quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Capítulo XI

XI.

Um best-seller. O debate mediático. Um chega pra lá em Saramago. Couves de Bruxelas. A adoração a Ana Obregon e a Pantoja. A importância de ser open-minded. As meninas da Imagem Mais. Vi Prazeres.



Tinha apenas transcorrido um dia sobre os acontecimentos mas a verdade, e dando razão às melhores expectativas do director editorial, é que o livro de Etelvina Prazeres era já um best seller em todas as livrarias e demais pontos de venda do país. Os jornais e as televisões debatiam o fenómeno literário, escritores com carreira feita escusavam-se a grandes comentários sobre um «objecto» ao qual chamar livro seria sinónimo de muita, mas muito boa vontade, os suplementos culturais concorriam por uma entrevista à autora. Mas, mais surpreendente, o fenómeno atravessara fronteiras e dera mesmo lugar a notícias, ainda que esparsas, em vários países da Europa e até no Brasil, onde um crítico alertava o público para a maior revelação literária depois de Paulo Coelho. «O escriba do rabicho de cavalo que se cuide!», era o título do artigo. Outro dizia: «Prazeres do Diabo (Vermelho?)» E ainda outro: «Etelvina dá um chega pra lá em Saramago». São, de resto, bem conhecidas as propensões brasileiras para estas pérolas jornalísticas.
Em Portugal, a editora multiplicava-se em iniciativas para continuar a promover e divulgar o livro. Colmatado à nascença o problema do desaparecimento dos Dom Quixote das capas dos seu livros, logo, logo, depois de um registo ultra-rápido, a Dom Chicote chegou às bancas e às bocas do mundo. A segunda e terceira edições do «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal», dadas à estampa apenas numa semana, surgiram já com o novo logotipo do homem nu voltado de costas com uma flor entre as nádegas robustas. Etelvina gostou, disse que se identificava mais com aquela personagem, até porque já não gostava muito de velhinhos com barbas, preferindo os carecas. Nas livrarias, as filas não paravam e nas televisões o caso continuava a fazer a ordem do dia. Uma escritora light dizia que nada daquilo a surpreendia, porque afinal de contas havia lugar para todos e que a velha história de que os portugueses não liam não passava de uma falácia. E acrescentava que, para além de lerem, sabiam muito bem fazer as suas opções de leitura, o que, de resto, deveria servir de exemplo para muitos escritores que se tinham em grande estima e conta própria, mas que, analisadas as coisas, e não seria preciso para tal uma grande lupa, não vendiam praticamente nada, o que só podia ser prova da qualidade da sua escrita e do interesse que os seus livros despertavam no público. A conversa terminou com o jornalista a querer saber o que andava essa escritora a escrever, respondendo ela que era uma história de amor e traição no Parlamento Europeu e que qualquer semelhança com a vida de amigos seus seria pura coincidência, de resto, tal como algumas citações pedidas de empréstimo a meia-dúzia de escritores de renome internacional. E já tinha título em mente? «Sim. “Couves de Bruxelas”».
Quanto ao director editorial, telefonava diariamente a Etelvina dando-lhe conta dos números das vendas, ao mesmo tempo que a convidava para diversas sessões de apresentação do livro de norte a sul do país. Num desses telefonemas, disse-lhe que uma das apresentações agendadas teria lugar numa escola primária, com uma turma de potenciais futuros escritores, perguntando-lhe ele se ela teria disponibilidade para tal, que era importante, ficava bem nas televisões, e, quem sabe, até lhe podia dar alguma ideia para um futuro livro infantil, como a Madonna, quem sabe mesmo uma série... Ao que Etelvina respondeu: «Ai, não sei, e vou ter de ir ao quadro?»... Respondendo-lhe que não, tal como não teria de fazer contas nem ditados, gracejou o director editorial, passou a outro assunto. Disse a Etelvina que tinha recebido um telefonema de um colega espanhol propondo a publicação do seu livro no país vizinho. Etelvina riu-se com a ideia, achou óptimo, fantástico, disse que adorava a Ana Obregon e a Pantoja, que a filha dos príncipes era um amor, o príncipe tinha um bocado cabeça de pepino, mas isso não importava, era bem mais interessante que o príncipe Carlos e as suas orelhas de abano, só que... só que havia um problema: não sabia falar nem escrever espanhol!
