sábado, 1 de dezembro de 2007

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - ou não queremos problemas com a Dom Quixote - Capítulo VIII

VIII.

Dom Quixote de novo com as rédeas da escrita. Uma noite complicada no Castelo de São Jorge. Uma turista inglesa e o Fonseca da EMEL. Paga já, ou vou ter de mandar rebocar o bicho?



Ah, não, meu caro escritor. Não, não, insisto, vai desculpar mas agora quem pega nas rédeas da história sou eu uma vez mais e de uma vez por todas. Convirá! A um ilustre como eu não convém perder a mão, sob pena de eu próprio perder o fio à meada dos factos que eu comecei a narrar, à data encontrando-me ainda no cimo da penúltima prateleira da estante do gabinete do director editorial, como todos recordarão. Com licença, com licença, tomo a palavra e o papel.
Depois de digerido o desagradável episódio que tive com o tal agente Silva, retomei a garupa do meu alazão e fui-me pela Baixa abaixo... se é que posso utilizar a rebarbativa expressão. Segui os trilhos do eléctrico da Rua António Maria Cardoso, segui pela Vítor Cordon (onde tive ganas de me apear para dar uma espreitadela às novidades da Livraria Espanhola sita ali na esquina) e depois, com grande cuidado, continuei descendo a Calçada de São Francisco. Ao fim da rua, pouco andei em diante quando, vendo ao longe um carro de Polícia, achei por bem mudar de rumo para não ter mais azias, digamos assim. Meti para a esquerda e fui dar à desembocadura do Metro da Baixa-Chiado, voltando aí a ser alvo de todas as atenções por parte de pequenos e graúdos.
Passado um bocado, e apercebendo-me de que tão cedo não iria ter tréguas da parte daquela gente toda, olhei para o céu, já como que implorando que me deixassem em paz e sossego, e foi então que vi o Castelo de São Jorge. Foi para lá que decidi partir imediatamente, pois que se ia fazendo tarde e não podia andar nesta vida de andarilho o dia inteiro, de cá para lá, sem poiso certo onde pudesse descansar e pôr as ideias no lugar. Para mais, também havia de ser bom sítio para deixar o Rocinante a dormir. E dali nos fomos uma vez mais em esforço, pois esta Lisboa e as suas colinas são capazes de matar um homem! Ah, nessa altura bem me voltei a lembrar do meu velho amigo e servidor, o escudeiro Sancho Pança, que há anos não vejo nem dele sei notícias. Quando vim para Portugal, foi com alguma relutância que aceitou ficar em terras de Espanha, mas lá acatou e compreendeu a justificação que lhe foi dada pela editora, dizendo que pôr um cavalo e um cavaleiro numa lombada de capa já seria difícil, quanto mais a parelha e um ajudante a atirar para o forte. Que quanto aos livros grandes e grossos não haveria de ser um problema, mas que no caso dos livros mais magrinhos já tudo seria bem mais complicado, compreendesse. E ele, coitado, compreendeu, tendo-se despedido de mim e jurando nunca me esquecer, mesmo quando ao serviço de outro senhor e cavaleiro. As saudades que tenho dele!
Foi neste remoer de memórias que o tempo não gasta, pois a lembrança dos amigos não fenece, que chegámos às cercanias do Castelo. Encaminhei-me para a entrada por uma estrada íngreme e pedregosa, passei por uma escola de circo onde cumprimentei uma palhaça que ali estava em conversa com um jovem casal, e preparava-me para passar adiante através das portas do monumento quando uma voz e respectiva farda me barraram o caminho. Deti-me a ver de onde vinha o grito de «alto lá!». Olhei para a direita e de uma espécie de guarida vejo um guarda a aproximar-se. E logo antes dele: «Senhor guarda, boa tarde, pode-se?...», indicando-lhe com o braço e a lança a entrada do castelo. «Na, na, na!», respondeu-me ele. «Na, na, na?», eu. E ele: «Pois, o cavalinho tem de ficar cá fora, amigo». «O cavalinho?...», comecei eu a encher-me de calores outra vez ao ver assim tratado o meu Rocinante. Consegui, porém, refrear-me e pensar que o melhor era não responder, sob pena de arranjar mais problemas. «Com certeza, senhor guarda, e então onde posso deixá-lo?» «Ó amigo, isso é com o senhor, mas se quiser deixe-o já ali ao pé daquelas árvores.» Assim fiz e disse adeus ao meu companheiro, combinando encontrar-me com ele ali mesmo na manhã seguinte, altura em que já saberia que rumo dar à vida de ambos. Descansasse. O Rocinante resfolegou e pôs-se a enxotar moscas ao ritmo da noite que ia caindo sobre a cidade.
