X.
Estratégias de sobrevivência. Um desígnio: caucionar a boa literatura. O desaparecimento dos pequeninos Dom Quixote. Vai-se a ver, o gajo veio-se embora com uma indemnização de fazer inveja a qualquer admnistradorzeco de Estado!
Depois de se ter desenvencilhado do empregado da EMEL que queria multar e bloquear o seu Rocinante, Dom Quixote pôs-se de novo ao caminho pela cidade de Lisboa. Desceu até à linha do eléctrico e metendo para a esquerda foi parar ao miradoiro de Santa Luzia. Como estivesse cheio de fome e, por conseguinte, sem energias, sou eu, narrador anónimo, quem de novo pega na escrita para dar conta das suas andanças, pelo menos até ao momento em que ele se dê conta da mudança.
Pois chegou ele ali, ao dito miradoiro, donde se avista toda a largura do Tejo e à esquerda o Panteão Nacional, e a verdade é que nem forças tinha para admirar a paisagem. Dormira mal, sonhara com fantasmas, o chão era deveras incómodo para os seus ossos, pelo que só desejava mesmo era aferroar dente numa bela sanduíche e verter pela goela líquido que prestasse, sumo ou leite, álcool não, agradecia, pois que não era hora, local nem próprio de cavaleiro, para mais com decisões importantes a tomar. Porém, uma vez mais um problema se lhe punha, não tinha mais dinheiro. Que fazer então?
Não teve de pensar muito para ter uma excelente ideia. No dia anterior reparara, ao passar na baixa lisboeta, ali pela Rua Augusta, que dois ou três indivíduos ganhavam a vida de uma estranha maneira, fazendo de estátuas! Se aquilo lá era modo de vida? Estar ali, assim, sem tugir nem mugir, a olhar para o boneco, à espera que lhes caíssem umas moedas à frente, numa latinha posta no chão! Curiosamente, Dom Quixote viu que a coisa até resultava, já que à medida que por ali ia passando na direcção da Sé Velha pôde ouvir por diversas vezes o tilintar de moedas que caíam nas latas. E foi ao pensar nisso que se bem o pensou, iluminado pelo pensamento, melhor o fez! Ora não era ele a figura mais do que indicada para isso, para a encenação da estátua perfeita, muito mais realista até do que os outros? Era, sem dúvida que era, pelo que não se fez rogado; e logo estacou ali em cima da garupa numa pose estudada de cariz dramático. O Rocinante alçando a perna esquerda dianteira e empinando as orelhas, esticando o rabo, e ele levantando o queixo e o braço direito com a lança, meneando ares de grande coragem e valentia. Não tardou muito que começasse a ouvir o som das moedas a cair na pedra à sua frente. E tanto sucesso fez enquanto estátua de si próprio que, passada uma boa meia hora, já dispunha de euros e cêntimos suficientes para um belo repasto. A que logo se predispôs, enchendo a barriga e sobrando mesmo para o seu fiel companheiro.
Depois, como o sol quisesse pôr-se a pino e com modos de desnudar as gentes, Dom Quixote deixou-se ficar por ali à sombra, numa das mesas da esplanada, a beber uma bica e a pensar na vida e no que fazer. Uma coisa era certa, tinha que voltar a arranjar emprego, pois andar sempre à rasca para desencantar uma refeição não era sistema que lhe conviesse, sequer pôr-se a fazer de estátua, logo ele que era um homem de movimento, de acção. A verdade é que depois de muito matutar chegou a uma simples conclusão: só sabia fazer uma coisa, só sabia caucionar a boa literatura. Foi uma conclusão a que se seguiu uma outra: haveria de ir bater às portas de outras editoras e alguma delas iria, por certo, saber fazer bom uso dos seus créditos e méritos editoriais. Sim, porque ele tinha um passado, tinha toda uma história ao serviço da defesa da literatura. Decididamente, só tinha motivos para acreditar no futuro. Vistas bem as coisas, não era um novato qualquer, não era um qualquer herói de trazer por casa que se lembrasse, de um dia para o outro, de editar livros, não, ele era o famoso Dom Quixote e sob a sua lança quantos e quantos leitores já não se tinham estreado no mundo das letras? Quantos e quantos não haviam já alcançado, junto à sua figura, um lugar no panteão dos vates? «Meu velho», dizia ele para consigo, animando-se à falta de quem o fizesse, «nada temas, os livros aguardam o teu contributo, o futuro irá com certeza sorrir-te!»
