segunda-feira, 31 de dezembro de 2007
A orelha do Francisco
Um mosquito (se calhar mais do que um) picou a orelha do Francisco, que hoje andou o dia inteiro com a mesma inchada e vermelha. Já vos disse o quanto odeio insectos? Sim, eu sei que odiar é feio. Mas isso faz-se? Hoje vai haver caça! (...) Curiosamente, recordo agora que no carro o que se ouviu foi a música dos espanhóis La Oreja de Van Gogh! Ainda diz a outra que não há coincidências...
A questão (tripla) é
Que raio de interesse pode suscitar esta corrida às rédeas da Caixa? E que raio de interesse pode suscitar o futuro do bcp? Juro, não entendo. Não vão todos continuar a comer à grande e à portuguesa dos bolsos de todos nós? Porque não os calam?
O Abrupto Homem do Leme
Pacheco Pereira insurge-se (no «Público» de ontem) contra a pobreza dos blogues nacionais. Parece-me uma leitura algo abrupta da lusoblogosfera. Sobretudo porque seria curioso saber quanto tempo perde Pacheco a ler outros blogs, sobretudo quando deve passar tanto tempo ao leme do seu. E já agora, porquê aquelas fotografias tão bacocas, foleiras e insípidas?...
Sim, eu sei
Sim, eu sei, a vida são recordações... Não, perdão, o que eu queria dizer é que sim, eu sei que posts muito grandes não se lêem e por isso o Dom Quixote...
Silence News
Não há pae para Amaral. O senhor comprou todas as grandes editores portuguesas. Agora somou a Dom Quixote. Está no meu livro; aquela ainda vai mudar de nome (para Dom Chicote) e passar apenas a editar Carolinas Salgado. Não lêem o meu Dom Quixote!
domingo, 30 de dezembro de 2007
Silence Music Box - Tops
os meus do ano:
1 - Sia, «Lady Croissant»
2 - Cinematics, «A Strange Education»
3- Wilco, «Sky Blue Sky»
4 - She Wants Revenge, «This is Forever»
5 - Joan as a Police Woman, «Real Life»
6 - PJ Harvey, «White Chalk»
7 - The Long Blondes, «Some One to Drive You Home»
8 - Blonde Redhead, «23»
9 - Air, «Pocket Symphony»
10 - Tori Amos, «American Doll Posse»
11 - Brazilian Girls, «Talk to la Bomb»
12 - White Stripes, «Icky Thump»
13 - Bat for Lashes, «Fur and Gold»
14 - Interpol, «Our Love to Admire»
15 - Bruce Springsteen, «Magic»
16 - Patrick Wolf, «Magic Position»
17 - National, «Boxer»
18 - Travis, «Boy With no Name»
19 - Brett Anderson, «Bret Anderson»
20 - Editors, «An End as a Start»
Call Girl
Dizem para aí que é filme comercial. Pois eu, tiro o chapéu (passe a expressão, pois o dito lhe cai muito bem) ao António Pedro Vasconcelos. O filme come-se, sem falsas leituras. Bom enredo, boas interpretações, bom ritmo narrativo, bom som, e, no mais, um filme colado à realidade. Mesmo que ninguém ligue à mensagem principal e tudo fique a olhar para as curvas da Soraia; dir-se-ia que a actriz/personagem corrompe o próprio filme.
sexta-feira, 28 de dezembro de 2007
Histórias Fulminantes 57
Era um poço de sabedoria. Quando o autopsiaram, dois médicos descuidaram-se ao olhar as profundezas do seu intelecto e caíram. Quando chegaram ao fundo bateram com a cabeça nos clássicos de encadernações pontiagudas e tiveram morte imediata.
A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - capítulo XVII
XVII.
De novo a autora. Um edil voltado para as coisas da cultura. A porca torceu o rabo. Mais uma grande ideia do director. A Vasco da Gama a 220 quilómetros por hora. Beijinhos aqui e acolá, o encontro de escritores, dito residência. A suite 69. Os olhos a caírem para um Pão de Rala e até ao presidente sabia bem um mergulho.
Há já um bom par de páginas que não trazemos aqui notícias da nossa autora. Aliás, leit motiv primordial para todo este arrazoado de palavras, para toda esta história de contornos assaz singulares e de desenlace desconhecido, inclusive ainda até para o próprio autor destas linhas. Mas vejamos então onde tínhamos deixado a nossa escritora de sucesso, a best seller entre os best sellers. Exactamente, atento e avisado leitor, tinhamo-la deixado vai não vai para se dirigir a uma cidadezinha do interior do país, cujo edil local, muito voltado para as coisas da cultura (que, descobrira recentemente até era coisa que estava na moda, pelo que talvez fazer umas coisitas na área lhe pudesse granjear alguma popularidade para as eleições que se aproximavam), se lembrara de convidar meia-dúzia de escritores para uma «residência literária».
Etelvina Prazeres, enquanto nome do momento, não poderia não ter sido convidada. Aliás, a primeira convidada, se calhar mesmo a única convidada com verdadeiro interesse aos olhos do autarca anfitrião. Etelvina nunca tinha ouvido falar em coisa semelhante, uma residência, para ela, era apenas uma grande casa, um casarão ou um palacete, como aquele em que em tempos não muito distantes vivera com o seu ex-presidente do tal clube desportivo nortenho, de resto, o homem que estivera na base do sucesso do seu livro. A verdade é que quando ela pensava que a convidavam para tirar umas feriazitas (mais do que merecidas) num qualquer turismo rural do interior, e já, alegre e contente, se preparava para fazer as malas, a conversa com o seu editor é que veio iluminá-la em parte quanto aos reais objectivos de iniciativas como aquela. Que sim, que até seria numa bela casa, talvez mesmo num turismo rural, disse-lhe o director editorial, mas que o propósito era que os escritores participassem em mesas-redondas com o público acerca das suas experiências de escrita, e, sobretudo, que essa residência lhes permitisse escrever um texto novo, de preferência acerca dessa mesma experiência.
Aí é que a porca torceu o rabo para Etelvina! Como diabo haveria ela de se pôr a escrever fosse o que fosse? Então o director não sabia também que fora o escritor-fantasma a escrever o seu livro, limitando-se ela a contar-lhe episódios avulsos da sua vida? O director editorial disse que sim, que sabia isso muito bem, mas que nestas coisas das residências a coisa era mesmo só para os escritores... A não ser... «A não ser o que?», perguntou-lhe logo a escritora, garantindo uma vez mais que sem a presença do seu fantasma, o Salvador, ela era incapaz de escrever uma palavra. «A não ser», disse o director, «que juntemos o útil ao agradável». E lá explicou o que tinha em mente. Contou a Etelvina dos anseios de reconhecimento de José Salvador, farto que estava da sua profissão de escritor-fantasma, chegando depois ao ponto que mais agradou à autora. Falaria com o fantasma para que a acompanhasse à dita residência. O homem haveria de ficar contente e certamente que lhe agradaria o facto de a acompanhar, de sair para o campo, de apanhar ar puro e fresco e, claro, contactar com os outros escritores. E como contornar a questão autárquica?, perguntou Etelvina. «Nada que não se possa solucionar», garantiu o director, pegando no telefone e pedindo à sua secretária, a dona Paula, que lhe fizesse uma «ligaçãozinha» para o senhor presidente de Câmara da povoação onde a dita residência teria lugar.
Pouco tardou em que a dona Paula lhe ligasse de volta pondo o director em linha directa com o autarca. A conversa correu com muitos rodriguinhos de apreciação mútua, com muitos assentimentos, e com a promessa de um visita oportuna do director ao presidente que o levaria a provar as iguarias da região. Etelvina não percebeu quais. «Prontos, está tudo resolvido», disse o director para a sua autora, «vou falar com o fantasma para também fazer as malas. A ver se o homem ganha uma corzinha!» Etelvina suspirou de alívio, assim, sim, teria imenso prazer em participar na residência. Ao director, pediu apenas que falasse com o fantasma no sentido de ele, durante o período da deslocação, actuar com a discrição possível, na sombra, por assim dizer, até para não dar muito nas vistas junto dos outros escritores.
Na manhã do dia aprazado para a ida até à cidadezinha do interior onde todos os escritores ficaram de se encontrar pelas 11h30 da manhã, seguindo para residência onde deixariam as malas e logo depois para um almoço de boas-vindas, Etelvina estava com um nervoso miudinho. Ficara de se encontrar à porta da editora para apanhar o escritor-fantasma e ali estando, não havia maneira de ele aparecer. Por fim, lá apareceu trazendo uma malinha a tiracolo, vestindo calças brancas largas de linho e uma camisa cheia de flores amarelas e vermelhas, bem ao jeito e gosto africano. Os óculos escuros compunham a figura e davam o toque final. Etelvina não se conteve e começou a rir-se dele bem nas suas barbas, expressão embora fiel, talvez algo deslocada de um sentido real uma vez que o fantasma tinha muito pouca barba. Na verdade, despontavam-lhe nas faces apenas dois ou três pêlos mal semeados, o que a ninguém espantaria até porque onde é que já se viram fantasmas com barba?
