XII.
Si, si, ai que tenelos en el sitio! Dom Quixote em Belém e Rocinante a jeito de montar uma égua jeitosa da banda a cavalo da GNR. A Escrever Direito por Linhas Tortas. Com a faca e o queijo da edição na mão.
Ninguém muda de vida, de hábitos, de rotinas como quem muda de camisola. Os anos criam habituação, um conforto que se instala na alma e nos dias. Se bem que se estivesse no tempo em que mudar de emprego é considerado algo muito positivo, significando ambição e sede de subir sempre mais alto (contra todos os princípios de Peter, se preciso for, e até mesmo contra toda a falta de razoabilidade), ao contrário do que antes acontecia, a verdade é que Dom Quixote era homem que raciocinava e pensava em moldes antigos. Achava ele que a fidelidade a um projecto era uma virtude, que a criação de laços profundos do trabalhador com a empresa só poderia resultar em benefícios para ambos. Para a empresa que, desde que mantivesse o empregado motivado, fosse por via de um salário justo, fosse por via da angariação de novos negócios e novos projectos, veria os seus objectivos alcançados, sabendo de antemão com o que poderia contar, e para o trabalhador que não teria, a todo o momento, a pairar-lhe por cima da cabeça a ameaça do cutelo do desemprego e que, naturalmente, tendo salário e gostando do seu trabalho, suaria a camisola, como se diz, para atingir as metas propostas. Dom Quixote era, por conseguinte, um homem antiquado.
Por tudo isso, deambulava ele contristado pelas ruas de Lisboa, seguindo rumo a uma editora, cuja morada tinha tirado de um livro que folheara numa livraria onde havia estado. Por pouco tempo ali estivera, a ver um e outro livro, mas num completo sufoco com as pessoas sempre de olho nele, algumas mesmo vindo falar-lhe, mostrando-lhe a sua simpatia, oferecendo-lhe a sua solidariedade, confiando-lhe que a sua atitude fora muito digna e que nos dias de hoje eram já muito poucos os que tinham coragem para a tomar. «É preciso impor a moralidade neste pântano em que hoje vivemos à míngua de valores, a reboque dos interesses comerciais que tudo corroem e minam!», disse-lhe, apontando o dedo indicador da mão para o ar, um velhote de sobretudo cinzento caindo sobre a marreca. «Si, si, ai que tenelos en el sítio!», confirmou uma velhinha, tentando abraçá-lo e beijá-lo.
O Rocinante arfava, esquivando-se também ele aos muitos curiosos que agora queriam tirar fotografias a seu lado. Já com o amo na garupa, deitou a galope a caminho de Belém, onde se encontrava a sede da editora que Dom Quixote iria visitar. Seguindo junto ao rio, cavalo e cavaleiro por diversas vezes se viram na contingência de serem atropelados, de modo que, achando que o melhor modo de acautelar o dano era fugir à ameaça, se puseram numa correria frenética, passando eles a ultrapassar os automóveis num rally serpenteante. Às tantas, de tão disparados que iam, não deram por ela e ultrapassaram o limite de velocidade que os recentes radares ali colocados anunciavam. Consequentemente, mais adiante, a pouco mais de mil metros, foi com estupefacção que uma brigada da GNR mandou parar a montada. Uma vez mais às voltas com a lei, Dom Quixote não se escapou a uma prelecção moralista sobre a convivência na estrada e a uma «multinha» que um simpático agente lhe rubricou, mais lhe adiantando que não lhe proibia o prosseguimento da viagem porque era a sua primeira contravenção ao código e porque, sendo ele a figura pública que era, acreditaria na sua palavra de honra em como, daí por diante, teria cuidados na condução. Dava-lha? A palavra? «Sim, sim», pronunciou Dom Quixote querendo ver-se livre de mais este compasso de espera.
