sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Capítulo XIII

XIII.

Os tops não mentem. Os escritores urbano-light-pop e os ultra-light-desportivos. O Ensaio Sobre a Ceifeira. Vi o meu nome num livro e chorei. Um telefonema de uma câmara municipal. Confesso que Vi(vi). Os anseios do Salvador.



Os tops não deixavam mentir quem quisesse depreciar o talento de Vi Prazeres. Eram, de resto, puro cristal alcandorando-a a primeiro lugar nas tabelas de vendas. Etelvina, agora simplesmente Vi, continuava no topo das preferências dos leitores portugueses. Crise? Qual crise? De leitura? É como se vê? Os números, uma vez mais, falavam por si, galopando semana após semana. Tudo corria sobre rodas e numa grande lufa-lufa. Vi era um fenómeno, um best seller que envergonharia os escritores candidatos ao Nobel, que deixaria a pensar na vida até os escritores best sellers que a tinham antecedido e cujos títulos se arrastavam agora em lugares mais modestos nas tabelas de vendas. A coisa chegou ao ponto de num programa televisivo uma escritora light ter acusado a escrita de Vi de ser ultra-light e de não ter o mínimo de exigências estilísticas. Um crítico dirimiu mais tarde o assunto num artigo de jornal, separando as águas e considerando a primeira como fazendo parte dos escritores «urbano-light-pop», e Vi relegando-a para o lote dos «ultra-light-desportivos».
Verdade, verdadinha é que poucos títulos rivalizavam com o seu, só um podendo alcandorar-se a título de concorrente. Chamava-se «Ensaio Sobre a Ceifeira» e era de um autor galardoado cujos livros, fortemente politizados e críticos, suscitavam por regra grande polémica e brado. Quem andava também nas nuvens de contentamento era a editora, a também rebaptizada Dom Chicote, que esfregava as mãos à chegada de cada reporting de vendas. A administração chamara mesmo ao andar de cima da editora, onde tinha escritório, o director editorial para lhe dar os parabéns. Este agradeceu e deixou em cima da mesa a possibilidade de se retomar a política de prémios por objectivos atingidos...
Quanto a Vi, quando o director editorial a voltou a ver foi para acertarem datas e agenda quanto a novas iniciativas promocionais, de acordo já com o estipulado e sugerido pela equipa da Imagem Mais. Também já instruída pelas respectivas profissionais, no modo de aparecer em público, Vi chegou ao gabinete do director editorial com um livro debaixo do braço, o que muito o espantou, pois não lhe constava que ele gostasse de leitura. «Ora, ora, cara autora, como está? Então, o que andamos a ler? Não me diga que é o seu próximo livro...?», gracejou. «Ah, não, ainda não, é só um livro que vinha com uma revista que me entrevistou. Como as meninas do marketing me disseram para ter sempre um livro comigo, porque acham que isso é uma imagem de marca de um escritor, eu achei por bem trazer este. Acho estranho é não ter nada escrito... Só diz na capa “Livro em Branco”!!! Não percebo, mas olhe, sempre dá para o efeito e sempre posso rabiscar uma ideia ou outra.» O director achou que sim, que estava muito bem, que era óptimo para a sua imagem e passou ao que ali a trazia, notando também que Vi já não se fazia acompanhar do seu séquito de capangas protectores – como ela explicou, as meninas do marketing tinham-lhe dito que um bastava e bem disfarçado, de preferência, pois ter tantos homens de preto à sua volta criava um fosso entre si e o público, o que «não se desejava, pois não, logo agora que a sua carreira mal estava a começar?»