Prosseguiram então viagem, passando a ponte Vasco da Gama a mais de 220 quilómetros por hora. Etelvina cantava com uma voz esganiçada as canções que o rádio ia debitando, com os hits mais recentes dos cantores de novela nacionais. Quanto ao escritor-fantasma, por trás dos seus óculos escuros seguia agarrado ao banco do BMW da autora, mais assustado do que um susto, todo ele pele de galinha e já a desfazer-se em rezas e promessas assim chegasse são e salvo ao destino. Transcorrida pouco mais de uma hora de viagem, sempre em alta cavalagem e grande gritaria a bordo, Etelvina e o fantasma chegaram à porta da Câmara Municipal, local marcado para encontro antes de seguirem até à residência. Tinham conseguido chegar a horas.
À sua espera estavam o presidente da Câmara e o seu vereador da Cultura, bem como os outros escritores. Etelvina, contudo, estranhou o seu número, pensou que seriam mais cinco, com ela seis, e a verdade é que estavam ali, para além do edil e do vereador, mais dez pessoas! «Dez, senhor presidente? Então não éramos só seis escritores participantes?» O presidente sorriu, pôs-lhe o braço sobre o ombro e apressou-se a esclarecê-la. A coisa era simples, é que todos os seus colegas escritores tinham também decidido participar na residência acompanhados dos seus escritores-fantasmas. Etelvina fez um grande ar de espanto mas lá acabou por sorrir, sentindo-se com isso muito melhor. Afinal, todos os grandes escritores têm os seus fantasmas. E nessa medida se calhar ela era mesmo uma grande escritora... Quem sabe, um dia não acabava mesmo por escrever poesia, essa tal arte maior da escrita reservada aos maiores entre os maiores.
Beijinhos aqui e beijinhos acolá, escritores e escritores-fantasmas cumprimentaram-se, alegrando-se pela experiência que tinham pela frente. Etelvina apresentou-se e apresentou o seu Zé, o seu querido fantasma. Curiosamente, o Zé já tinha tratado de se apresentar, estando agora em amena cavaqueira com os seus pares fantasmas, eles sim, afinal, os verdadeiros interessados na literatura e no programa a cumprir previamente definido pela autarquia conjuntamente com a biblioteca local, cuja directora entretanto também e juntara ao grupo. Um grupo alegre, jovial e colorido, sobretudo por via do garrido das corres das roupas dos escritores-fantasmas, que partiu em caravana até à tão sonhada residência, efectivamente, uma antiga casa apalaçada, situada no campo e agora transformada em moderno turismo rural.
Como eram doze, e não seis, os participantes do evento, metade dos quartos da «residência» ficaram por conta dos homens e mulheres das letras, para ser mais concreto por conta de cinco escritores homens, seis escritores-fantasmas também homens e... e apenas uma escritora, Etelvina Prazeres, que, dada a grandeza do seu sucesso literário, tivera direito a uma suite, a número 69. E quanto prazer e honra ela tinha nisso, confessaria depois ao presidente que já não a largava como cão a um osso, quanto prazer em ser a única representante feminina num evento de tamanha importância. Deste primeiro contacto dos escritores com o local onde passariam a residir nos dias seguintes pouco mais há a dizer senão dois pequenos apartes: primeiro, as muitas malas com que Etelvina encheu o seu quarto, mais parecendo que trouxera consigo a totalidade do seu guarda-roupa; depois, que logo, logo, mal ali chegados, o seu escritor-fantasma desaparecera. Nada de especial se passara, pouco depois já ele também se dirigia para o hall de entrada, vindo do bar e acompanhado dos seus pares fantasmas, onde já estivera a bebericar um Porto de Honra, seguido de quejandos alcalóides. Zé Salvador ostentava um sorriso na cara de grande satisfação, era a primeira vez que sentia o prazer destes encontros literários e estava disposto a retirar da experiência tudo o que pudesse. A comitiva seguiu então para um restaurante ali próximo onde inúmeras iguarias regionais os aguardavam.
Os escritores e os escritores-fantasmas comeram que nem presidentes. Bem, quase como presidentes, porque se esses fossem tomados à imagem do presidente da Câmara local, que enfardava como Etelvina nunca vira, a imagem cairia por terra. Acompanhar a voracidade do estômago do homem era tarefa impossível para qualquer mortal, mesmo para qualquer escritor ou escritor-fantasma esfaimado, como se mostrava, de resto, Zé Salvador, repetindo três vezes o prato principal, depois de comer umas entradinhas, e preparando agora o ataque à mesa das sobremesas em regime de self service. Caíram-lhe os olhos para um Pão de Rala, para uns Morgados e para um arroz doce divinal feito com leite de cabra. Satisfeito, mas não terminado, Zé ainda encontrou espaço para uma fatiazinha de Sericá, pondo termo à refeição com a ameixa de Elvas da praxe seguida da degustação de uma aguardentezinha da garrafeira particular do Chefe que tinha tanto de «pomada» como de «bomba»!
No fim do repasto, a directora da Biblioteca local levantou-se distribuindo aos escritores uma folha A4 com o programa da «1ª Residência de Escritores Abel Antero - 2007» – Abel Antero era o nome de um escritor local que assim a autarquia aproveitava para homenagear, depois de ter descerrado uma placa na casa onde ele nascera e de conceder o seu nome a uma rua da localidade. Em amena e alegre conversa, os escritores, todos eles, se apressaram a entregar as folhas aos seus escritores-fantasmas, continuando as provas vinícolas da região comandadas pelo senhor presidente. Em conversa com Etelvina, o senhor presidente confessou-lhe que só tinha lido alguns parágrafos do seu «extraordinário» livro, que ela não levasse a mal, mas é que ele tinha um não-sei-quê com a leitura, que quase nunca conseguia arrancar do primeiro parágrafo e que a última coisa que lera já nem se lembrava. Gostava, sim, do Tio Patinhas, que comprava desde criança. No entanto, ressalvava, tinha lá em casa um Lobo Antunes que a editora lhe mandara e que, quem sabe um dia, com a graça de Deus, conseguiria ler. Embora duvidasse de ter tempo para essas coisas, tão «atazanado» andava sempre com os problemas que os seus opositores lhe arranjavam na Câmara. Etelvina, de sua parte, confessou também que não achava grande piada ao Tio Patinhas e que preferia mesmo o Donald. E sobre esta divergência entraram os dois em prolífica discussão.
Batiam quase as três da tarde de um dia que se mostrava cheio de sol e calor, quando o presidente chama a empregada de mesa do restaurante dizendo-lhe para dizer ao Chefe para pôr a dolorosa na conta da Câmara. Depois, dirige-se aos escritores e aos escritores-fantasmas convidando-os a dar seguimento ao programa estabelecido pela directora da Biblioteca, no caso um encontro com o público para apresentação das obras respectivas. Chegando-se uns aos outros, os escritores-escritores, não os fantasmas, trocaram breves impressões e rapidíssimas conclusões que imediatamente trataram de transmitir ao presidente da Câmara por intermédio de Etelvina Prazeres fazendo uso do elevado capital de simpatia que esta nutria junto do edil. E que lhe comunicou aquela? Que os escritores achavam que estando um belo dia de sol, estando um calor que apenas convidava ao desfrute de um banho de piscina, estando, ainda para mais de barrigas cheias, seria bem melhor que pudessem ir para a residência e aí aproveitar o resto da tarde com uns mergulhos oferecendo aos corpos um belo bronzeado. Consideravam eles que tal hipótese bem melhor serviria os intentos primeiros de vir a conseguir que eles se inspirassem para a redacção de um qualquer texto original. O presidente ouviu, considerou, em voz baixa, que compreendia muito bem a situação, que até a ele lhe apetecia um banhito, quem sabe até os poderia acompanhar no gozo da piscina, e que teria apenas de dar uma palavrinha à directora da Biblioteca, que, adiantou entre dentes, é uma chata do piorio sempre com os livros e os escritores atrás dela!
Assim disse, assim fez e assim regressou para junto de Etelvina dizendo-lhe que estava tudo resolvido, que tinha tido uma excelente ideia e que só tinha de ir a casa buscar os calções de banho e a toalha, deixar o vereador da Cultura na Câmara, e que em menos de nada se lhe juntaria na residência, oferecendo-se, desde logo, para lhe pôr o creme nas costas, assim ela o permitisse, naturalmente, e não visse nisso incómodo de maior ou qualquer avanço de sua parte. «Senhor presidente, por quem é? Então ia eu achar tal coisa de uma pessoa tão distinta como o senhor?» E a ideia? A ideia do presidente? Ah, pois claro, esta: o edil lembrou-se e bem de «convidar» os escritores fantasma a fazerem as vezes dos escritores na dita sessão de apresentação de obras ao público local. Pois se não tinham eles enchido o papo, e de que maneira, essa haveria de ser a forma de pagarem o repasto. Sim, que isto de andar a escrevinhar livros não é trabalho que se veja. Ainda para mais escritores de segunda fila, escritores-fantasmas.