Por fim, Dom Quixote chegou a Belém, de novo agastado e muito farto da cidade. Deixou a 24 de Julho, virou à direita e entrou pelos jardins fronteiros ao Palácio Presidencial. A editora ficava ali por perto, só teria de perguntar a alguém. Estranhamente os jardins estavam cheios de gente que, numa espécie de cordão humano, se aglutinava olhando para a casa do senhor Presidente da República. Aproximando-se, Dom Quixote apercebeu-se de que se tratava de um render da Guarda. E logo, logo sonaram os acordes da banda a cavalo que se aproximava toda engalanada a preceito. Vá lá saber-se porque, se por via do sol excessivo nas crinas, se por via de uma bela égua que viu passar-lhe diante dos olhos, o Rocinante põe-se em pulgas e dispara na direcção da coluna equestre com Dom Quixote aos solavancos e incapaz de lhe pôr freio. A agitação foi grande, a banda desconcentrou-se e o aplauso foi geral quando o Rocinante se põe a jeito de montar a dita égua supracitada.
Mais tarde, aliviado das vontades e fortemente reprimido por Dom Quixote, lá acabou o cavaleiro da triste figura (sendo que triste figura fora a que Rocinante fizera) por chegar à morada pretendida. Ficava numa das ruelas que subia rumo a Monsanto, num primeiro piso modesto que, de resto, se coadunava com o percurso ainda em crescendo de afirmação no mercado editorial. A editora chamava-se Escrever Direito por Linhas Tortas e Dom Quixote tocou à campainha, deixando Rocinante lá em baixo, preso a uma árvore.
Tocou, tocou, voltou a tocar até que mais uma menina de carinha laroca lhe abriu a porta. Dom Quixote começava a ver que o mundo editorial estava cheio de meninas de cara bonita, o que talvez pronunciasse o divórcio da literatura com aquelas figuras cinzentonas com ar pesado, cheiro bafiento e óculos com lentes fundo de garrafa. «Dom Quixote, menina, venho falar com o director», anunciou-se o cavaleiro levantando a viseira do elmo. A menina, mal abriu a porta e se deparou com o figurão, assustou-se e deixou escapar um gritinho nervoso. Depois estranhou e fez cara de desconhecimento com o nome de quem ali se apresentava. «Dom quê? Da parte de quem? Qual é a empresa? É cobranças ou vem entregar encomenda?» O Dom Quixote logo se encheu de calores e volveu-lhe: «Quixote, menina, Quixote, de La Mancha, Cervantes, Cervantes, nunca ouviu falar? Nunca leu? Que mancha no seu currículo, que nódoa! Apresente-me apenas como Dom Quixote, Dom Qui-xo-te! Quer que escreva?» A menina ficou que nem varas verdes, fez o que o cavaleiro lhe ordenava e mais tarde, ao almoço, queixar-se-ia a uma colega da brutalidade do homem, que não sabia por que raio havia ela de ter lido não sabia que mancha de um tal Servente ou trolha, ela sabia lá, só sabia é que não estava para aguentar gente como aquela e que havia de se queixar ao director, que o que lhe pagavam não pagava tamanhas injúrias, e que se não houvesse medidas que se punha dali a andar era certinho, certinho.
À informação de que tinha na recepção Dom Quixote, o director editorial da Escrever Direito por Linhas Tortas levantou-se e predispôs-se a vir buscá-lo em pessoa. Que fizesse o favor, que entrasse, entrasse, estivesse como em sua casa, que muito gosto tinham em receber tão ilustre figura e que sim, já estavam ao corrente do sucedido, que vinha tudo nos jornais e não havia como passar ao lado do caso. O director só não percebera muito bem era o porquê da atitude de Dom Quixote e talvez ele pudesse explicar-lho, faria o obséquio. Dom Quixote acomodou-se na cadeira em frente à secretária do director, o qual, antes de mais conversa e de ouvir as explicações e os porquês da visita de Dom Quixote pelo próprio, pediu pelo telefone dois cafezitos à menina da recepção.
Dom Quixote não estava de todo acostumado àquelas situações. Jamais pensou sequer que um dia teria de enfrentar semelhante situação, sempre desconfortável, sempre desequilibrada: de um lado, um editor ou director editorial todo-poderoso, com a faca e o queijo da edição na mão; e do outro, alguém numa posição algo inferiorizada de ter de sugerir ao outro, nas entrelinhas do discurso, os seus préstimos, pôr-lhe à disposição o seu engenho e saber. Em suma, pedir emprego. Porque era disso mesmo que se tratava. Dom Quixote estava desempregado e necessitava urgentemente de encontrar quem lhe desse trabalho para sustento, que um homem, por mais que seja meramente ilustrativo ou personagem literária, tem sempre os seus gastos, sejam para gozo da alma, dos sentidos ou do corpo, que não fosse o corpo do seu Rocinante, que tinha de se alimentar e o feno ao preço dos dias de hoje não se mostrava abaixo do custo do litro do gasóleo. Ora, como não desejava inscrever-se em Centro de Emprego, o que provavelmente nem conseguiria, pois não lhe constava que alguma vez em seu nome tivessem efectuado quaisquer descontos para o fisco, e como se achava ainda em pleno vigor das suas capacidades intelectuais, Quixote ali estava, pelejando o seu futuro, «sem vergonhas de assumir o seu momentâneo estado de necessidade».