Mais animado com as considerações que no seu íntimo tecia, determinou-se a não mais perder tempo e partir em busca de uma nova editora que o acolhesse e aos seus préstimos profissionais. Não tinha sequer um currículo consigo, mas isso também não interessava. Iria de porta em porta e certamente que em alguma delas encontraria nova casa, oferecendo, a quem quisesse e soubesse aproveitar, toda a sua experiência acumulada, todo o seu know-how e prestígio. E assim galopou dali para fora descendo de novo ao coração da cidade, fintando o trânsito que uma vez mais se avolumava e comprimia em filas, buzinadelas, gases, imprecações avulsas e o demais burburinho citadino.
Como é sabido, o meio editorial é pequenino, os editores conhecem-se todos, viajam juntos para feiras no estrangeiro, guardam na memória a alegria das patuscadas nocturnas dessas deslocações, cotejam-se uns aos outros e à vista desarmada, para depois, pelas costas, sub-repticiamente se apunhalarem. Ora um se antecipa e compra os direitos de autor que o outro pretendia, ora outro esconde dos demais o seu calendário de edições previstas, ora um critica as traduções de gosto duvidoso do outro, ora um regozija com as críticas negativas aos autores dos outros, ora estes desdenham o grafismo daquele, daqueloutro e dos mais que vierem à contenda. É um salve-se quem puder bem expresso nas duas associações de editores e livreiros que o pequeno país conhece e que, regra geral, vem à baila das redacções de imprensa aquando de cada penosa organização das feiras do livro nas principais cidades do adro.
Dom Quixote, tais os seus créditos, sempre passara, ou cavalgara, à margem dessas questiúnculas intestinais, como se sabe directamente ligadas aos egos, de modo que se dava bem com gregos e troianos, com beltrano e sicrano. A todos conhecia e todos o conheciam. E se, no seu íntimo, ele nem a todos tinha em consideração, a verdade é que, e ao contrário, todos tinham consideração pela sua figura. Meio louco ou não, velho ou não, indistinto no negro da sua efígie ou não, ultrapassado e demodé ou não, a verdade é que ele era um senhor e uma personalidade incontornável no mundo dos livros e da palavra escrita. Era nisto e nestes pensamentos que o Dom Quixote se fiava ao trotar pelas ruas de Lisboa. Contudo, ao passar pela montra de uma livraria e ao percorrer com os olhos alguns livros que nela se encontravam, não conseguiu conter uma lágrima furtiva quando reparou que, em resultado da sua fuga, os livros onde antes aparecia já não tinham a sua triste figura nas capas. Como se por magia, todos os pequeninos Dom Quixote se tinham apagado das capas, deixando os livros como que órfãos de um pai editorial.
Mais incrédulo e triste ficou o cavaleiro quando viu que o livreiro em causa entrava pela vitrina adentro recolhendo à pressa todos os exemplares que se encontravam sem chancela editorial. Certamente que alguém da editora já teria informado os agentes do sector, certamente que, contra todas as directivas emanadas do racionalismo frio do director editorial, alguém, antes do tempo, batera com a língua nos dentes e a notícia já chegara às montras! O vazio que então invadiu o peito de Dom Quixote foi ao ponto de lhe fazer aflorar umas lágrimas fugazes ao canto dos olhos. Dando ares de homem valente e à antiga, de homem que não chora, foi-se dali ainda com mais disposição a ver-se de novo no lugar a que merecia por direito próprio, enfunando peito e alteando barbas nas capas de livros, de belos e bons livros, de preferência.
Quando, depois daquele triste espectáculo, Dom Quixote julgou que já nada o atiraria abaixo, animicamente falando, entenda-se, eis que o destino e língua comprida de bocas delatoras lhe prega nova partida, desta feita, passando ele frente a um quiosque. Num dos jornais, ali estava, em grandes parangonas, a notícia da sua fuga. Fuga, sim, era disso que se falava naquela capa... Naquela? Não só naquela, mas também na outra ao lado, e na outra e na outra e na outra! Todas as capas vinham com a notícia do desaparecimento de Dom Quixote, uma verdadeira «caixa» que vinha fazer estremecer os alicerces do pacato meio editorial português. Num jornal lia-se «O Cavaleiro Inexistente», numa clara alusão ao livro homónimo do escritor italiano Italo Calvino. Outros preferiam o trocadilho: «Dom Quixote em fuga; do cavaleiro nem sombra!» E lá vinha, logo abaixo da sua reprodução, a fotografia do director editorial, sorridente, apesar de tudo, não aparentando tristeza de maior. E nas poucas linhas que se podiam ler junto à sua imagem as seguintes palavras: «No mundo de hoje não há insubstituíveis. Como se sabe, de Espanha nem bom vento nem bom casamento, eu diria mais, nem cavaleiro que traga assento...» Dom Quixote leu e engoliu em seco.