E todos se foram então às suas vidas e afazeres. Os escritores dirigiram-se a banhos para a residência, todos metidos no BMW de Etelvina, em busca de inspiração soalheira para as suas empreitadas literárias, no seu Mercedes o autarca levou consigo o vereador e a directora da biblioteca, enquanto que aos escritores-fantasmas foi-lhes indicado que aguardassem um pouco que no entretanto uma camioneta da Câmara os viria buscar para levá-los até à Biblioteca Municipal onde tratariam de entreter conversa com a audiência, dando a conhecer a vida e obra dos escritores que representavam. A coisa acabaria por correr mal de todo. A princípio os locais que ali se deslocaram na intenção de conversar com os seus escritores favoritos ainda desconfiaram de que lhes estavam a enfiar um grande barrete, mas depois da conversa engatar e fluir, com os escritores-fantasmas a falarem de literatura com algum conhecimento de causa, a verdade é que, no final, todos os presentes se convenceram de que aqueles escritores, sendo fantasmas, tinham muito mais a dizer e para dizer do que os verdadeiros escritores.
Entretanto, estirada ao sol junto à piscina, em biquini deveras poupado no tecido e com um elaborado cocktail que bebericava por uma palhinha, Etelvina encontrava-se no melhor dos mundos, rodeada pelos cinco escritores e pelo presidente de Câmara que, cheio de ciúmes, tratava de enxotar os escritores para longe, ao mesmo tempo que preparava os óleos com que trataria de ungir a sua autora predilecta. «É bom que desapareçam, senão ainda os obrigo a ir para a Biblioteca aturar aquela gente», disse o presidente a Etelvina que achou a piada óptima, respondendo, «ó senhor presidente, não é preciso tanto, olhe que isso era uma maldade! Afinal de contas só estávamos a trocar ideias acerca dos nossos escritores-fantasmas, que são como as empregadas lá em casa e assim... Seu maroto, tem a certeza de que esses óleos são para bronzeados ou para massagens?»
De novo a autora. Um edil voltado para as coisas da cultura. A porca torceu o rabo. Mais uma grande ideia do director. A Vasco da Gama a 220 quilómetros por hora. Beijinhos aqui e acolá, o encontro de escritores, dito residência. A suite 69. Os olhos a caírem para um Pão de Rala e até ao presidente sabia bem um mergulho.
Há já um bom par de páginas que não trazemos aqui notícias da nossa autora. Aliás, leit motiv primordial para todo este arrazoado de palavras, para toda esta história de contornos assaz singulares e de desenlace desconhecido, inclusive ainda até para o próprio autor destas linhas. Mas vejamos então onde tínhamos deixado a nossa escritora de sucesso, a best seller entre os best sellers. Exactamente, atento e avisado leitor, tinhamo-la deixado vai não vai para se dirigir a uma cidadezinha do interior do país, cujo edil local, muito voltado para as coisas da cultura (que, descobrira recentemente até era coisa que estava na moda, pelo que talvez fazer umas coisitas na área lhe pudesse granjear alguma popularidade para as eleições que se aproximavam), se lembrara de convidar meia-dúzia de escritores para uma «residência literária».
Etelvina Prazeres, enquanto nome do momento, não poderia não ter sido convidada. Aliás, a primeira convidada, se calhar mesmo a única convidada com verdadeiro interesse aos olhos do autarca anfitrião. Etelvina nunca tinha ouvido falar em coisa semelhante, uma residência, para ela, era apenas uma grande casa, um casarão ou um palacete, como aquele em que em tempos não muito distantes vivera com o seu ex-presidente do tal clube desportivo nortenho, de resto, o homem que estivera na base do sucesso do seu livro. A verdade é que quando ela pensava que a convidavam para tirar umas feriazitas (mais do que merecidas) num qualquer turismo rural do interior, e já, alegre e contente, se preparava para fazer as malas, a conversa com o seu editor é que veio iluminá-la em parte quanto aos reais objectivos de iniciativas como aquela. Que sim, que até seria numa bela casa, talvez mesmo num turismo rural, disse-lhe o director editorial, mas que o propósito era que os escritores participassem em mesas-redondas com o público acerca das suas experiências de escrita, e, sobretudo, que essa residência lhes permitisse escrever um texto novo, de preferência acerca dessa mesma experiência.
Aí é que a porca torceu o rabo para Etelvina! Como diabo haveria ela de se pôr a escrever fosse o que fosse? Então o director não sabia também que fora o escritor-fantasma a escrever o seu livro, limitando-se ela a contar-lhe episódios avulsos da sua vida? O director editorial disse que sim, que sabia isso muito bem, mas que nestas coisas das residências a coisa era mesmo só para os escritores... A não ser... «A não ser o que?», perguntou-lhe logo a escritora, garantindo uma vez mais que sem a presença do seu fantasma, o Salvador, ela era incapaz de escrever uma palavra. «A não ser», disse o director, «que juntemos o útil ao agradável». E lá explicou o que tinha em mente. Contou a Etelvina dos anseios de reconhecimento de José Salvador, farto que estava da sua profissão de escritor-fantasma, chegando depois ao ponto que mais agradou à autora. Falaria com o fantasma para que a acompanhasse à dita residência. O homem haveria de ficar contente e certamente que lhe agradaria o facto de a acompanhar, de sair para o campo, de apanhar ar puro e fresco e, claro, contactar com os outros escritores. E como contornar a questão autárquica?, perguntou Etelvina. «Nada que não se possa solucionar», garantiu o director, pegando no telefone e pedindo à sua secretária, a dona Paula, que lhe fizesse uma «ligaçãozinha» para o senhor presidente de Câmara da povoação onde a dita residência teria lugar.
Pouco tardou em que a dona Paula lhe ligasse de volta pondo o director em linha directa com o autarca. A conversa correu com muitos rodriguinhos de apreciação mútua, com muitos assentimentos, e com a promessa de um visita oportuna do director ao presidente que o levaria a provar as iguarias da região. Etelvina não percebeu quais. «Prontos, está tudo resolvido», disse o director para a sua autora, «vou falar com o fantasma para também fazer as malas. A ver se o homem ganha uma corzinha!» Etelvina suspirou de alívio, assim, sim, teria imenso prazer em participar na residência. Ao director, pediu apenas que falasse com o fantasma no sentido de ele, durante o período da deslocação, actuar com a discrição possível, na sombra, por assim dizer, até para não dar muito nas vistas junto dos outros escritores.
Na manhã do dia aprazado para a ida até à cidadezinha do interior onde todos os escritores ficaram de se encontrar pelas 11h30 da manhã, seguindo para residência onde deixariam as malas e logo depois para um almoço de boas-vindas, Etelvina estava com um nervoso miudinho. Ficara de se encontrar à porta da editora para apanhar o escritor-fantasma e ali estando, não havia maneira de ele aparecer. Por fim, lá apareceu trazendo uma malinha a tiracolo, vestindo calças brancas largas de linho e uma camisa cheia de flores amarelas e vermelhas, bem ao jeito e gosto africano. Os óculos escuros compunham a figura e davam o toque final. Etelvina não se conteve e começou a rir-se dele bem nas suas barbas, expressão embora fiel, talvez algo deslocada de um sentido real uma vez que o fantasma tinha muito pouca barba. Na verdade, despontavam-lhe nas faces apenas dois ou três pêlos mal semeados, o que a ninguém espantaria até porque onde é que já se viram fantasmas com barba?
Prosseguiram então viagem, passando a ponte Vasco da Gama a mais de 220 quilómetros por hora. Etelvina cantava com uma voz esganiçada as canções que o rádio ia debitando, com os hits mais recentes dos cantores de novela nacionais. Quanto ao escritor-fantasma, por trás dos seus óculos escuros seguia agarrado ao banco do BMW da autora, mais assustado do que um susto, todo ele pele de galinha e já a desfazer-se em rezas e promessas assim chegasse são e salvo ao destino. Transcorrida pouco mais de uma hora de viagem, sempre em alta cavalagem e grande gritaria a bordo, Etelvina e o fantasma chegaram à porta da Câmara Municipal, local marcado para encontro antes de seguirem até à residência. Tinham conseguido chegar a horas.
À sua espera estavam o presidente da Câmara e o seu vereador da Cultura, bem como os outros escritores. Etelvina, contudo, estranhou o seu número, pensou que seriam mais cinco, com ela seis, e a verdade é que estavam ali, para além do edil e do vereador, mais dez pessoas! «Dez, senhor presidente? Então não éramos só seis escritores participantes?» O presidente sorriu, pôs-lhe o braço sobre o ombro e apressou-se a esclarecê-la. A coisa era simples, é que todos os seus colegas escritores tinham também decidido participar na residência acompanhados dos seus escritores-fantasmas. Etelvina fez um grande ar de espanto mas lá acabou por sorrir, sentindo-se com isso muito melhor. Afinal, todos os grandes escritores têm os seus fantasmas. E nessa medida se calhar ela era mesmo uma grande escritora... Quem sabe, um dia não acabava mesmo por escrever poesia, essa tal arte maior da escrita reservada aos maiores entre os maiores.
Beijinhos aqui e beijinhos acolá, escritores e escritores-fantasmas cumprimentaram-se, alegrando-se pela experiência que tinham pela frente. Etelvina apresentou-se e apresentou o seu Zé, o seu querido fantasma. Curiosamente, o Zé já tinha tratado de se apresentar, estando agora em amena cavaqueira com os seus pares fantasmas, eles sim, afinal, os verdadeiros interessados na literatura e no programa a cumprir previamente definido pela autarquia conjuntamente com a biblioteca local, cuja directora entretanto também e juntara ao grupo. Um grupo alegre, jovial e colorido, sobretudo por via do garrido das corres das roupas dos escritores-fantasmas, que partiu em caravana até à tão sonhada residência, efectivamente, uma antiga casa apalaçada, situada no campo e agora transformada em moderno turismo rural.
