sua imaginação não pára. Tanto assim é que naquele caso não parou, bem pelo contrário, o que, passadas umas horas, trouxeram ao director editorial era algo muito à frente, algo verdadeiramente ousado e que deixou o director editorial de boca aberta, mas com olho arregalado, antevendo o grande impacto que tal ousadia iria causar. Pois que lhe tinham então trazido os gráficos? Um homem, um homem de costas, nu, rabinho bem nutrido e de linhas perfeitas, vendo-se preso por entre as duas «badanas» ou nádegas nada mais nada menos do que um chicote! Em baixo: Dom Chicote. Estava «comprado», disse o director editorial, nascia uma nova editora.
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