Sem mais delongas, o director editorial despediu-se de Etelvina dizendo-lhe que não se preocupasse com nada, que ele mesmo trataria de tudo. Etelvina agradeceu e voltou aos banhos em que se encontrava na praia dos Tomates onde, a todo o momento, algum colunável também ali de férias lhe interrompia o bronze para lhe pedir um autógrafo («Ai, querida, adorei, adorei, adorei, você escreve maravilhosamente, eu, por mim, dava-lhe o Nobel, o Saraiva que me desculpasse!»), não se escusando a convidar a autora para esta e aquela festas nocturnas onde, garantiam, estaria a nata do jet set. Etelvina agradecia a todos com um beijinho na cara e já de novo ao sol que a derretia, como se os raios do meio-dia fossem as labaredas de um dragão enfurecido, pôs-se a matutar no que o director editorial lhe dissera. Não nas criancinhas, que ela adorava, mas na história da Madonna e dos livros infantis. E pôs-se a matutar: «Olha, escrever livros infantis não diria, mas porque não começar uma carreira na música?» E isto pensando, ligou o seu MP3, pondo-se a ouvir o disco de estreia de Michael Carreira.
Sem mãos a medir com encomendas. Era assim na editora como não se via em anos e anos de publicação de romances obscuros de escritores ainda mais obscuros que a cada título pareciam mais e mais obcecados com a morte. Qual Tejo, quais ninfas, quais musas, a sua inspiração não era outra senão a depressão, a melancolia, a morbidez! O director editorial editorial, cada vez mais entusiasmado com o sucesso da Dom Chicote, só se arrependia de não ter ele próprio pensado naquilo há mais tempo, e não ter sido ele mesmo a mandar passear o decrépito Dom Quixote, de não se ter lembrado da Dom Chicote há mais tempo. Mas, enfim, o passado não se pode mudar, e agora o caminho fazia-se para a frente. Havia de inovar, aparecer, estar no centro das notícias. «Fazer acontecer», como escutara em tempos a um orador de um curso de «Reciclagem Editorial para Seniors». Sim, esse era o cerne da questão, o fulcro do negócio, a chave do sucesso. Isso e ser «open minded». O director editorial editorial ouviu e achou que sim, que havia de ser «open minded» e que nada de mais «open minded» haveria do que acolher a literatura de Etelvina Prazeres. Mas era preciso mais, era preciso explorar aquele filão até o fundo, bem a fundo.
Por tudo isso, e com o aval de uma administração mistério, que ninguém conhecia e que ninguém nunca vira, o director editorial deu-se ao luxo de requisitar os serviços uma empresa externa apenas para pensar a questão do marketing em torno de Etelvina Prazeres. Uma decisão bem típica de um director moderno, dir-se-ia. E logo, no dia seguinte, ali foram bater à porta do gabinete do director editorial duas meninas muito bem aparentadas, cheias de pastas e papelada, com muitas ideias para promover o produto, «perdão», disseram, «o livro», bem como a sua autora. Os números, disso se falaria depois, que não se importassem, o mais importante era levar a tarefa a bom porto. As meninas da Imagem Mais – como se chamava a empresa – chegaram manhã bem cedo, assentaram praça no gabinete do director editorial e não o largaram até serem já quase duas da tarde, brindando-o com uma fastidiosa apresentação da sua empresa e depois com uma série de teorizações sobre o gestor moderno e a importância do marketing nos mercados competitivos de hoje.
Que era necessário compreender o perfil dos consumidores, adaptando o produto às suas necessidades específicas, entender o seu perfil histórico de relacionamento com os livros, no caso, criar, em função das conclusões, uma filosofia de promoção que tivesse dos mercados uma visão alargada. E uma das meninas, vendo o franzir de testa do director editorial àquela primeira abordagem, concretizou com um sorriso: «Eu explico-lhe: é que o marketing da actualidade integra análise, planeamento, organização e controlo dos recursos e actividades das empresas e organizações com vista a satisfazer as necessidades e exigências dos mercados alargados, desenvolvendo e mantendo com eles relações e transacções que permitam maximizar o valor que lhes é acrescentado. Tudo, naturalmente, em prol do indivíduo, em prol do produto per si». «Per si»? – perguntou o director, cada vez mais confuso. Depois de muita conversa, depois de muitos termos técnicos, depois de muita teorização, as meninas tranquilizaram o director dizendo-lhe que não se preocupasse com nada, elas tratariam de tudo, para o que necessitariam apenas da sua anuência total às suas propostas. Por fim, pegaram nas suas coisas, nos seus casacos, nas suas malas e despediram-se, não sem antes oferecerem ao director alguns livros que consideravam de leitura obrigatória para o seu sucesso pessoal, um deles, falava de alguém que tinha mexido no queijo de não sei quem, outro era uma espécie de guia para o gestor brilhante.