Como eram doze, e não seis, os participantes do evento, metade dos quartos da «residência» ficaram por conta dos homens e mulheres das letras, para ser mais concreto por conta de cinco escritores homens, seis escritores-fantasmas também homens e... e apenas uma escritora, Etelvina Prazeres, que, dada a grandeza do seu sucesso literário, tivera direito a uma suite, a número 69. E quanto prazer e honra ela tinha nisso, confessaria depois ao presidente que já não a largava como cão a um osso, quanto prazer em ser a única representante feminina num evento de tamanha importância. Deste primeiro contacto dos escritores com o local onde passariam a residir nos dias seguintes pouco mais há a dizer senão dois pequenos apartes: primeiro, as muitas malas com que Etelvina encheu o seu quarto, mais parecendo que trouxera consigo a totalidade do seu guarda-roupa; depois, que logo, logo, mal ali chegados, o seu escritor-fantasma desaparecera. Nada de especial se passara, pouco depois já ele também se dirigia para o hall de entrada, vindo do bar e acompanhado dos seus pares fantasmas, onde já estivera a bebericar um Porto de Honra, seguido de quejandos alcalóides. Zé Salvador ostentava um sorriso na cara de grande satisfação, era a primeira vez que sentia o prazer destes encontros literários e estava disposto a retirar da experiência tudo o que pudesse. A comitiva seguiu então para um restaurante ali próximo onde inúmeras iguarias regionais os aguardavam.
Os escritores e os escritores-fantasmas comeram que nem presidentes. Bem, quase como presidentes, porque se esses fossem tomados à imagem do presidente da Câmara local, que enfardava como Etelvina nunca vira, a imagem cairia por terra. Acompanhar a voracidade do estômago do homem era tarefa impossível para qualquer mortal, mesmo para qualquer escritor ou escritor-fantasma esfaimado, como se mostrava, de resto, Zé Salvador, repetindo três vezes o prato principal, depois de comer umas entradinhas, e preparando agora o ataque à mesa das sobremesas em regime de self service. Caíram-lhe os olhos para um Pão de Rala, para uns Morgados e para um arroz doce divinal feito com leite de cabra. Satisfeito, mas não terminado, Zé ainda encontrou espaço para uma fatiazinha de Sericá, pondo termo à refeição com a ameixa de Elvas da praxe seguida da degustação de uma aguardentezinha da garrafeira particular do Chefe que tinha tanto de «pomada» como de «bomba»!
No fim do repasto, a directora da Biblioteca local levantou-se distribuindo aos escritores uma folha A4 com o programa da «1ª Residência de Escritores Abel Antero - 2007» – Abel Antero era o nome de um escritor local que assim a autarquia aproveitava para homenagear, depois de ter descerrado uma placa na casa onde ele nascera e de conceder o seu nome a uma rua da localidade. Em amena e alegre conversa, os escritores, todos eles, se apressaram a entregar as folhas aos seus escritores-fantasmas, continuando as provas vinícolas da região comandadas pelo senhor presidente. Em conversa com Etelvina, o senhor presidente confessou-lhe que só tinha lido alguns parágrafos do seu «extraordinário» livro, que ela não levasse a mal, mas é que ele tinha um não-sei-quê com a leitura, que quase nunca conseguia arrancar do primeiro parágrafo e que a última coisa que lera já nem se lembrava. Gostava, sim, do Tio Patinhas, que comprava desde criança. No entanto, ressalvava, tinha lá em casa um Lobo Antunes que a editora lhe mandara e que, quem sabe um dia, com a graça de Deus, conseguiria ler. Embora duvidasse de ter tempo para essas coisas, tão «atazanado» andava sempre com os problemas que os seus opositores lhe arranjavam na Câmara. Etelvina, de sua parte, confessou também que não achava grande piada ao Tio Patinhas e que preferia mesmo o Donald. E sobre esta divergência entraram os dois em prolífica discussão.
Batiam quase as três da tarde de um dia que se mostrava cheio de sol e calor, quando o presidente chama a empregada de mesa do restaurante dizendo-lhe para dizer ao Chefe para pôr a dolorosa na conta da Câmara. Depois, dirige-se aos escritores e aos escritores-fantasmas convidando-os a dar seguimento ao programa estabelecido pela directora da Biblioteca, no caso um encontro com o público para apresentação das obras respectivas. Chegando-se uns aos outros, os escritores-escritores, não os fantasmas, trocaram breves impressões e rapidíssimas conclusões que imediatamente trataram de transmitir ao presidente da Câmara por intermédio de Etelvina Prazeres fazendo uso do elevado capital de simpatia que esta nutria junto do edil. E que lhe comunicou aquela? Que os escritores achavam que estando um belo dia de sol, estando um calor que apenas convidava ao desfrute de um banho de piscina, estando, ainda para mais de barrigas cheias, seria bem melhor que pudessem ir para a residência e aí aproveitar o resto da tarde com uns mergulhos oferecendo aos corpos um belo bronzeado. Consideravam eles que tal hipótese bem melhor serviria os intentos primeiros de vir a conseguir que eles se inspirassem para a redacção de um qualquer texto original. O presidente ouviu, considerou, em voz baixa, que compreendia muito bem a situação, que até a ele lhe apetecia um banhito, quem sabe até os poderia acompanhar no gozo da piscina, e que teria apenas de dar uma palavrinha à directora da Biblioteca, que, adiantou entre dentes, é uma chata do piorio sempre com os livros e os escritores atrás dela!
Assim disse, assim fez e assim regressou para junto de Etelvina dizendo-lhe que estava tudo resolvido, que tinha tido uma excelente ideia e que só tinha de ir a casa buscar os calções de banho e a toalha, deixar o vereador da Cultura na Câmara, e que em menos de nada se lhe juntaria na residência, oferecendo-se, desde logo, para lhe pôr o creme nas costas, assim ela o permitisse, naturalmente, e não visse nisso incómodo de maior ou qualquer avanço de sua parte. «Senhor presidente, por quem é? Então ia eu achar tal coisa de uma pessoa tão distinta como o senhor?» E a ideia? A ideia do presidente? Ah, pois claro, esta: o edil lembrou-se e bem de «convidar» os escritores fantasma a fazerem as vezes dos escritores na dita sessão de apresentação de obras ao público local. Pois se não tinham eles enchido o papo, e de que maneira, essa haveria de ser a forma de pagarem o repasto. Sim, que isto de andar a escrevinhar livros não é trabalho que se veja. Ainda para mais escritores de segunda fila, escritores-fantasmas.
E todos se foram então às suas vidas e afazeres. Os escritores dirigiram-se a banhos para a residência, todos metidos no BMW de Etelvina, em busca de inspiração soalheira para as suas empreitadas literárias, no seu Mercedes o autarca levou consigo o vereador e a directora da biblioteca, enquanto que aos escritores-fantasmas foi-lhes indicado que aguardassem um pouco que no entretanto uma camioneta da Câmara os viria buscar para levá-los até à Biblioteca Municipal onde tratariam de entreter conversa com a audiência, dando a conhecer a vida e obra dos escritores que representavam. A coisa acabaria por correr mal de todo. A princípio os locais que ali se deslocaram na intenção de conversar com os seus escritores favoritos ainda desconfiaram de que lhes estavam a enfiar um grande barrete, mas depois da conversa engatar e fluir, com os escritores-fantasmas a falarem de literatura com algum conhecimento de causa, a verdade é que, no final, todos os presentes se convenceram de que aqueles escritores, sendo fantasmas, tinham muito mais a dizer e para dizer do que os verdadeiros escritores.
Entretanto, estirada ao sol junto à piscina, em biquini deveras poupado no tecido e com um elaborado cocktail que bebericava por uma palhinha, Etelvina encontrava-se no melhor dos mundos, rodeada pelos cinco escritores e pelo presidente de Câmara que, cheio de ciúmes, tratava de enxotar os escritores para longe, ao mesmo tempo que preparava os óleos com que trataria de ungir a sua autora predilecta. «É bom que desapareçam, senão ainda os obrigo a ir para a Biblioteca aturar aquela gente», disse o presidente a Etelvina que achou a piada óptima, respondendo, «ó senhor presidente, não é preciso tanto, olhe que isso era uma maldade! Afinal de contas só estávamos a trocar ideias acerca dos nossos escritores-fantasmas, que são como as empregadas lá em casa e assim... Seu maroto, tem a certeza de que esses óleos são para bronzeados ou para massagens?»
quinta-feira, 27 de dezembro de 2007
segunda-feira, 24 de dezembro de 2007
Outros Silêncios
«No silêncio há uma espécie de deslocação para a natureza.»
«Uma cidade que não valoriza o silêncio é uma cidade totalitária.»
«Muitas vezes no mundo contemporâneo o silêncio torna-se trágico, porque não é um silêncio, é mais um silenciamento.»
«Uma cidade que não valoriza o silêncio é uma cidade totalitária.»
«Muitas vezes no mundo contemporâneo o silêncio torna-se trágico, porque não é um silêncio, é mais um silenciamento.»