À sua volta, sem que nisso tivesse reparado, amontoara-se um grupinho de curiosos que tendo lido as notícias e verificado que era o protagonista das «gordas» quem ali estava se deixou ficar a ver como aquele reagia, o que fazia ou dizia. E já uns se adiantavam no palpite a respeito do caso, comentando-o com graçolas ou, pura e simplesmente, no que é bem português, batendo ainda mais no ceguinho, duvidando da sua moral. «Hombre, quieque estás esparando? Que te vás a casa que es muy melhor, entonces no sabes que Espanha é que está a diar? Esto por aqui son todos uns cabrones, si esses que eston en el govierno, e os de las empresas la misma cosa... um hombre iega aos sessenta e já lo quieren por en la pratelera a receber pensiones de miséria...», dizia um que trazia colado à lapela um autocolante da CGTP. Já outro, mais desconfiado e sabichão, dizia para aquele como quem não quer a coisa: «Epá, ‘tás praí preocupado com esse gajo, que é mais um espanhol com’osotros, só vêm para cá mamar o deles. Vai-se a ver e o gajo veio-se embora com uma indemnização de fazer inveja a qualquer administradorzeco de empresas do Estado!» O dono do quiosque concordava com este último e já arengava: «Este é que sabe falar, então vocês não vêem que este gajo é como todos, põe-se para aqui a ver o jornal, a ler o que lhe apetece e depois comprar ‘tá quieto!» E já se preparava um outro para perorar a todo este respeito, animando-se os ares e os ânimos, quando Dom Quixote achou por bem trotar dali para fora, deixando atrás de si aquela gente a discutir sobre as vantagens e desvantagens de uma segunda ocupação espanhola. Já tinha visto tudo, já tinha ouvido tudo, já só queria resolver o seu futuro.
Estratégias de sobrevivência. Um desígnio: caucionar a boa literatura. O desaparecimento dos pequeninos Dom Quixote. Vai-se a ver, o gajo veio-se embora com uma indemnização de fazer inveja a qualquer admnistradorzeco de Estado!
Depois de se ter desenvencilhado do empregado da EMEL que queria multar e bloquear o seu Rocinante, Dom Quixote pôs-se de novo ao caminho pela cidade de Lisboa. Desceu até à linha do eléctrico e metendo para a esquerda foi parar ao miradoiro de Santa Luzia. Como estivesse cheio de fome e, por conseguinte, sem energias, sou eu, narrador anónimo, quem de novo pega na escrita para dar conta das suas andanças, pelo menos até ao momento em que ele se dê conta da mudança.
Pois chegou ele ali, ao dito miradoiro, donde se avista toda a largura do Tejo e à esquerda o Panteão Nacional, e a verdade é que nem forças tinha para admirar a paisagem. Dormira mal, sonhara com fantasmas, o chão era deveras incómodo para os seus ossos, pelo que só desejava mesmo era aferroar dente numa bela sanduíche e verter pela goela líquido que prestasse, sumo ou leite, álcool não, agradecia, pois que não era hora, local nem próprio de cavaleiro, para mais com decisões importantes a tomar. Porém, uma vez mais um problema se lhe punha, não tinha mais dinheiro. Que fazer então?
Não teve de pensar muito para ter uma excelente ideia. No dia anterior reparara, ao passar na baixa lisboeta, ali pela Rua Augusta, que dois ou três indivíduos ganhavam a vida de uma estranha maneira, fazendo de estátuas! Se aquilo lá era modo de vida? Estar ali, assim, sem tugir nem mugir, a olhar para o boneco, à espera que lhes caíssem umas moedas à frente, numa latinha posta no chão! Curiosamente, Dom Quixote viu que a coisa até resultava, já que à medida que por ali ia passando na direcção da Sé Velha pôde ouvir por diversas vezes o tilintar de moedas que caíam nas latas. E foi ao pensar nisso que se bem o pensou, iluminado pelo pensamento, melhor o fez! Ora não era ele a figura mais do que indicada para isso, para a encenação da estátua perfeita, muito mais realista até do que os outros? Era, sem dúvida que era, pelo que não se fez rogado; e logo estacou ali em cima da garupa numa pose estudada de cariz dramático. O Rocinante alçando a perna esquerda dianteira e empinando as orelhas, esticando o rabo, e ele levantando o queixo e o braço direito com a lança, meneando ares de grande coragem e valentia. Não tardou muito que começasse a ouvir o som das moedas a cair na pedra à sua frente. E tanto sucesso fez enquanto estátua de si próprio que, passada uma boa meia hora, já dispunha de euros e cêntimos suficientes para um belo repasto. A que logo se predispôs, enchendo a barriga e sobrando mesmo para o seu fiel companheiro.