Sessões em escolas, «sem ter de ir ao quadro», sessões em livrarias, «só para autografar», uma homenagem de um clube desportivo que tinha um leão na insígnia, um convite para escrever um conto para uma revista do coração, um convite para uma palestra subordinada ao tema da «Escrita Delirante», eram muitas e diversificadas as propostas que o director editorial tinha para Vi. Antes, antes deveria começar por assinar algumas T-Shirts com a sua fotografia estampada que seriam ofertadas num concurso literário ao qual a Dom Chicote dera o nome «Vi o meu nome num livro e chorei». A própria Vi, ao saber da novidade, choramingou timidamente, ao que o director editorial lhe facultou um lencinho de papel. «Ai, minha querida autora, se é para chorar, chore tudo agora que ainda não lhe disse o melhor. Ouça, ouça bem, recebemos um telefonema de uma Câmara Municipal... querem que você se desloque à cidade para que aí participe numa residência de escritores com vista à elaboração de um livro de contos sobre a experiência. Hã? Que tal?» Vi ficou algo perturbada com a notícia, pois ainda não se acostumara àquelas vidas de escritores. «Ai, confesso-lhe, nunca pensei que ser escritor fosse tão extenuante. E em que hotel é que vou ficar? Sabe quantas malas posso levar? E o meu escritor-fantasma, vai comigo para escrever o conto?»
O director editorial disse-lhe que não, que daquela vez não porque senão o fantasma dar-se-ia a conhecer e deixaria de o ser, pelo que teria de ser ela a descartar uma qualquer historieta que eles de certeza compravam a coisa, comprariam tudo tal era o sucesso do seu nome no mundo das letras. Vendo que Vi se assustara com a ideia de ter de engendrar e, pior, escrever um conto, o director editorial pediu-lhe que se acalmasse, dizendo-lhe que tinha a certeza de que ela saberia estar à altura do problema. Ela, ao contrário, dizia-lhe, «olhe que não, olhe que não, ai, como é que vai ser? Mas... e o escritor-fantasma, ele não podia ir fazendo-se passar por meu acompanhante?» O director disse que isso estava fora de questão, pois não era líquido que quem quer que fosse de bom senso e um palmo de testa acreditasse que um rapaz tão deslavado pudesse ser o amante, isto é, o companheiro de Vi. Isto dizendo e observando que a tremedeira não lhe passava, passou a um outro assunto que sabia iria encantar a sua autora e acalmá-la. Disse-lhe que era um convite algo sui generis – ela perguntou o que era isso dos «Genesis» serem para ali chamados ao assunto, que gostava mais era do Robbie Williams –, e concretizou: «Uma revista masculina de grande circulação quer fazer uma sessão fotográfica consigo. Uma coisa simples, querem-na em lingerie às riscas azuis e brancas, em cima de um cavalo e com um chicote na mão. Fantástico, não? Não sei se está a alcançar o impacto promocional da ideia? Não está contente? Tenho de dar a mão à palmatória, o preço que a Imagem Mais nos tem cobrado tem valido bem a pena, aquelas meninas têm jeito para o métier, não acha?» Vi, entusiasmada, respondeu apenas: «Ai, senhor director, eu meter, não me meto com ninguém, você sabe que eu não gosto de falar da vida dos outros. Deus me livre, já tenho problemas que sobrem na minha santa vida!»
«E o novo livro? Tem pensado no assunto?», continuou o animado director, sempre com mais e mais ideias a jorrarem-lhe da cabeça. «Pois, pois, temos que pensar nisso, minha querida, temos que pensar nisso não tarda. Sabe que isto da edição, às vezes funciona por modas, há que aproveitar quando caímos em sorte nas graças do público. Olhe, se quer que lhe diga eu já não tenho dormido a pensar noutra coisa e... e isto fica em sigilo, fica aqui entre nós, já pensei num título!», sussurrou-lhe esta última parte ao ouvido. Ao que ela, nos mesmos afagos de voz quase sumida, lhe pergunta chegando-se a ele. «Confesso Que Vivi», disse-lhe ele logo abrindo um grande sorriso, assim como quem tivesse encontrado nova pólvora. E explicou-lhe, sempre em tom menor: «Assim, “Confesso Que Vivi”, não sei se está a compreender, com o segundo vi entre parênteses, o que dá uma dupla leitura, hã, está a ver? Eu escrevo, é melhor, olhe: Confesso Que Vi(vi). Hã?... Diga lá se não tem aqui quem pense por si, quem zele pelos seus interesses, pelo seu futuro? Dê cá um beijinho, depois a P’ala liga-lhe a dizer horários e agenda para tudo o que conversámos.» E assim se despediu de Vi, tanto mais que o seu telemóvel tinha começado a tocar. Vi saiu então do escritório algo baralhada com as perspectivas tão precoces de um novo livro, de uma agenda tão completa e tão exigente, sobretudo na parte do conto...
