terça-feira, 18 de dezembro de 2007

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Capítulo XV

XV.

Besta?! Ai, eu sabia que me iam chamar nomes. Vendas zero! Uns artistas! Uns intelectuais do verbo. Tudo bem explicado ao Zé. Um prémio literário para escritores-fantasmas. Não teria o director passado ao lado de uma grande carreira no marketing?

«Fantasma, tenho a solução para os teus problemas», disse o director editorial da Dom Chicote a José Salvador, vulgo escritor-fantasma, quando este chegou cabisbaixo ao escritório para uma reunião na qual, julgava, o director lhe iria dar um grande puxão de orelhas. O que, para seu espanto, não aconteceu.
Quando o escritor-fantasma entrou o director pediu-lhe que fechasse a porta, dizendo-lhe apenas um «temos que conversar» que logo, logo arrepiou de alto a baixo o pobre Zé pretendente a escritor de sucesso, leia-se best seller, ou, no entendimento de Vi Prazeres, «besta célere» – pois foi isso que ela perguntou ao director quando aquele lhe disse que ela já o era; o quê? Best seller! E ela: «Besta?! Ai, eu sabia que me iam chamar nomes, mas isso eu não vou deixar que aconteça, eu não admito, eu vou falar com o meu advogado, ai vou, isso vou, eu sabia, director...» Aproximando-se do Zé, o director dá-lhe umas palmadinhas nas costas entretendo com ele a conversa que se reproduz:
– Então, aqui para nós, que ninguém nos ouve, gostavas de ser escritor, hã Zé, é isso?
– Pois, quer dizer, senhor director, eu até gostava...
– Sim, senhor, sim senhor, ora então mais um escritor... Sabes, Zé, eu até nem vejo mal nisso, é profissão que hoje em dia muita gente escolhe, a entrada para o ramo encontra-se hoje mais facilitada e tal... agora, agora é preciso é reunir umas certas condições que, para te ser sincero, Zé, eu não sei se tu reúnes...
– Mas... mas que condições, senhor director... o senhor director até sabe que eu escrevo umas coisitas bem arranhadas.
– Sim, sem dúvida, e sobretudo tens a noção de experiência feita de por onde não te deves meter...
– Está a falar dos hermetismos...
– Ora, ora, ora, estás a ver como tu chegas lá! Nem mais! Epá, ó Zé, essa escrita que praí anda, com tanta malta a escrever assim, transpira depressão e morbidez, não há pachorra ou mente sã que aguente aquilo. Um gajo começa a ler de boa saúde e é uma sorte se quando acabar o livro não tiver de se meter em consultas psiquiátricas. E depois, depois já se sabe, chegam ao mercado e nada, vendas zero! Uns artistas! Uns intelectuais do verbo.
– Pois, artista eu... eu não quero ser, quero ser é escritor. Quer dizer, gostava, tinha gosto assim... assim em também, naturalmente, vender muitos livros, aparecer nas capas dos jornais e das revistas da especialidade, dar entrevistas...
– ... pois, pois, pois, pois é Zézinho, mas é precisamente aí, é aí nesse ponto que a porca torce o rabo. Ouve o que te digo, ouve bem o que te digo enquanto teu amigo que anda há muitos anos nesta vida e tu sabes disso! Ó Zé, epá... como é que eu te hei-de dizer isto... é que, é que... prontos, o que se passa é que a tua imagem não é famosa, convenhamos, falta-te um palminho de cara, ninguém te conhece e hoje em dia, tu sabes disso, sabes que se não tiveres uma imagem morres... Epá, morres, morres antes de chegares às bancas! Não leves a mal, Zé, e desculpa a frontalidade que só a minha amizade por ti permite, mas eu acho que uma fotografia tua numa capa até era capaz de assustar o leitor. Ah, ah, ah... Tenho ou não tenho razão?
– Pois... pois... se calhar o senhor director tem razão...
