sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Capítulo XVI

XVI.

Uma simpática jovem respirando saúde, forma física, boas maneiras e Chanel. A doutora da Ideias Fantásticas. Dom Quixote convicto de que poderia ser uma mais-valia. A história da editora. A história surpreendente de Luisinha Ratita Cunha. Pitchi.


D. Quixote demorou quase duas horas para atravessar Lisboa desde Belém até à antiga Praça do Areeiro e, como se adivinha, chegou à porta da Ideias Fantásticas como uma autêntica pilha de nervos. Já não bastassem, uma vez mais, o trânsito infernal e o calor impiedoso, ali chegado um outro problema – embora não original nesta história, mas há-de o leitor convir que não é fácil pensar onde se arruma um equídeo no meio de uma cidade – se lhe colocou. Onde deixar o Rocinante? Pasto, ali à volta não havia e a editora só tinha lugares de garagem para o carro do Editor Geral, pelo que a única solução foi optar pelo estacionamento pago da EMEL. Contrafeito e resmungando de si para consigo (como também já vai sendo hábito), Dom Quixote lá tirou uma moeda de uma pequena sacola que trazia por dentro da armadura e dirigiu-se ao parquímetro. Colocada a moeda na ranhura, voltou com o ticket na mão para junto do seu cavalo. Rocinante, bem estacionado, recebeu então do seu dono o dito ticket que, preso entre os dentes, provaria a sua legalidade enquanto utente rodoviário.
Tocando à campainha com afinco quem o veio receber foi uma simpática jovem que respirava saúde, forma física, boas maneiras e Chanel. Simpática e despachada, embora mantendo uma certa distância de reserva para com Dom Quixote, cujo aspecto a perturbou e lhe causou uma indisfarçável ligeira repulsa, a menina apresentou-se, dizendo chamar-se Coco, e perguntou ao cavaleiro se tinha entrevista ou reunião marcada e, já agora, se possível, com quem.
Que não, respondeu-lhe Dom Quixote, mas que desejava falar com a editora da Ideias Fantásticas, pois tinha uma proposta a fazer-lhe, quisesse fazer o favor de o apresentar, Dom Quixote era o seu nome, caso não soubesse. Com certeza, respondeu-lhe a menina Coco, pedindo-lhe que aguardasse um pouco que ela ia ver se a doutora o podia receber. «A doutora?...», intrigou-se o nosso protagonista, pondo-se a pensar que o mundo editorial tinha mudado bastante nas últimas décadas. Antes, os livros eram ofício de meros e simples amantes da palavra, das ideias, hoje os livros parecem entregues à classe dos doutores, gente que vê nos livros meros objectos comercializáveis, se possível geradores de riqueza, se possível o mais rapidamente possível.
Estava nestes considerandos para consigo, quando voltou à sala de espera a menina Coco com um sorriso a meia haste, declaradamente a contragosto. Transmitiu-lhe então que tivera muita sorte, pois a doutora já tinha chegado, já tinha bebido o café da manhã, e, pasmasse, tinha encontrado um buraco na agenda hiperpreenchida. Dom Quixote levantou-se e seguiu então a menina por um corredor que levava a uma porta ao fundo. Entrando no gabinete da «doutora», Dom Quixote sorriu, cumprimentando a dita. Era uma senhora dos seus quarenta e muitos, toda sorrisos, batom e unha pintadas de um vermelho garrido. Pulseiras de ouro, colares reluzindo a condizer, toda ela, entre o negro e o creme, transpirava um vestir caro e refinado, de marca comprada na Avenida da Liberdade ou quiçá mesmo nas exuberantes avenidas parisienses. Visse a distinta passeando na rua e jamais Dom Quixote afirmaria estar perante uma editora de livros. Era tal qual como havia poucos minutos atrás reflectia; adeus aos homens mal vestidos, de aspecto intelectual e óculos de hastes grossas e lentes garrafais na cara, agora o mercado queria outro tipo de profissionais, transpirando (e até este termo pode aqui desadequar-se...) glamour e modernidade. Dom Quixote não via mal nenhum nisso, de resto. Por que raio, aliás, as pessoas que lidam com o livro devem aparentar-se com ratazanas mal vestidas e mal amanhadas? Importava, sem dúvida, era que fossem competentes, que tratassem os livros com carinho e amor, que amassem as palavras, o toque nas encadernações, o cheiro a tinta quando ainda acabados de chegar das gráficas. Que, acima de tudo, prezassem as ideias, as histórias, as boas histórias. E quem dizia que esta «doutora» não era assim?