«Estou? Sim... sim, sim. Quem fala?», o director atendeu o telemóvel que não se calava com a sua musiquinha polifónica e estridente de um êxito recente da Britney Spears, de quem também gostava para além dos fados. «Quem?», insistiu. E do outro lado da linha: «O Fantasma, sou eu, o Fantasma!» «Epá, Salvador, és tu? Que susto já me estavas a pregar com essa vozinha de... de fantasma, justamente! Epá, onde é que tu andas? Agora que te ouço é que me dou conta que desapareceste nos últimos dias! Têm-me dito que não tens posto cá os coiratos! A malta precisa de ti aqui, não é a bronzear o corpinho. Ouve lá, agora que há trabalhinho de sobra, com o sucesso da Vi e dos outros novos autores que temos em carteira, agora é que tu desapareces e te pões a milhas? Salvador, deixa-te de brincadeiras, onde é que tu...», dizia o director quando o Fantasma o interrompe: «Mais calminha, director, e tento nas palavras. Mais: o Salvador já não existe, morreu, kaput! Agora nasceu o Fantasma, o outro, o Salvador da pátria, cansou-se. Cansou-se de andar a trabalhar para o sucesso dos outros, para que os outros vendam livros que não escreveram, para que sejam eles, e não o Fantasma, e não eu, a aparecer nas revistas e nos jornais, nas televisões até. Por isso, director, calma nas palavras.»
Quando o director, embasbacado, tentou dizer-lhe de novo qualquer coisa, logo ele o interrompeu: «Schhhh... Quem fala sou eu, agora quem fala sou eu. Ouça bem, para começar quero dizer-lhe que se acabaram os livros dos outros escritos por mim. Em segundo lugar, considere-me como o seu novo autor... Sim, pode dizê-lo se quiser, um novo escritor nasceu. José Fantasma passa agora a ser o meu nome de guerra, o nome que assinarei enquanto autor. Tenho coisas na gaveta, aquilo que sempre quis escrever e não pude mostrar...» E a muito custo, lá conseguiu o director contrapor, elevando a voz: «O quê? Mas, ó Zé, tu endoideceste? Eu devia ter reparado, andavas demasiado branco, aquilo não podia ser só fantasmagoria... Era certamente qualquer parafuso que se te tinha soltado aí dentro da cabecinha, não? Ouve lá, ó Zé, epá, então tu com esse aspecto de cadáver queres ser um best seller? Onde é que tu tens um palminho de cara para seres autor? Tu não vês que um autor hoje em dia tem de ter muito mais para dar do que os seus livros? Tem de ter uma figura, boa apresentação, uma história para contar, algo a dizer que interesse às massas? Ou tu, por acaso, és vedeta de televisão? Epá, ó Zé, vem para o escritório que a gente conversa com calma, tu podes continuar a escrever, não há dúvidas que sabes o que é a escrita, epá, tudo bem, o.k., mas daí a dares o salto para as capas vai um bocado, não achas?»
O Fantasma, que apesar do seu aspecto algo assustador tinha uma alma frágil e espírito facilmente maleável, aquilo ouvindo desatou num pranto no outro lado da linha e acabou por desligar em soluços. O director, ainda meio embasbacado com a conversa, deixou-se cair no seu cadeirão, levou às mãos à cabeça e suspirou. Só me faltava esta, um fantasma a querer assustar-me! «Olha, e vai daí se calhar até era uma boa ideia promocional, lançar um livro do escritor-fantasma... Não, só se fosse o escritor-fantasma da casa de algum dirigente desportivo ou de alguma vedeta do jet set», pensou com os seus botões que desapertou junto ao colarinho para melhor respirar.

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