José Tolentino Mendonça, Câmara Clara, RTP2
sexta-feira, 21 de dezembro de 2007
Histórias Fulminantes 56
Deus fumava descontraidamente um cigarro quando se lembrou de utilizar a Terra como cinzeiro. Densas nuvens cinzentas perfilaram-se então no horizonte.
E agora para um momento poético!
gostava
mas não sou como o Torga
que a cada natal
tirava do saco da poesia
um menino jesus e um poema
sei apenas e cada vez mais
que o natal são as crianças
e as ofertas dos seus sorrisos
o natal quando penso nele
já não lá está
de modo que arrumo a secretária
desejo as boas festas no escritório
e saio para o trânsito das últimas compras
no shopping
enquanto aguardo pelo meu número de senha
para cortar o cabelo
tirando as medidas às barbas do pai-natal
dou de caras com o menino jesus
deitado ao baixo entre as notícias
de guerra e paz
lá onde o menino nasceu entre as palhinhas
de modo que não sou como o Torga
que a cada Natal seu poema
talvez porque como o David
sei também que a cada Natal
há o prenúncio do Natal que há-de vir
Natal primeiro
Natal derradeiro
que é como quem diz são favas contadas
mas tudo isto é poema
corte-se o bolo
mande-se tudo à fava
abram-se as prendas
distribua-se com parcimónia e gula
a alegria pelas crianças
mas não sou como o Torga
que a cada natal
tirava do saco da poesia
um menino jesus e um poema
sei apenas e cada vez mais
que o natal são as crianças
e as ofertas dos seus sorrisos
o natal quando penso nele
já não lá está
de modo que arrumo a secretária
desejo as boas festas no escritório
e saio para o trânsito das últimas compras
no shopping
enquanto aguardo pelo meu número de senha
para cortar o cabelo
tirando as medidas às barbas do pai-natal
dou de caras com o menino jesus
deitado ao baixo entre as notícias
de guerra e paz
lá onde o menino nasceu entre as palhinhas
de modo que não sou como o Torga
que a cada Natal seu poema
talvez porque como o David
sei também que a cada Natal
há o prenúncio do Natal que há-de vir
Natal primeiro
Natal derradeiro
que é como quem diz são favas contadas
mas tudo isto é poema
corte-se o bolo
mande-se tudo à fava
abram-se as prendas
distribua-se com parcimónia e gula
a alegria pelas crianças
A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Capítulo XVI
XVI.
Uma simpática jovem respirando saúde, forma física, boas maneiras e Chanel. A doutora da Ideias Fantásticas. Dom Quixote convicto de que poderia ser uma mais-valia. A história da editora. A história surpreendente de Luisinha Ratita Cunha. Pitchi.
D. Quixote demorou quase duas horas para atravessar Lisboa desde Belém até à antiga Praça do Areeiro e, como se adivinha, chegou à porta da Ideias Fantásticas como uma autêntica pilha de nervos. Já não bastassem, uma vez mais, o trânsito infernal e o calor impiedoso, ali chegado um outro problema – embora não original nesta história, mas há-de o leitor convir que não é fácil pensar onde se arruma um equídeo no meio de uma cidade – se lhe colocou. Onde deixar o Rocinante? Pasto, ali à volta não havia e a editora só tinha lugares de garagem para o carro do Editor Geral, pelo que a única solução foi optar pelo estacionamento pago da EMEL. Contrafeito e resmungando de si para consigo (como também já vai sendo hábito), Dom Quixote lá tirou uma moeda de uma pequena sacola que trazia por dentro da armadura e dirigiu-se ao parquímetro. Colocada a moeda na ranhura, voltou com o ticket na mão para junto do seu cavalo. Rocinante, bem estacionado, recebeu então do seu dono o dito ticket que, preso entre os dentes, provaria a sua legalidade enquanto utente rodoviário.
Tocando à campainha com afinco quem o veio receber foi uma simpática jovem que respirava saúde, forma física, boas maneiras e Chanel. Simpática e despachada, embora mantendo uma certa distância de reserva para com Dom Quixote, cujo aspecto a perturbou e lhe causou uma indisfarçável ligeira repulsa, a menina apresentou-se, dizendo chamar-se Coco, e perguntou ao cavaleiro se tinha entrevista ou reunião marcada e, já agora, se possível, com quem.
Que não, respondeu-lhe Dom Quixote, mas que desejava falar com a editora da Ideias Fantásticas, pois tinha uma proposta a fazer-lhe, quisesse fazer o favor de o apresentar, Dom Quixote era o seu nome, caso não soubesse. Com certeza, respondeu-lhe a menina Coco, pedindo-lhe que aguardasse um pouco que ela ia ver se a doutora o podia receber. «A doutora?...», intrigou-se o nosso protagonista, pondo-se a pensar que o mundo editorial tinha mudado bastante nas últimas décadas. Antes, os livros eram ofício de meros e simples amantes da palavra, das ideias, hoje os livros parecem entregues à classe dos doutores, gente que vê nos livros meros objectos comercializáveis, se possível geradores de riqueza, se possível o mais rapidamente possível.
Estava nestes considerandos para consigo, quando voltou à sala de espera a menina Coco com um sorriso a meia haste, declaradamente a contragosto. Transmitiu-lhe então que tivera muita sorte, pois a doutora já tinha chegado, já tinha bebido o café da manhã, e, pasmasse, tinha encontrado um buraco na agenda hiperpreenchida. Dom Quixote levantou-se e seguiu então a menina por um corredor que levava a uma porta ao fundo. Entrando no gabinete da «doutora», Dom Quixote sorriu, cumprimentando a dita. Era uma senhora dos seus quarenta e muitos, toda sorrisos, batom e unha pintadas de um vermelho garrido. Pulseiras de ouro, colares reluzindo a condizer, toda ela, entre o negro e o creme, transpirava um vestir caro e refinado, de marca comprada na Avenida da Liberdade ou quiçá mesmo nas exuberantes avenidas parisienses. Visse a distinta passeando na rua e jamais Dom Quixote afirmaria estar perante uma editora de livros. Era tal qual como havia poucos minutos atrás reflectia; adeus aos homens mal vestidos, de aspecto intelectual e óculos de hastes grossas e lentes garrafais na cara, agora o mercado queria outro tipo de profissionais, transpirando (e até este termo pode aqui desadequar-se...) glamour e modernidade. Dom Quixote não via mal nenhum nisso, de resto. Por que raio, aliás, as pessoas que lidam com o livro devem aparentar-se com ratazanas mal vestidas e mal amanhadas? Importava, sem dúvida, era que fossem competentes, que tratassem os livros com carinho e amor, que amassem as palavras, o toque nas encadernações, o cheiro a tinta quando ainda acabados de chegar das gráficas. Que, acima de tudo, prezassem as ideias, as histórias, as boas histórias. E quem dizia que esta «doutora» não era assim?
Dom Quixote apressou-se a voltar à terra e a pôr de lado esses pensamentos, até porque, como lhe fizera transparecer a secretária da doutora, esta não teria muito tempo disponível em agenda. Apresentou-se, ao que ela respondeu ser isso escusado pois que o conhecia bem e a sua história dos últimos dias era conhecida de todo o público em geral, e passou a enumerar os motivos da sua presença ali. Contou, uma vez mais, a sua indignação pelos sucessos havidos com a história do livro de Etelvina, valeu-se, em jeito de apresentação curricular, dos inúmeros conseguimentos editoriais a que dera imagem, chegou, enfim, onde queria. Desejava saber se a Ideias Fantásticas – de que, confessava, ainda tinha ouvido falar muito pouco – não estaria aberta a contar com o seu trabalho, com os seus conhecimentos, com a sua experiência. E mais disse, fazendo uso de um termo técnico que vinha ouvindo nos últimos tempos, para assim dar um ar de quem estava por dentro do espírito dos tempos, tratando-se, por conseguinte, de um homem que, apesar da sua provecta idade, não deixava de acompanhar o avanço das ideias e dos tempos: «Estou convicto de que poderia ser uma mais-valia para a empresa.»
A doutora ouviu-o com grande tranquilidade e paz de espírito (Dom Quixote reparou que ela deveria ser uma praticante daquelas terapias ocidentais de nomes estranhos, que gozam de grande popularidade entre as classes altas urbanas nos dias de hoje, pois em cima da secretária estava um livro em cuja capa se via uma mulher pendurada de um tecto de cabeça para baixo, mas com grande ar de apaziguamento interior...) e, mal ele terminou, tomou a palavra. Tentou ser curta e directa e foi assim que se dirigiu ao nosso bravo cavaleiro em busca de emprego: «Meu querido amigo, compreendo bem a sua posição, a todos os títulos lastimáveis... Olhe, deixe-me primeiro apresentar-lhe a nossa editora, pois como disse e bem não conhece e isso apenas e certamente porque é muito recente no mercado. Vou-lhe contar: eu sou licenciada em Comunicação e Marketing e depois de concluído o meu curso, que adorei, cheguei a um mercado na área que estava super lotado. Pois então, o que é que eu fiz? Comprei um livro de auto-ajuda, para tentar chegar a uma decisão quanto à minha vida e que destino dar-lhe. Comecei a ler aquilo e depois de muito esforço de leitura achei que ali havia ideias a mais. Muito, muito palavreado, quando eu só queria uma dica! Foi então que ao olhar duas e três vezes para o livro que tinha comprado me dei conta que o Livro era um produto muito mal trabalhado entre nós, e foi então que tive uma ideia fantástica...»