O director editorial, um rapaz jovem, vestindo fato e gravata, ouviu com atenção o cavaleiro de La Mancha. Quando aquele terminou o seu discurso, e tendo ficado bem claro aquilo que pretendia, foi algo a custo que o director abordou a difícil questão. Disse que compreendia muito bem aquilo que se estava a passar, que não era indiferente aos seus argumentos de superioridade moral literária, e que, no fundo, achava normal que uma pessoa com a sua craveira e a sua experiência não visse com bons olhos a mudança das prioridades na editora que deixara órfã. Depois, começou a desculpar-se, dizendo que o mercado não estava nada famoso, que os portugueses não liam, que o livro era tratado como batatas e que, para sobreviver neste meio canibalesco, onde apenas os mais fortes e astutos conseguem vingar, também a Escrever Direito Por Linhas Tortas» tinha que fazer as suas cedências em matéria de crivo literário e, por conseguinte, fazer as suas opções, de resto, de acordo com as expectativas traçadas pela Administração. Dizia ele: «Senhor Quixote, creia que eu teria o maior gosto em poder ajudá-lo, eu por mim, sei lá, era capaz de criar uma colecção própria com o seu nome, para novos autores ou até clássicos, o que fosse... mas, mas a verdade é que não estou em condições para o fazer. Temos neste momento medidas restritivas de contenção de gastos e eu não tenho carta branca senão para editar livros que vendam e vendam bem. Dir-me-á, então e a literatura, a verdadeira literatura?... E eu dir-lhe-ei que terá toda a razão, mas razão nenhuma excede a razão dos números. Infelizmente, assim é. Mais um cafezinho?...»
Dom Quixote nem queria acreditar no que ouvia. A «razão dos números? Mas é lá isso razoável tratando-se de livros, do desígnio maior da literatura, da beleza maior das palavras?» Apercebendo-se de que aquele não era chão que desse uvas, levantando a armadura, no que o jovem director o ajudou achando que as pernas do cavaleiro já não teriam forças para tanto por si mesmas, Dom Quixote rejeitou a ajuda com um leve safanão e dispôs-se a peneirar sorte noutras águas que aquelas, estava mais que visto, não lhe correriam de feição. Baixando a viseira com estrépito e pegando na sua lança, abriu a porta e fez-se ao caminho, não sem antes se virar para trás e dizer ao director que ajeitava a sua gravata e acertava os botões de punho: «Os números! Os números! E que tal mudar o nome da editora para Escrever Dinheiro Por Linhas Tortas?» E saiu, tonitruante, todo ele a chiar, pois a armadura dava mostras de precisar de ser oleada nas juntas, coisa que ele já tinha notado e que o vinha atormentando sobremaneira. À sua passagem, a menina de cara laroca não resistiu mais e desatou num choro abundante, só se acalmando com o abraço pronto do senhor director.
«Vamo-nos daqui, Rocinante, que aqui não merecem a nossa presença. Ao caminho, que ainda não é desta que nos vencem. A outras portas iremos bater, alguma nos há-de abrir com grata satisfação por a termos escolhido, sabendo reconhecer-nos o devido valor. Com sorte, meu fiel companheiro, uma há-de ser que tenha um jardim, com árvores e boas sombras, com boa relva também, onde tu possas pernoitar e descansar quando de ti não precise. Eia!» E dali se foi o cavaleiro, tomando a direcção do rio, pois muito alterado de humores se encontrava e naquelas alturas só a placidez do rio o conseguia acalmar. De qualquer modo, fazia-se tarde, havia que pensar em novo poiso para passar a noite. Havia de ser perto do rio e, jurava ele, também no dia seguinte haveria de pôr termo à maldita chiadeira que a todo o instante o atormentava.