– É claro que tenho razão Zé, se eu não tivesse razão não tinha chegado onde cheguei, não tínhamos neste momento em mãos uma au-to-ra como a Prazeres. Mas ouve cá, então tu não estás satisfeito por seres um escritor-fantasma? Eu não sei como é, mas acredito que isso até há-de ajudar no engate das miúdas, não? Tipo: «O que é que eu faço na vida? Sou fantasma, escritor-fantasma.» Bem, deve ser de as deixar com um nervoso miudinho... Sabes como elas gostam do pessoal que tem assim profissões misteriosas, ficam logo todas entusiasmadas... Isto já para não falar do resto, pá, não tens que andar nas sessões de autógrafos, não tens que te preocupar com encontros de escritores, olha, não tens de aturar editores com o corta aqui, corta acolá, aumenta este capítulo, corta aquele, e aqui esta personagem isto, aquela aquilo e não sei que mais... Vê as coisas pelo lado positivo. Ninguém te chateia, pá, os críticos quando decidem morder é nos outros... Um espectáculo de trabalho, colhes a parte boa e a má deixas para os outros! E digo-te mais, aqui uma coisa para ficar entre nós, a verdade verdadinha é que eu acho mesmo que a maior parte dos escritores afirmados e com reconhecimento público dariam tudo para serem escritores-fantasmas.
– Pois... o senhor director desculpe... provavelmente tem razão, toda a razão. É que eu julgava que ser conhecido até era muito bom e há tanta gente que hoje publica... e depois sempre podia concorrer aos prémios literários que até me podiam dar uns dinheirinhos extra...
– Ouve cá, ó Zé, se o teu problema é esse, eu arranjo uma ideia qualquer para te ajudar. Arranja-se qualquer coisa cá em casa, dentro de portas, uma coisa que te anime... deixa-me pensar. Mas olha, isso dos prémios até é capaz de me dar uma ideia. Já sei. Cria-se um prémio literário para escritores-fantasmas a que tu poderás concorrer enquanto tal. Pede-se um patrocínio à Câmara e depois, bem... depois já sabes como é... a malta envia os textos... e... e o júri... o júri a gente escolhe e depois escolhe. Na sombra, claro!... Pode ser que tu ganhes... Dá-se um jeitinho... pronto, ganhas umas massas! Isto é, umas massas para ti, outra parte... enfim, tu sabes, tudo dividido de forma justa... a cada um a justa retribuição do seu trabalho e das suas ideias.
– Então e se alguém...
– Se, se, se nada, Zé! Então tu achas que algum escritor -fantasma teu concorrente vai duvidar ou questionar a decisão? E mesmo que duvide nenhum certamente há-de querer dar a cara. É que se a derem é porque, na verdade, não são autênticos escritores fantasma, pois esses nunca se dão a conhecer! Estás mesmo a ver nas notícias: «Escritor-fantasma contesta decisão de concurso literário»! Impossível, não é? Tinha a carreira arruinada. Como é, mais animado? Estamos conversados para já?
– Sim, senhor director, vou começar a pensar num romance...
– Isso, isso, vai pensando. E vai também pensando no novo livro da Etelvina Prazeres. Já tenho umas ideias sobre a coisa, mas depois falamos sobre isso.
– Está bem, senhor director e desculpe aquilo que me deu ao telefone... passei-me um bocadinho, não foi?
– Foi, rapaz, passaste-te mas já passou. Agora, mãos ao trabalho, temos autores à espera de obras!
– Vou já escrever, senhor director, obrigado por tudo.
Pronto. A história do fantasma estava resolvida. Era mais uma chatice pensar o raio do concurso, mas se calhar, pela originalidade, a coisa ainda daria alguma publicidade de borla à editora. De resto, um dos editores trataria do assunto, ele, enquanto director, só teria de controlar o valor do prémio, dar o OK final à decisão do júri e pouco mais. O director começava a achar que o contacto com a Imagem Mais lhe começava a trazer proveitos e a dar ideias; quem sabe não tinha passado ao lado de uma brilhante carreira no marketing?

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