Depois, como o sol quisesse pôr-se a pino e com modos de desnudar as gentes, Dom Quixote deixou-se ficar por ali à sombra, numa das mesas da esplanada, a beber uma bica e a pensar na vida e no que fazer. Uma coisa era certa, tinha que voltar a arranjar emprego, pois andar sempre à rasca para desencantar uma refeição não era sistema que lhe conviesse, sequer pôr-se a fazer de estátua, logo ele que era um homem de movimento, de acção. A verdade é que depois de muito matutar chegou a uma simples conclusão: só sabia fazer uma coisa, só sabia caucionar a boa literatura. Foi uma conclusão a que se seguiu uma outra: haveria de ir bater às portas de outras editoras e alguma delas iria, por certo, saber fazer bom uso dos seus créditos e méritos editoriais. Sim, porque ele tinha um passado, tinha toda uma história ao serviço da defesa da literatura. Decididamente, só tinha motivos para acreditar no futuro. Vistas bem as coisas, não era um novato qualquer, não era um qualquer herói de trazer por casa que se lembrasse, de um dia para o outro, de editar livros, não, ele era o famoso Dom Quixote e sob a sua lança quantos e quantos leitores já não se tinham estreado no mundo das letras? Quantos e quantos não haviam já alcançado, junto à sua figura, um lugar no panteão dos vates? «Meu velho», dizia ele para consigo, animando-se à falta de quem o fizesse, «nada temas, os livros aguardam o teu contributo, o futuro irá com certeza sorrir-te!»
Mais animado com as considerações que no seu íntimo tecia, determinou-se a não mais perder tempo e partir em busca de uma nova editora que o acolhesse e aos seus préstimos profissionais. Não tinha sequer um currículo consigo, mas isso também não interessava. Iria de porta em porta e certamente que em alguma delas encontraria nova casa, oferecendo, a quem quisesse e soubesse aproveitar, toda a sua experiência acumulada, todo o seu know-how e prestígio. E assim galopou dali para fora descendo de novo ao coração da cidade, fintando o trânsito que uma vez mais se avolumava e comprimia em filas, buzinadelas, gases, imprecações avulsas e o demais burburinho citadino.
Como é sabido, o meio editorial é pequenino, os editores conhecem-se todos, viajam juntos para feiras no estrangeiro, guardam na memória a alegria das patuscadas nocturnas dessas deslocações, cotejam-se uns aos outros e à vista desarmada, para depois, pelas costas, sub-repticiamente se apunhalarem. Ora um se antecipa e compra os direitos de autor que o outro pretendia, ora outro esconde dos demais o seu calendário de edições previstas, ora um critica as traduções de gosto duvidoso do outro, ora um regozija com as críticas negativas aos autores dos outros, ora estes desdenham o grafismo daquele, daqueloutro e dos mais que vierem à contenda. É um salve-se quem puder bem expresso nas duas associações de editores e livreiros que o pequeno país conhece e que, regra geral, vem à baila das redacções de imprensa aquando de cada penosa organização das feiras do livro nas principais cidades do adro.
Dom Quixote, tais os seus créditos, sempre passara, ou cavalgara, à margem dessas questiúnculas intestinais, como se sabe directamente ligadas aos egos, de modo que se dava bem com gregos e troianos, com beltrano e sicrano. A todos conhecia e todos o conheciam. E se, no seu íntimo, ele nem a todos tinha em consideração, a verdade é que, e ao contrário, todos tinham consideração pela sua figura. Meio louco ou não, velho ou não, indistinto no negro da sua efígie ou não, ultrapassado e demodé ou não, a verdade é que ele era um senhor e uma personalidade incontornável no mundo dos livros e da palavra escrita. Era nisto e nestes pensamentos que o Dom Quixote se fiava ao trotar pelas ruas de Lisboa. Contudo, ao passar pela montra de uma livraria e ao percorrer com os olhos alguns livros que nela se encontravam, não conseguiu conter uma lágrima furtiva quando reparou que, em resultado da sua fuga, os livros onde antes aparecia já não tinham a sua triste figura nas capas. Como se por magia, todos os pequeninos Dom Quixote se tinham apagado das capas, deixando os livros como que órfãos de um pai editorial.