Si, si, ai que tenelos en el sitio! Dom Quixote em Belém e Rocinante a jeito de montar uma égua jeitosa da banda a cavalo da GNR. A Escrever Direito por Linhas Tortas. Com a faca e o queijo da edição na mão.
Ninguém muda de vida, de hábitos, de rotinas como quem muda de camisola. Os anos criam habituação, um conforto que se instala na alma e nos dias. Se bem que se estivesse no tempo em que mudar de emprego é considerado algo muito positivo, significando ambição e sede de subir sempre mais alto (contra todos os princípios de Peter, se preciso for, e até mesmo contra toda a falta de razoabilidade), ao contrário do que antes acontecia, a verdade é que Dom Quixote era homem que raciocinava e pensava em moldes antigos. Achava ele que a fidelidade a um projecto era uma virtude, que a criação de laços profundos do trabalhador com a empresa só poderia resultar em benefícios para ambos. Para a empresa que, desde que mantivesse o empregado motivado, fosse por via de um salário justo, fosse por via da angariação de novos negócios e novos projectos, veria os seus objectivos alcançados, sabendo de antemão com o que poderia contar, e para o trabalhador que não teria, a todo o momento, a pairar-lhe por cima da cabeça a ameaça do cutelo do desemprego e que, naturalmente, tendo salário e gostando do seu trabalho, suaria a camisola, como se diz, para atingir as metas propostas. Dom Quixote era, por conseguinte, um homem antiquado.
Por tudo isso, deambulava ele contristado pelas ruas de Lisboa, seguindo rumo a uma editora, cuja morada tinha tirado de um livro que folheara numa livraria onde havia estado. Por pouco tempo ali estivera, a ver um e outro livro, mas num completo sufoco com as pessoas sempre de olho nele, algumas mesmo vindo falar-lhe, mostrando-lhe a sua simpatia, oferecendo-lhe a sua solidariedade, confiando-lhe que a sua atitude fora muito digna e que nos dias de hoje eram já muito poucos os que tinham coragem para a tomar. «É preciso impor a moralidade neste pântano em que hoje vivemos à míngua de valores, a reboque dos interesses comerciais que tudo corroem e minam!», disse-lhe, apontando o dedo indicador da mão para o ar, um velhote de sobretudo cinzento caindo sobre a marreca. «Si, si, ai que tenelos en el sítio!», confirmou uma velhinha, tentando abraçá-lo e beijá-lo.
O Rocinante arfava, esquivando-se também ele aos muitos curiosos que agora queriam tirar fotografias a seu lado. Já com o amo na garupa, deitou a galope a caminho de Belém, onde se encontrava a sede da editora que Dom Quixote iria visitar. Seguindo junto ao rio, cavalo e cavaleiro por diversas vezes se viram na contingência de serem atropelados, de modo que, achando que o melhor modo de acautelar o dano era fugir à ameaça, se puseram numa correria frenética, passando eles a ultrapassar os automóveis num rally serpenteante. Às tantas, de tão disparados que iam, não deram por ela e ultrapassaram o limite de velocidade que os recentes radares ali colocados anunciavam. Consequentemente, mais adiante, a pouco mais de mil metros, foi com estupefacção que uma brigada da GNR mandou parar a montada. Uma vez mais às voltas com a lei, Dom Quixote não se escapou a uma prelecção moralista sobre a convivência na estrada e a uma «multinha» que um simpático agente lhe rubricou, mais lhe adiantando que não lhe proibia o prosseguimento da viagem porque era a sua primeira contravenção ao código e porque, sendo ele a figura pública que era, acreditaria na sua palavra de honra em como, daí por diante, teria cuidados na condução. Dava-lha? A palavra? «Sim, sim», pronunciou Dom Quixote querendo ver-se livre de mais este compasso de espera.