Já sozinho no seu gabinete o director editorial abriu um dos livros e pasmou com a quantidade de conselhos que ali se davam com vista a ser o tal gestor brilhante. Não ter medo de arregaçar as mangas e intervir, não pensar que é demasiado importante para fazer tarefas banais, não ter um comportamento egoísta, ter cuidado ao criticar colaboradores, ser honesto e falar com franqueza, admitir os erros e pedir desculpa quando necessário, não tentar agradar a todos, tentar não fazer parte da «malta», estar presente, evitar manifestações de comportamento despótico, transmitir uma visão de futuro, ter cuidado com as cedências, evitar a microgestão, gerir os danos, etc. Era um nunca mais acabar de sugestões que logo, logo o fastidiaram, dando-se nesse momento conta de que as meninas afinal se tinham ido embora sem apontarem uma única proposta concreta para a promoção de Etelvina Prazeres.
No dia seguinte, porém, as meninas voltaram ao ataque, regressando ao gabinete do director com uma série de propostas na mão, ou na mala, ou no computador portátil, como era mais moderno, fazendo para o director uma apresentação fascinante em power point. O director parecia convencido, não percebia grande coisa de computadores para além da utilização do mesmo para composição de texto, pelo que aquela apresentação em slides sucessivos, com entradas e saídas do ecrã por baixo e por cima, pelos lados e até na diagonal, lhe pareceu uma coisa muito bem feita e com profissionalismo. A primeira proposta das meninas pareceu-lhe no imediato algo arrojada. Questionavam elas até que ponto o director acharia por bem que o nome de Etelvina Prazeres pudesse ser «melhorado». «Melhorado», perguntou ele, «como assim?» Elas elucidaram: «A verdade é que em termos de mercado o nome Etelvina não é famoso... Não é chique, não está in... O Prazeres, não, o Prazeres achamos óptimo, muito sugestivo e comercial, achamos que é carnal e, como sabe, hoje em dia tudo o que remete para o campo da pele e dos desejos vende. O que acha de em sessões públicas se passar a referir a autora apenas como Vi Prazeres? Temos a certeza de que essa abreviatura aproximaria a autora de uma faixa social com muito poder de compra.»
O director, pasmado mas convencido, lá acabou por aceitar a ideia, pelo que doravante quando se falasse publicamente de Etelvina dir-se-ia, tão-somente, Vi. Quando Vi estava aceite, as meninas passaram a outras propostas. Sugeriram que se mandassem fazer duas grandes faixas vermelhas verticais, nas quais surgiriam a cara e a capa da autora e do livro, as quais se colocariam no exterior do edifício da editora aproveitando a sua localização perfeita e, por conseguinte, a exposição pública constante aos muitos automobilistas e demais transeuntes que por ali passavam. Outra ideia «magnífica», garantiam, era produzir miniaturas de sapatinhos de cristal – que , naturalmente, seria vidro barato – que se ofereceriam ao público em acções de promoção específicas com meninas vestidas de Cinderela, ou talvez de Floribela, porque era uma personagem que estava na moda e havia que criar «sinergias» com outros produtos de sucesso preexistentes. Como slogans de campanha tinham pensado em «Não perca o seu sapatinho, mude a sua vida!» ou então num mais rotundo «De um pontapé na sua vida!» T-Shirts crachás, isqueiros, toalhas de praia, entre muitos outros objectos, fariam o mais na divulgação entre o grande público. O director editorial sorriu e o sorriso só se desvaneceu quando a dona Paula, mais tarde, lhe foi levar a primeira factura deixada pelas meninas para pagamento a quinze dias a título de adiantamento.

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