Dom Quixote apressou-se a voltar à terra e a pôr de lado esses pensamentos, até porque, como lhe fizera transparecer a secretária da doutora, esta não teria muito tempo disponível em agenda. Apresentou-se, ao que ela respondeu ser isso escusado pois que o conhecia bem e a sua história dos últimos dias era conhecida de todo o público em geral, e passou a enumerar os motivos da sua presença ali. Contou, uma vez mais, a sua indignação pelos sucessos havidos com a história do livro de Etelvina, valeu-se, em jeito de apresentação curricular, dos inúmeros conseguimentos editoriais a que dera imagem, chegou, enfim, onde queria. Desejava saber se a Ideias Fantásticas – de que, confessava, ainda tinha ouvido falar muito pouco – não estaria aberta a contar com o seu trabalho, com os seus conhecimentos, com a sua experiência. E mais disse, fazendo uso de um termo técnico que vinha ouvindo nos últimos tempos, para assim dar um ar de quem estava por dentro do espírito dos tempos, tratando-se, por conseguinte, de um homem que, apesar da sua provecta idade, não deixava de acompanhar o avanço das ideias e dos tempos: «Estou convicto de que poderia ser uma mais-valia para a empresa.»
A doutora ouviu-o com grande tranquilidade e paz de espírito (Dom Quixote reparou que ela deveria ser uma praticante daquelas terapias ocidentais de nomes estranhos, que gozam de grande popularidade entre as classes altas urbanas nos dias de hoje, pois em cima da secretária estava um livro em cuja capa se via uma mulher pendurada de um tecto de cabeça para baixo, mas com grande ar de apaziguamento interior...) e, mal ele terminou, tomou a palavra. Tentou ser curta e directa e foi assim que se dirigiu ao nosso bravo cavaleiro em busca de emprego: «Meu querido amigo, compreendo bem a sua posição, a todos os títulos lastimáveis... Olhe, deixe-me primeiro apresentar-lhe a nossa editora, pois como disse e bem não conhece e isso apenas e certamente porque é muito recente no mercado. Vou-lhe contar: eu sou licenciada em Comunicação e Marketing e depois de concluído o meu curso, que adorei, cheguei a um mercado na área que estava super lotado. Pois então, o que é que eu fiz? Comprei um livro de auto-ajuda, para tentar chegar a uma decisão quanto à minha vida e que destino dar-lhe. Comecei a ler aquilo e depois de muito esforço de leitura achei que ali havia ideias a mais. Muito, muito palavreado, quando eu só queria uma dica! Foi então que ao olhar duas e três vezes para o livro que tinha comprado me dei conta que o Livro era um produto muito mal trabalhado entre nós, e foi então que tive uma ideia fantástica...»
Neste ponto do seu discurso, a doutora fez uma pequena pausa deliberadamente. Tudo para ver se o seu interlocutor tinha alcançado o ponto em que ela chegara à descoberta do nome da editora. «Ideia fantástica...» Como se Dom Quixote nem tugisse nem mugisse a tal respeito, ela continuou: «Prontos, foi aí! (a grafia de «prontos», com um s no final, transcrevemo-la tal qual a doutora – e muitos outros doutores hoje e dia – a empregou) Foi quando tive a ideia fantástica de me dedicar ao sector que resolvi adoptar a marca Ideias Fantásticas. Não, não foi uma coisa que tivesse feito de um dia para o outro, antes de a pôr em prática ainda fui trabalhar como Relações Públicas para uma multinacional ligada ao mundo das revistas e do Livro Oculto, e foi aí, durante essa experiência, que comecei, aos poucos e poucos, a percepcionar exactamente que rumo e que áreas de desenvolvimento queria imprimir ao sector do livro. Olhe, uma coisa vi logo, vi que os livros que o mercado oferecia eram produtos completamente desadequados das necessidades dos leitores e do público. Ai, as pessoas queriam outras coisas, coisas mais alegres, mais divertidas, histórias de vida, sobretudo, queriam histórias de vida, reais, palpáveis, tais como as delas, histórias em que se pudessem rever.»