Por fim, Dom Quixote chegou a Belém, de novo agastado e muito farto da cidade. Deixou a 24 de Julho, virou à direita e entrou pelos jardins fronteiros ao Palácio Presidencial. A editora ficava ali por perto, só teria de perguntar a alguém. Estranhamente os jardins estavam cheios de gente que, numa espécie de cordão humano, se aglutinava olhando para a casa do senhor Presidente da República. Aproximando-se, Dom Quixote apercebeu-se de que se tratava de um render da Guarda. E logo, logo sonaram os acordes da banda a cavalo que se aproximava toda engalanada a preceito. Vá lá saber-se porque, se por via do sol excessivo nas crinas, se por via de uma bela égua que viu passar-lhe diante dos olhos, o Rocinante põe-se em pulgas e dispara na direcção da coluna equestre com Dom Quixote aos solavancos e incapaz de lhe pôr freio. A agitação foi grande, a banda desconcentrou-se e o aplauso foi geral quando o Rocinante se põe a jeito de montar a dita égua supracitada.
Mais tarde, aliviado das vontades e fortemente reprimido por Dom Quixote, lá acabou o cavaleiro da triste figura (sendo que triste figura fora a que Rocinante fizera) por chegar à morada pretendida. Ficava numa das ruelas que subia rumo a Monsanto, num primeiro piso modesto que, de resto, se coadunava com o percurso ainda em crescendo de afirmação no mercado editorial. A editora chamava-se Escrever Direito por Linhas Tortas e Dom Quixote tocou à campainha, deixando Rocinante lá em baixo, preso a uma árvore.
Tocou, tocou, voltou a tocar até que mais uma menina de carinha laroca lhe abriu a porta. Dom Quixote começava a ver que o mundo editorial estava cheio de meninas de cara bonita, o que talvez pronunciasse o divórcio da literatura com aquelas figuras cinzentonas com ar pesado, cheiro bafiento e óculos com lentes fundo de garrafa. «Dom Quixote, menina, venho falar com o director», anunciou-se o cavaleiro levantando a viseira do elmo. A menina, mal abriu a porta e se deparou com o figurão, assustou-se e deixou escapar um gritinho nervoso. Depois estranhou e fez cara de desconhecimento com o nome de quem ali se apresentava. «Dom quê? Da parte de quem? Qual é a empresa? É cobranças ou vem entregar encomenda?» O Dom Quixote logo se encheu de calores e volveu-lhe: «Quixote, menina, Quixote, de La Mancha, Cervantes, Cervantes, nunca ouviu falar? Nunca leu? Que mancha no seu currículo, que nódoa! Apresente-me apenas como Dom Quixote, Dom Qui-xo-te! Quer que escreva?» A menina ficou que nem varas verdes, fez o que o cavaleiro lhe ordenava e mais tarde, ao almoço, queixar-se-ia a uma colega da brutalidade do homem, que não sabia por que raio havia ela de ter lido não sabia que mancha de um tal Servente ou trolha, ela sabia lá, só sabia é que não estava para aguentar gente como aquela e que havia de se queixar ao director, que o que lhe pagavam não pagava tamanhas injúrias, e que se não houvesse medidas que se punha dali a andar era certinho, certinho.
À informação de que tinha na recepção Dom Quixote, o director editorial da Escrever Direito por Linhas Tortas levantou-se e predispôs-se a vir buscá-lo em pessoa. Que fizesse o favor, que entrasse, entrasse, estivesse como em sua casa, que muito gosto tinham em receber tão ilustre figura e que sim, já estavam ao corrente do sucedido, que vinha tudo nos jornais e não havia como passar ao lado do caso. O director só não percebera muito bem era o porquê da atitude de Dom Quixote e talvez ele pudesse explicar-lho, faria o obséquio. Dom Quixote acomodou-se na cadeira em frente à secretária do director, o qual, antes de mais conversa e de ouvir as explicações e os porquês da visita de Dom Quixote pelo próprio, pediu pelo telefone dois cafezitos à menina da recepção.
Dom Quixote não estava de todo acostumado àquelas situações. Jamais pensou sequer que um dia teria de enfrentar semelhante situação, sempre desconfortável, sempre desequilibrada: de um lado, um editor ou director editorial todo-poderoso, com a faca e o queijo da edição na mão; e do outro, alguém numa posição algo inferiorizada de ter de sugerir ao outro, nas entrelinhas do discurso, os seus préstimos, pôr-lhe à disposição o seu engenho e saber. Em suma, pedir emprego. Porque era disso mesmo que se tratava. Dom Quixote estava desempregado e necessitava urgentemente de encontrar quem lhe desse trabalho para sustento, que um homem, por mais que seja meramente ilustrativo ou personagem literária, tem sempre os seus gastos, sejam para gozo da alma, dos sentidos ou do corpo, que não fosse o corpo do seu Rocinante, que tinha de se alimentar e o feno ao preço dos dias de hoje não se mostrava abaixo do custo do litro do gasóleo. Ora, como não desejava inscrever-se em Centro de Emprego, o que provavelmente nem conseguiria, pois não lhe constava que alguma vez em seu nome tivessem efectuado quaisquer descontos para o fisco, e como se achava ainda em pleno vigor das suas capacidades intelectuais, Quixote ali estava, pelejando o seu futuro, «sem vergonhas de assumir o seu momentâneo estado de necessidade».