Quanto a mim, fui-me para o castelo. Mas, uma vez mais, as coisas não se mostraram fáceis. O tal guarda voltou ao meu encontro e barrando-me a passagem informou-me de que para entrar teria primeiro de pagar o bilhete. «Bilhete!? Para entrar num castelo que até pode estar assombrado?», disse-lhe eu indignado. «Amigo, com ou sem fantasmas, tem de pagar. A autarquia assim estabeleceu, está estabelecido. A não ser que seja morador... Será, caballero?...», volveu ele de sorriso de soslaio. «Não», respondi-lhe, «não sou morador, acha que tenho cara de morador?» Por fim, anui, revolvendo a bolsa que tinha por debaixo das vestes em procura da única moeda que tinha comigo, a tal de dois euros. Recebendo o dinheiro, o guarda lá me deixou entrar. Caminhei então rumo às ameias do castelo onde se encontravam uns canhonetes apontados sobre a colina, sentando-me aí a apreciar a beleza cálida e luminosa daquele fim de tarde sobre o casario e o Tejo. Depois de alguns minutos, adentrei-me pelas entranhas do castelo, chegando ao seu interior. Escurecia e, aos poucos, os turistas que ali estavam iam deixando o castelo. Às tantas sentei-me num canto mais recôndito a descansar os olhos e a carcaça. Foi quando depois acordei, sem fazer ideias de que horas seriam e quanto tempo teria dormido, que dei por mim numa penumbra algo... algo assustadora! Estava sozinho. Levantei-me e... ninguém! Corri para o exterior das torres, percorri as ameias e nada, ninguém outra vez. Fui até perto da porta de entrada e... fechada! Foi com um leve arrepio que me percorreu a espinha que percebi que tinha ficado ali encerrado, pelo que teria mesmo de passar a noite naquele breu.
Vagueando meio a tactear caminho, encontrei por fim um recanto que achei razoável para dormir. Deitei-me, encostei a cabeça a uma pedra e aos poucos o silêncio envolveu-me. O silêncio e a escuridão que, como todos sabem, não é nada silenciosa, antes pelo contrário, traz com ela inúmeros barulhos, estranhos barulhos, tantos que me fizeram pôr à guarda. Pus o elmo, abri os olhos e meti a lança em riste, não fosse algum inimigo tecê-las. Era já muito noite, quando oiço passos, passos e um revolver de ervas ou folhas, como se alguém me espreitasse por detrás de um arbusto. Depois, depois um ramo que estala, e depois outro e mais outro e mais outro e eu levanto-me de supetão, tropeço duas vezes seguidas mas levanto-me a tempo de lancetar os fantasmas que avançavam sobre mim, grito, corro, grito ainda, corro no encalço de estátuas que também elas animadas de vida se libertam da pedra de que se fazem para se agigantarem sobre mim, mas não as temo, não receio nem estátuas nem fantasmas, não vacilo ante exércitos do mal, eu sou o bravo cavaleiro Dom Quixote e a todos esses seres malignos que ousam afrontar-me enquanto durmo respondo com a força da minha lança, com o vigor da minha...
«Hi, hello! Hello! Excuse me, are you Ok?»… Era uma turista, uma inglesa ruiva que à minha frente se prostava, por pouco não se furtando à fúria da minha lança. Eu, bem eu acordei naquele momento. Estava meio estonteado, suava por dentro da armadura e só passados dois ou três segundos percebi que sonhava. Cerrei os olhos, depois abri-os e olhei a estrangeira que continuava ali a fixar-me na dúvida se eu estaria bem ou não. Era de dia e a luz que já banhava todo o castelo prometia mais um dia de forte calor pela frente. Sorri para a ruiva, disse-lhe que estava «Ok», anuí a tirar uma fotografia com ela e o marido e depois fui-me dali à procura do Rocinante. Quando transpus a porta de entrada do castelo, o guarda do dia anterior olhou-me com algum espanto, ficando a remoer se eu teria ou não passado ali a noite. Eu não lhe liguei e passei-lhe diante das barbas rumo ao meu alazão.
Foi com grande surpresa que quando cheguei ao pé das árvores onde o deixara preso o vi rodeado de mais um outro tipo fardado. Desta feita, não era um polícia, não era um guarda, era... era então o quê? Olho-o nos olhos, depois o peito e é aí, num distintivo, que leio: «Fonseca – EMEL». Fonseca eu ainda conhecia, um apelido como outros, sem nada de especial. Agora EMEL? «Desculpe, o que vem a ser isso de EMEL?», atirei-lhe eu quando aquele, depois de ter posto um papelinho na orelha de Rocinante, se preparava para lhe pôr um estranho objecto nas patas traseiras. E disse o tal Fonseca: «EMEL, amigo, estacionamentos, bloqueios automóveis, não sei se já ouviu falar?... E aqui o seu quadrúpede não tinha ticket!» «Não tem o quê?», pasmo eu. «Amigo, vamos lá a ver se nos entendemos, o senhor estacionou aqui o seu animal e esqueceu-se de tirar o ticket da máquina. Sou obrigado a autuá-lo e como demorava já me via na circunstância de ter de imobilizar o seu animal. Como é que quer fazer? Paga já, ou vou ter de mandar rebocar o bicho?» Confesso, não ouvi mais nada. Quadrúpede? Animal? Bicho? Imobilizá-lo? Rebocar o Rocinante? Tudo aquilo me pareceu muito estapafúrdio, tanto que não fiz mais nada nem estive com falinhas mansas. Baixei o elmo, ergui a lança e arrimei-a fremente de ganas ao rapazola que, então sim, tomou consciência de que dali não ia rebocar ninguém e o melhor que fazia era pôr-se dali a andar o quanto antes melhor para a sua saúde. Meu companheiro, disse para o Rocinante, vamo-nos daqui uma vez mais que começo a achar que nesta cidade são todos malucos e nos querem multar.

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