Neste ponto do seu discurso, a doutora fez uma pequena pausa deliberadamente. Tudo para ver se o seu interlocutor tinha alcançado o ponto em que ela chegara à descoberta do nome da editora. «Ideia fantástica...» Como se Dom Quixote nem tugisse nem mugisse a tal respeito, ela continuou: «Prontos, foi aí! (a grafia de «prontos», com um s no final, transcrevemo-la tal qual a doutora – e muitos outros doutores hoje e dia – a empregou) Foi quando tive a ideia fantástica de me dedicar ao sector que resolvi adoptar a marca Ideias Fantásticas. Não, não foi uma coisa que tivesse feito de um dia para o outro, antes de a pôr em prática ainda fui trabalhar como Relações Públicas para uma multinacional ligada ao mundo das revistas e do Livro Oculto, e foi aí, durante essa experiência, que comecei, aos poucos e poucos, a percepcionar exactamente que rumo e que áreas de desenvolvimento queria imprimir ao sector do livro. Olhe, uma coisa vi logo, vi que os livros que o mercado oferecia eram produtos completamente desadequados das necessidades dos leitores e do público. Ai, as pessoas queriam outras coisas, coisas mais alegres, mais divertidas, histórias de vida, sobretudo, queriam histórias de vida, reais, palpáveis, tais como as delas, histórias em que se pudessem rever.»
Dom Quixote, ouvindo toda aquela lengalenga, ficando, nomeadamente, sem perceber qual a ligação entre o referido mundo das revistas e do Livro Oculto com a literatura, ia-se remexendo na sua cadeira e tornava-se-lhe cada vez mais penoso ali continuar, até porque já estava a ver para onde a conversa afunilava. Mas a doutora, que estava cheia de trabalho, lá continuava, contente por ter quem lhe ouvisse a história de vida, também ela, a sua, uma história de sucesso, uma história que até poderia ter lugar num livro, quem sabe... Depois de debitar as suas luminosas ideias a respeito do mercado livreiro, a doutora passou a concretizar, enumerando, alguns dos seus primeiros sucessos no domínio das vendas. «O nosso primeiro grande best seller foi a história surpreendente da Luisinha Ratita Cunha. Não sei se o Dom Quixote a conhece, talvez sim, a mais nova das irmãs Ratita Cunha, que casou com um médico e que depois veio a ser agredida fisicamente por ele indo parar ao hospital. Prontos, eu própria quando soube da história, fiquei escandalizada, e tomei a iniciativa, até como mulher e por uma questão de solidariedade, de ir falar com ela convencendo-a a pôr em livro toda a sua história». Foi um sucesso imediato. Para mais, conseguimos juntar às palavras fotos fantásticas de quando ela esteve no hospital e de logo a seguir, quando fez uma sessão fotográfica de estúdio – que nós patrocinámos – com um grande fotógrafo da praça. O público adorou e na verdade ficou um trabalho muito bonito. Porque nós conferimos dignidade àquelas imagens, ao contrário dos jornais, que tratam estas matérias com desprezo e sem qualidade gráfica nenhuma, nós fizemos um trabalho muito digno, a própria Luisinha adorou ver-se naquelas imagens e confessou-me mesmo que ver-se assim tão bela, apesar de cheia de nódoas negras e de um braço engessado, aquilo a ajudou a suportar as dores.»
Dom Quixote estava quase petrificado a ouvir tudo aquilo e mais ficou quando ouviu da boca da doutora os números de vendas, 50 mil exemplares esgotados numa semana. E calar-se com os seus best sellers? Qual quê!; enunciou depois a história do apresentador de futebol que relatou em livro as suas dificuldades e a discriminação de que foi alvo no seu meio profissional, na classe e no mundo desportivo, depois de ter confessado, numa edição em directo, que era gay, solidarizando-se assim com o caso de um futebolista que tinha sido expulso da sua equipa depois de apanhado nos balneários, antes de uma final europeia, com um dos bandeirinhas; passou de seguida à história de uma tia de Cascais que, participante outrora num concurso televisivo, viu a sua vida familiar ir por água abaixo quando o seu marido a trocou pela criada ucraniana e depois de ela o ter espremido até ao último cêntimo, após o que desapareceu com as pratas lá de casa, entrou numa crise depressiva que o levou, num momento de crise mais acentuado, a copular com o seu caniche. Pimpinita passou então por maus momentos e resolveu expurgar tudo num livro «maravilhoso, de uma entrega sublime», contando em «O Calvário de Pimpinita» (de subtítulo «Pitchi - O Prazer da Maldade») como, a partir de então, e depois de muitas consultas a médicos, a especialistas de dentro e de fora do país, tudo fez para conseguir restituir um pouco de alegria à vida do seu caniche que ficara «imensamente muito» traumatizado com a violação de que fora vítima, tanto mais que a sua única experiência sexual até àquele doloroso momento fora com ejaculações precoces com um cãozinho de pelúcia que ela lhe oferecera quando cumprira um ano de idade...
A história triste do caniche Pitchi fora demais para Dom Quixote. Farto que estava de ouvir as ideias fantásticas da doutora à sua frente, o cavaleiro levantou-se, pediu desculpa e afirmou que se retirava pois lhe parecia que, manifestamente, não se revia no tipo de histórias que achava deviam interessar à literatura e ao «negócio» dos livros. Pegando na sua lança e no elmo, Dom Quixote retirou-se então do gabinete da doutora e de mais um capítulo deste livro, uma vez mais sem definir linhas de rumo para a sua vida. A vida nos livros não é fácil, nem para os grandes cavaleiros da palavra. Teria de ir pregar para outra freguesia. Desistir é que não estava nos seus planos. Desistir só mesmo perante a morte, mas como esta ainda não desse mostras de o vir atazanar ou bater-lhe à porta, seguiria em frente, pelos seus ideais. De qualquer forma, no momento a verdade é que não dispunha de porta onde a morte pudesse vir bater-lhe... Tanto melhor para ele, tanto pior para ela.
Uma simpática jovem respirando saúde, forma física, boas maneiras e Chanel. A doutora da Ideias Fantásticas. Dom Quixote convicto de que poderia ser uma mais-valia. A história da editora. A história surpreendente de Luisinha Ratita Cunha. Pitchi.
D. Quixote demorou quase duas horas para atravessar Lisboa desde Belém até à antiga Praça do Areeiro e, como se adivinha, chegou à porta da Ideias Fantásticas como uma autêntica pilha de nervos. Já não bastassem, uma vez mais, o trânsito infernal e o calor impiedoso, ali chegado um outro problema – embora não original nesta história, mas há-de o leitor convir que não é fácil pensar onde se arruma um equídeo no meio de uma cidade – se lhe colocou. Onde deixar o Rocinante? Pasto, ali à volta não havia e a editora só tinha lugares de garagem para o carro do Editor Geral, pelo que a única solução foi optar pelo estacionamento pago da EMEL. Contrafeito e resmungando de si para consigo (como também já vai sendo hábito), Dom Quixote lá tirou uma moeda de uma pequena sacola que trazia por dentro da armadura e dirigiu-se ao parquímetro. Colocada a moeda na ranhura, voltou com o ticket na mão para junto do seu cavalo. Rocinante, bem estacionado, recebeu então do seu dono o dito ticket que, preso entre os dentes, provaria a sua legalidade enquanto utente rodoviário.
Tocando à campainha com afinco quem o veio receber foi uma simpática jovem que respirava saúde, forma física, boas maneiras e Chanel. Simpática e despachada, embora mantendo uma certa distância de reserva para com Dom Quixote, cujo aspecto a perturbou e lhe causou uma indisfarçável ligeira repulsa, a menina apresentou-se, dizendo chamar-se Coco, e perguntou ao cavaleiro se tinha entrevista ou reunião marcada e, já agora, se possível, com quem.
Que não, respondeu-lhe Dom Quixote, mas que desejava falar com a editora da Ideias Fantásticas, pois tinha uma proposta a fazer-lhe, quisesse fazer o favor de o apresentar, Dom Quixote era o seu nome, caso não soubesse. Com certeza, respondeu-lhe a menina Coco, pedindo-lhe que aguardasse um pouco que ela ia ver se a doutora o podia receber. «A doutora?...», intrigou-se o nosso protagonista, pondo-se a pensar que o mundo editorial tinha mudado bastante nas últimas décadas. Antes, os livros eram ofício de meros e simples amantes da palavra, das ideias, hoje os livros parecem entregues à classe dos doutores, gente que vê nos livros meros objectos comercializáveis, se possível geradores de riqueza, se possível o mais rapidamente possível.