O director editorial, um rapaz jovem, vestindo fato e gravata, ouviu com atenção o cavaleiro de La Mancha. Quando aquele terminou o seu discurso, e tendo ficado bem claro aquilo que pretendia, foi algo a custo que o director abordou a difícil questão. Disse que compreendia muito bem aquilo que se estava a passar, que não era indiferente aos seus argumentos de superioridade moral literária, e que, no fundo, achava normal que uma pessoa com a sua craveira e a sua experiência não visse com bons olhos a mudança das prioridades na editora que deixara órfã. Depois, começou a desculpar-se, dizendo que o mercado não estava nada famoso, que os portugueses não liam, que o livro era tratado como batatas e que, para sobreviver neste meio canibalesco, onde apenas os mais fortes e astutos conseguem vingar, também a Escrever Direito Por Linhas Tortas» tinha que fazer as suas cedências em matéria de crivo literário e, por conseguinte, fazer as suas opções, de resto, de acordo com as expectativas traçadas pela Administração. Dizia ele: «Senhor Quixote, creia que eu teria o maior gosto em poder ajudá-lo, eu por mim, sei lá, era capaz de criar uma colecção própria com o seu nome, para novos autores ou até clássicos, o que fosse... mas, mas a verdade é que não estou em condições para o fazer. Temos neste momento medidas restritivas de contenção de gastos e eu não tenho carta branca senão para editar livros que vendam e vendam bem. Dir-me-á, então e a literatura, a verdadeira literatura?... E eu dir-lhe-ei que terá toda a razão, mas razão nenhuma excede a razão dos números. Infelizmente, assim é. Mais um cafezinho?...»
Dom Quixote nem queria acreditar no que ouvia. A «razão dos números? Mas é lá isso razoável tratando-se de livros, do desígnio maior da literatura, da beleza maior das palavras?» Apercebendo-se de que aquele não era chão que desse uvas, levantando a armadura, no que o jovem director o ajudou achando que as pernas do cavaleiro já não teriam forças para tanto por si mesmas, Dom Quixote rejeitou a ajuda com um leve safanão e dispôs-se a peneirar sorte noutras águas que aquelas, estava mais que visto, não lhe correriam de feição. Baixando a viseira com estrépito e pegando na sua lança, abriu a porta e fez-se ao caminho, não sem antes se virar para trás e dizer ao director que ajeitava a sua gravata e acertava os botões de punho: «Os números! Os números! E que tal mudar o nome da editora para Escrever Dinheiro Por Linhas Tortas?» E saiu, tonitruante, todo ele a chiar, pois a armadura dava mostras de precisar de ser oleada nas juntas, coisa que ele já tinha notado e que o vinha atormentando sobremaneira. À sua passagem, a menina de cara laroca não resistiu mais e desatou num choro abundante, só se acalmando com o abraço pronto do senhor director.
«Vamo-nos daqui, Rocinante, que aqui não merecem a nossa presença. Ao caminho, que ainda não é desta que nos vencem. A outras portas iremos bater, alguma nos há-de abrir com grata satisfação por a termos escolhido, sabendo reconhecer-nos o devido valor. Com sorte, meu fiel companheiro, uma há-de ser que tenha um jardim, com árvores e boas sombras, com boa relva também, onde tu possas pernoitar e descansar quando de ti não precise. Eia!» E dali se foi o cavaleiro, tomando a direcção do rio, pois muito alterado de humores se encontrava e naquelas alturas só a placidez do rio o conseguia acalmar. De qualquer modo, fazia-se tarde, havia que pensar em novo poiso para passar a noite. Havia de ser perto do rio e, jurava ele, também no dia seguinte haveria de pôr termo à maldita chiadeira que a todo o instante o atormentava.
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