Dom Quixote, ouvindo toda aquela lengalenga, ficando, nomeadamente, sem perceber qual a ligação entre o referido mundo das revistas e do Livro Oculto com a literatura, ia-se remexendo na sua cadeira e tornava-se-lhe cada vez mais penoso ali continuar, até porque já estava a ver para onde a conversa afunilava. Mas a doutora, que estava cheia de trabalho, lá continuava, contente por ter quem lhe ouvisse a história de vida, também ela, a sua, uma história de sucesso, uma história que até poderia ter lugar num livro, quem sabe... Depois de debitar as suas luminosas ideias a respeito do mercado livreiro, a doutora passou a concretizar, enumerando, alguns dos seus primeiros sucessos no domínio das vendas. «O nosso primeiro grande best seller foi a história surpreendente da Luisinha Ratita Cunha. Não sei se o Dom Quixote a conhece, talvez sim, a mais nova das irmãs Ratita Cunha, que casou com um médico e que depois veio a ser agredida fisicamente por ele indo parar ao hospital. Prontos, eu própria quando soube da história, fiquei escandalizada, e tomei a iniciativa, até como mulher e por uma questão de solidariedade, de ir falar com ela convencendo-a a pôr em livro toda a sua história». Foi um sucesso imediato. Para mais, conseguimos juntar às palavras fotos fantásticas de quando ela esteve no hospital e de logo a seguir, quando fez uma sessão fotográfica de estúdio – que nós patrocinámos – com um grande fotógrafo da praça. O público adorou e na verdade ficou um trabalho muito bonito. Porque nós conferimos dignidade àquelas imagens, ao contrário dos jornais, que tratam estas matérias com desprezo e sem qualidade gráfica nenhuma, nós fizemos um trabalho muito digno, a própria Luisinha adorou ver-se naquelas imagens e confessou-me mesmo que ver-se assim tão bela, apesar de cheia de nódoas negras e de um braço engessado, aquilo a ajudou a suportar as dores.»
Dom Quixote estava quase petrificado a ouvir tudo aquilo e mais ficou quando ouviu da boca da doutora os números de vendas, 50 mil exemplares esgotados numa semana. E calar-se com os seus best sellers? Qual quê!; enunciou depois a história do apresentador de futebol que relatou em livro as suas dificuldades e a discriminação de que foi alvo no seu meio profissional, na classe e no mundo desportivo, depois de ter confessado, numa edição em directo, que era gay, solidarizando-se assim com o caso de um futebolista que tinha sido expulso da sua equipa depois de apanhado nos balneários, antes de uma final europeia, com um dos bandeirinhas; passou de seguida à história de uma tia de Cascais que, participante outrora num concurso televisivo, viu a sua vida familiar ir por água abaixo quando o seu marido a trocou pela criada ucraniana e depois de ela o ter espremido até ao último cêntimo, após o que desapareceu com as pratas lá de casa, entrou numa crise depressiva que o levou, num momento de crise mais acentuado, a copular com o seu caniche. Pimpinita passou então por maus momentos e resolveu expurgar tudo num livro «maravilhoso, de uma entrega sublime», contando em «O Calvário de Pimpinita» (de subtítulo «Pitchi - O Prazer da Maldade») como, a partir de então, e depois de muitas consultas a médicos, a especialistas de dentro e de fora do país, tudo fez para conseguir restituir um pouco de alegria à vida do seu caniche que ficara «imensamente muito» traumatizado com a violação de que fora vítima, tanto mais que a sua única experiência sexual até àquele doloroso momento fora com ejaculações precoces com um cãozinho de pelúcia que ela lhe oferecera quando cumprira um ano de idade...
A história triste do caniche Pitchi fora demais para Dom Quixote. Farto que estava de ouvir as ideias fantásticas da doutora à sua frente, o cavaleiro levantou-se, pediu desculpa e afirmou que se retirava pois lhe parecia que, manifestamente, não se revia no tipo de histórias que achava deviam interessar à literatura e ao «negócio» dos livros. Pegando na sua lança e no elmo, Dom Quixote retirou-se então do gabinete da doutora e de mais um capítulo deste livro, uma vez mais sem definir linhas de rumo para a sua vida. A vida nos livros não é fácil, nem para os grandes cavaleiros da palavra. Teria de ir pregar para outra freguesia. Desistir é que não estava nos seus planos. Desistir só mesmo perante a morte, mas como esta ainda não desse mostras de o vir atazanar ou bater-lhe à porta, seguiria em frente, pelos seus ideais. De qualquer forma, no momento a verdade é que não dispunha de porta onde a morte pudesse vir bater-lhe... Tanto melhor para ele, tanto pior para ela.

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