Estava nestes considerandos para consigo, quando voltou à sala de espera a menina Coco com um sorriso a meia haste, declaradamente a contragosto. Transmitiu-lhe então que tivera muita sorte, pois a doutora já tinha chegado, já tinha bebido o café da manhã, e, pasmasse, tinha encontrado um buraco na agenda hiperpreenchida. Dom Quixote levantou-se e seguiu então a menina por um corredor que levava a uma porta ao fundo. Entrando no gabinete da «doutora», Dom Quixote sorriu, cumprimentando a dita. Era uma senhora dos seus quarenta e muitos, toda sorrisos, batom e unha pintadas de um vermelho garrido. Pulseiras de ouro, colares reluzindo a condizer, toda ela, entre o negro e o creme, transpirava um vestir caro e refinado, de marca comprada na Avenida da Liberdade ou quiçá mesmo nas exuberantes avenidas parisienses. Visse a distinta passeando na rua e jamais Dom Quixote afirmaria estar perante uma editora de livros. Era tal qual como havia poucos minutos atrás reflectia; adeus aos homens mal vestidos, de aspecto intelectual e óculos de hastes grossas e lentes garrafais na cara, agora o mercado queria outro tipo de profissionais, transpirando (e até este termo pode aqui desadequar-se...) glamour e modernidade. Dom Quixote não via mal nenhum nisso, de resto. Por que raio, aliás, as pessoas que lidam com o livro devem aparentar-se com ratazanas mal vestidas e mal amanhadas? Importava, sem dúvida, era que fossem competentes, que tratassem os livros com carinho e amor, que amassem as palavras, o toque nas encadernações, o cheiro a tinta quando ainda acabados de chegar das gráficas. Que, acima de tudo, prezassem as ideias, as histórias, as boas histórias. E quem dizia que esta «doutora» não era assim?
Dom Quixote apressou-se a voltar à terra e a pôr de lado esses pensamentos, até porque, como lhe fizera transparecer a secretária da doutora, esta não teria muito tempo disponível em agenda. Apresentou-se, ao que ela respondeu ser isso escusado pois que o conhecia bem e a sua história dos últimos dias era conhecida de todo o público em geral, e passou a enumerar os motivos da sua presença ali. Contou, uma vez mais, a sua indignação pelos sucessos havidos com a história do livro de Etelvina, valeu-se, em jeito de apresentação curricular, dos inúmeros conseguimentos editoriais a que dera imagem, chegou, enfim, onde queria. Desejava saber se a Ideias Fantásticas – de que, confessava, ainda tinha ouvido falar muito pouco – não estaria aberta a contar com o seu trabalho, com os seus conhecimentos, com a sua experiência. E mais disse, fazendo uso de um termo técnico que vinha ouvindo nos últimos tempos, para assim dar um ar de quem estava por dentro do espírito dos tempos, tratando-se, por conseguinte, de um homem que, apesar da sua provecta idade, não deixava de acompanhar o avanço das ideias e dos tempos: «Estou convicto de que poderia ser uma mais-valia para a empresa.»
A doutora ouviu-o com grande tranquilidade e paz de espírito (Dom Quixote reparou que ela deveria ser uma praticante daquelas terapias ocidentais de nomes estranhos, que gozam de grande popularidade entre as classes altas urbanas nos dias de hoje, pois em cima da secretária estava um livro em cuja capa se via uma mulher pendurada de um tecto de cabeça para baixo, mas com grande ar de apaziguamento interior...) e, mal ele terminou, tomou a palavra. Tentou ser curta e directa e foi assim que se dirigiu ao nosso bravo cavaleiro em busca de emprego: «Meu querido amigo, compreendo bem a sua posição, a todos os títulos lastimáveis... Olhe, deixe-me primeiro apresentar-lhe a nossa editora, pois como disse e bem não conhece e isso apenas e certamente porque é muito recente no mercado. Vou-lhe contar: eu sou licenciada em Comunicação e Marketing e depois de concluído o meu curso, que adorei, cheguei a um mercado na área que estava super lotado. Pois então, o que é que eu fiz? Comprei um livro de auto-ajuda, para tentar chegar a uma decisão quanto à minha vida e que destino dar-lhe. Comecei a ler aquilo e depois de muito esforço de leitura achei que ali havia ideias a mais. Muito, muito palavreado, quando eu só queria uma dica! Foi então que ao olhar duas e três vezes para o livro que tinha comprado me dei conta que o Livro era um produto muito mal trabalhado entre nós, e foi então que tive uma ideia fantástica...»
Neste ponto do seu discurso, a doutora fez uma pequena pausa deliberadamente. Tudo para ver se o seu interlocutor tinha alcançado o ponto em que ela chegara à descoberta do nome da editora. «Ideia fantástica...» Como se Dom Quixote nem tugisse nem mugisse a tal respeito, ela continuou: «Prontos, foi aí! (a grafia de «prontos», com um s no final, transcrevemo-la tal qual a doutora – e muitos outros doutores hoje e dia – a empregou) Foi quando tive a ideia fantástica de me dedicar ao sector que resolvi adoptar a marca Ideias Fantásticas. Não, não foi uma coisa que tivesse feito de um dia para o outro, antes de a pôr em prática ainda fui trabalhar como Relações Públicas para uma multinacional ligada ao mundo das revistas e do Livro Oculto, e foi aí, durante essa experiência, que comecei, aos poucos e poucos, a percepcionar exactamente que rumo e que áreas de desenvolvimento queria imprimir ao sector do livro. Olhe, uma coisa vi logo, vi que os livros que o mercado oferecia eram produtos completamente desadequados das necessidades dos leitores e do público. Ai, as pessoas queriam outras coisas, coisas mais alegres, mais divertidas, histórias de vida, sobretudo, queriam histórias de vida, reais, palpáveis, tais como as delas, histórias em que se pudessem rever.»
Dom Quixote, ouvindo toda aquela lengalenga, ficando, nomeadamente, sem perceber qual a ligação entre o referido mundo das revistas e do Livro Oculto com a literatura, ia-se remexendo na sua cadeira e tornava-se-lhe cada vez mais penoso ali continuar, até porque já estava a ver para onde a conversa afunilava. Mas a doutora, que estava cheia de trabalho, lá continuava, contente por ter quem lhe ouvisse a história de vida, também ela, a sua, uma história de sucesso, uma história que até poderia ter lugar num livro, quem sabe... Depois de debitar as suas luminosas ideias a respeito do mercado livreiro, a doutora passou a concretizar, enumerando, alguns dos seus primeiros sucessos no domínio das vendas. «O nosso primeiro grande best seller foi a história surpreendente da Luisinha Ratita Cunha. Não sei se o Dom Quixote a conhece, talvez sim, a mais nova das irmãs Ratita Cunha, que casou com um médico e que depois veio a ser agredida fisicamente por ele indo parar ao hospital. Prontos, eu própria quando soube da história, fiquei escandalizada, e tomei a iniciativa, até como mulher e por uma questão de solidariedade, de ir falar com ela convencendo-a a pôr em livro toda a sua história». Foi um sucesso imediato. Para mais, conseguimos juntar às palavras fotos fantásticas de quando ela esteve no hospital e de logo a seguir, quando fez uma sessão fotográfica de estúdio – que nós patrocinámos – com um grande fotógrafo da praça. O público adorou e na verdade ficou um trabalho muito bonito. Porque nós conferimos dignidade àquelas imagens, ao contrário dos jornais, que tratam estas matérias com desprezo e sem qualidade gráfica nenhuma, nós fizemos um trabalho muito digno, a própria Luisinha adorou ver-se naquelas imagens e confessou-me mesmo que ver-se assim tão bela, apesar de cheia de nódoas negras e de um braço engessado, aquilo a ajudou a suportar as dores.»
Dom Quixote estava quase petrificado a ouvir tudo aquilo e mais ficou quando ouviu da boca da doutora os números de vendas, 50 mil exemplares esgotados numa semana. E calar-se com os seus best sellers? Qual quê!; enunciou depois a história do apresentador de futebol que relatou em livro as suas dificuldades e a discriminação de que foi alvo no seu meio profissional, na classe e no mundo desportivo, depois de ter confessado, numa edição em directo, que era gay, solidarizando-se assim com o caso de um futebolista que tinha sido expulso da sua equipa depois de apanhado nos balneários, antes de uma final europeia, com um dos bandeirinhas; passou de seguida à história de uma tia de Cascais que, participante outrora num concurso televisivo, viu a sua vida familiar ir por água abaixo quando o seu marido a trocou pela criada ucraniana e depois de ela o ter espremido até ao último cêntimo, após o que desapareceu com as pratas lá de casa, entrou numa crise depressiva que o levou, num momento de crise mais acentuado, a copular com o seu caniche. Pimpinita passou então por maus momentos e resolveu expurgar tudo num livro «maravilhoso, de uma entrega sublime», contando em «O Calvário de Pimpinita» (de subtítulo «Pitchi - O Prazer da Maldade») como, a partir de então, e depois de muitas consultas a médicos, a especialistas de dentro e de fora do país, tudo fez para conseguir restituir um pouco de alegria à vida do seu caniche que ficara «imensamente muito» traumatizado com a violação de que fora vítima, tanto mais que a sua única experiência sexual até àquele doloroso momento fora com ejaculações precoces com um cãozinho de pelúcia que ela lhe oferecera quando cumprira um ano de idade...