Mais incrédulo e triste ficou o cavaleiro quando viu que o livreiro em causa entrava pela vitrina adentro recolhendo à pressa todos os exemplares que se encontravam sem chancela editorial. Certamente que alguém da editora já teria informado os agentes do sector, certamente que, contra todas as directivas emanadas do racionalismo frio do director editorial, alguém, antes do tempo, batera com a língua nos dentes e a notícia já chegara às montras! O vazio que então invadiu o peito de Dom Quixote foi ao ponto de lhe fazer aflorar umas lágrimas fugazes ao canto dos olhos. Dando ares de homem valente e à antiga, de homem que não chora, foi-se dali ainda com mais disposição a ver-se de novo no lugar a que merecia por direito próprio, enfunando peito e alteando barbas nas capas de livros, de belos e bons livros, de preferência.
Quando, depois daquele triste espectáculo, Dom Quixote julgou que já nada o atiraria abaixo, animicamente falando, entenda-se, eis que o destino e língua comprida de bocas delatoras lhe prega nova partida, desta feita, passando ele frente a um quiosque. Num dos jornais, ali estava, em grandes parangonas, a notícia da sua fuga. Fuga, sim, era disso que se falava naquela capa... Naquela? Não só naquela, mas também na outra ao lado, e na outra e na outra e na outra! Todas as capas vinham com a notícia do desaparecimento de Dom Quixote, uma verdadeira «caixa» que vinha fazer estremecer os alicerces do pacato meio editorial português. Num jornal lia-se «O Cavaleiro Inexistente», numa clara alusão ao livro homónimo do escritor italiano Italo Calvino. Outros preferiam o trocadilho: «Dom Quixote em fuga; do cavaleiro nem sombra!» E lá vinha, logo abaixo da sua reprodução, a fotografia do director editorial, sorridente, apesar de tudo, não aparentando tristeza de maior. E nas poucas linhas que se podiam ler junto à sua imagem as seguintes palavras: «No mundo de hoje não há insubstituíveis. Como se sabe, de Espanha nem bom vento nem bom casamento, eu diria mais, nem cavaleiro que traga assento...» Dom Quixote leu e engoliu em seco.
À sua volta, sem que nisso tivesse reparado, amontoara-se um grupinho de curiosos que tendo lido as notícias e verificado que era o protagonista das «gordas» quem ali estava se deixou ficar a ver como aquele reagia, o que fazia ou dizia. E já uns se adiantavam no palpite a respeito do caso, comentando-o com graçolas ou, pura e simplesmente, no que é bem português, batendo ainda mais no ceguinho, duvidando da sua moral. «Hombre, quieque estás esparando? Que te vás a casa que es muy melhor, entonces no sabes que Espanha é que está a diar? Esto por aqui son todos uns cabrones, si esses que eston en el govierno, e os de las empresas la misma cosa... um hombre iega aos sessenta e já lo quieren por en la pratelera a receber pensiones de miséria...», dizia um que trazia colado à lapela um autocolante da CGTP. Já outro, mais desconfiado e sabichão, dizia para aquele como quem não quer a coisa: «Epá, ‘tás praí preocupado com esse gajo, que é mais um espanhol com’osotros, só vêm para cá mamar o deles. Vai-se a ver e o gajo veio-se embora com uma indemnização de fazer inveja a qualquer administradorzeco de empresas do Estado!» O dono do quiosque concordava com este último e já arengava: «Este é que sabe falar, então vocês não vêem que este gajo é como todos, põe-se para aqui a ver o jornal, a ler o que lhe apetece e depois comprar ‘tá quieto!» E já se preparava um outro para perorar a todo este respeito, animando-se os ares e os ânimos, quando Dom Quixote achou por bem trotar dali para fora, deixando atrás de si aquela gente a discutir sobre as vantagens e desvantagens de uma segunda ocupação espanhola. Já tinha visto tudo, já tinha ouvido tudo, já só queria resolver o seu futuro.
1 comentário:
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