A história triste do caniche Pitchi fora demais para Dom Quixote. Farto que estava de ouvir as ideias fantásticas da doutora à sua frente, o cavaleiro levantou-se, pediu desculpa e afirmou que se retirava pois lhe parecia que, manifestamente, não se revia no tipo de histórias que achava deviam interessar à literatura e ao «negócio» dos livros. Pegando na sua lança e no elmo, Dom Quixote retirou-se então do gabinete da doutora e de mais um capítulo deste livro, uma vez mais sem definir linhas de rumo para a sua vida. A vida nos livros não é fácil, nem para os grandes cavaleiros da palavra. Teria de ir pregar para outra freguesia. Desistir é que não estava nos seus planos. Desistir só mesmo perante a morte, mas como esta ainda não desse mostras de o vir atazanar ou bater-lhe à porta, seguiria em frente, pelos seus ideais. De qualquer forma, no momento a verdade é que não dispunha de porta onde a morte pudesse vir bater-lhe... Tanto melhor para ele, tanto pior para ela.
quinta-feira, 20 de dezembro de 2007
terça-feira, 18 de dezembro de 2007
A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Capítulo XV
XV.
Besta?! Ai, eu sabia que me iam chamar nomes. Vendas zero! Uns artistas! Uns intelectuais do verbo. Tudo bem explicado ao Zé. Um prémio literário para escritores-fantasmas. Não teria o director passado ao lado de uma grande carreira no marketing?
«Fantasma, tenho a solução para os teus problemas», disse o director editorial da Dom Chicote a José Salvador, vulgo escritor-fantasma, quando este chegou cabisbaixo ao escritório para uma reunião na qual, julgava, o director lhe iria dar um grande puxão de orelhas. O que, para seu espanto, não aconteceu.
Quando o escritor-fantasma entrou o director pediu-lhe que fechasse a porta, dizendo-lhe apenas um «temos que conversar» que logo, logo arrepiou de alto a baixo o pobre Zé pretendente a escritor de sucesso, leia-se best seller, ou, no entendimento de Vi Prazeres, «besta célere» – pois foi isso que ela perguntou ao director quando aquele lhe disse que ela já o era; o quê? Best seller! E ela: «Besta?! Ai, eu sabia que me iam chamar nomes, mas isso eu não vou deixar que aconteça, eu não admito, eu vou falar com o meu advogado, ai vou, isso vou, eu sabia, director...» Aproximando-se do Zé, o director dá-lhe umas palmadinhas nas costas entretendo com ele a conversa que se reproduz:
– Então, aqui para nós, que ninguém nos ouve, gostavas de ser escritor, hã Zé, é isso?
– Pois, quer dizer, senhor director, eu até gostava...
– Sim, senhor, sim senhor, ora então mais um escritor... Sabes, Zé, eu até nem vejo mal nisso, é profissão que hoje em dia muita gente escolhe, a entrada para o ramo encontra-se hoje mais facilitada e tal... agora, agora é preciso é reunir umas certas condições que, para te ser sincero, Zé, eu não sei se tu reúnes...
– Mas... mas que condições, senhor director... o senhor director até sabe que eu escrevo umas coisitas bem arranhadas.
– Sim, sem dúvida, e sobretudo tens a noção de experiência feita de por onde não te deves meter...
– Está a falar dos hermetismos...
– Ora, ora, ora, estás a ver como tu chegas lá! Nem mais! Epá, ó Zé, essa escrita que praí anda, com tanta malta a escrever assim, transpira depressão e morbidez, não há pachorra ou mente sã que aguente aquilo. Um gajo começa a ler de boa saúde e é uma sorte se quando acabar o livro não tiver de se meter em consultas psiquiátricas. E depois, depois já se sabe, chegam ao mercado e nada, vendas zero! Uns artistas! Uns intelectuais do verbo.
– Pois, artista eu... eu não quero ser, quero ser é escritor. Quer dizer, gostava, tinha gosto assim... assim em também, naturalmente, vender muitos livros, aparecer nas capas dos jornais e das revistas da especialidade, dar entrevistas...
– ... pois, pois, pois, pois é Zézinho, mas é precisamente aí, é aí nesse ponto que a porca torce o rabo. Ouve o que te digo, ouve bem o que te digo enquanto teu amigo que anda há muitos anos nesta vida e tu sabes disso! Ó Zé, epá... como é que eu te hei-de dizer isto... é que, é que... prontos, o que se passa é que a tua imagem não é famosa, convenhamos, falta-te um palminho de cara, ninguém te conhece e hoje em dia, tu sabes disso, sabes que se não tiveres uma imagem morres... Epá, morres, morres antes de chegares às bancas! Não leves a mal, Zé, e desculpa a frontalidade que só a minha amizade por ti permite, mas eu acho que uma fotografia tua numa capa até era capaz de assustar o leitor. Ah, ah, ah... Tenho ou não tenho razão?
– Pois... pois... se calhar o senhor director tem razão...
– É claro que tenho razão Zé, se eu não tivesse razão não tinha chegado onde cheguei, não tínhamos neste momento em mãos uma au-to-ra como a Prazeres. Mas ouve cá, então tu não estás satisfeito por seres um escritor-fantasma? Eu não sei como é, mas acredito que isso até há-de ajudar no engate das miúdas, não? Tipo: «O que é que eu faço na vida? Sou fantasma, escritor-fantasma.» Bem, deve ser de as deixar com um nervoso miudinho... Sabes como elas gostam do pessoal que tem assim profissões misteriosas, ficam logo todas entusiasmadas... Isto já para não falar do resto, pá, não tens que andar nas sessões de autógrafos, não tens que te preocupar com encontros de escritores, olha, não tens de aturar editores com o corta aqui, corta acolá, aumenta este capítulo, corta aquele, e aqui esta personagem isto, aquela aquilo e não sei que mais... Vê as coisas pelo lado positivo. Ninguém te chateia, pá, os críticos quando decidem morder é nos outros... Um espectáculo de trabalho, colhes a parte boa e a má deixas para os outros! E digo-te mais, aqui uma coisa para ficar entre nós, a verdade verdadinha é que eu acho mesmo que a maior parte dos escritores afirmados e com reconhecimento público dariam tudo para serem escritores-fantasmas.
– Pois... o senhor director desculpe... provavelmente tem razão, toda a razão. É que eu julgava que ser conhecido até era muito bom e há tanta gente que hoje publica... e depois sempre podia concorrer aos prémios literários que até me podiam dar uns dinheirinhos extra...
– Ouve cá, ó Zé, se o teu problema é esse, eu arranjo uma ideia qualquer para te ajudar. Arranja-se qualquer coisa cá em casa, dentro de portas, uma coisa que te anime... deixa-me pensar. Mas olha, isso dos prémios até é capaz de me dar uma ideia. Já sei. Cria-se um prémio literário para escritores-fantasmas a que tu poderás concorrer enquanto tal. Pede-se um patrocínio à Câmara e depois, bem... depois já sabes como é... a malta envia os textos... e... e o júri... o júri a gente escolhe e depois escolhe. Na sombra, claro!... Pode ser que tu ganhes... Dá-se um jeitinho... pronto, ganhas umas massas! Isto é, umas massas para ti, outra parte... enfim, tu sabes, tudo dividido de forma justa... a cada um a justa retribuição do seu trabalho e das suas ideias.
– Então e se alguém...
– Se, se, se nada, Zé! Então tu achas que algum escritor -fantasma teu concorrente vai duvidar ou questionar a decisão? E mesmo que duvide nenhum certamente há-de querer dar a cara. É que se a derem é porque, na verdade, não são autênticos escritores fantasma, pois esses nunca se dão a conhecer! Estás mesmo a ver nas notícias: «Escritor-fantasma contesta decisão de concurso literário»! Impossível, não é? Tinha a carreira arruinada. Como é, mais animado? Estamos conversados para já?
– Sim, senhor director, vou começar a pensar num romance...
– Isso, isso, vai pensando. E vai também pensando no novo livro da Etelvina Prazeres. Já tenho umas ideias sobre a coisa, mas depois falamos sobre isso.
– Está bem, senhor director e desculpe aquilo que me deu ao telefone... passei-me um bocadinho, não foi?
– Foi, rapaz, passaste-te mas já passou. Agora, mãos ao trabalho, temos autores à espera de obras!
– Vou já escrever, senhor director, obrigado por tudo.
Pronto. A história do fantasma estava resolvida. Era mais uma chatice pensar o raio do concurso, mas se calhar, pela originalidade, a coisa ainda daria alguma publicidade de borla à editora. De resto, um dos editores trataria do assunto, ele, enquanto director, só teria de controlar o valor do prémio, dar o OK final à decisão do júri e pouco mais. O director começava a achar que o contacto com a Imagem Mais lhe começava a trazer proveitos e a dar ideias; quem sabe não tinha passado ao lado de uma brilhante carreira no marketing?
Besta?! Ai, eu sabia que me iam chamar nomes. Vendas zero! Uns artistas! Uns intelectuais do verbo. Tudo bem explicado ao Zé. Um prémio literário para escritores-fantasmas. Não teria o director passado ao lado de uma grande carreira no marketing?
«Fantasma, tenho a solução para os teus problemas», disse o director editorial da Dom Chicote a José Salvador, vulgo escritor-fantasma, quando este chegou cabisbaixo ao escritório para uma reunião na qual, julgava, o director lhe iria dar um grande puxão de orelhas. O que, para seu espanto, não aconteceu.
Quando o escritor-fantasma entrou o director pediu-lhe que fechasse a porta, dizendo-lhe apenas um «temos que conversar» que logo, logo arrepiou de alto a baixo o pobre Zé pretendente a escritor de sucesso, leia-se best seller, ou, no entendimento de Vi Prazeres, «besta célere» – pois foi isso que ela perguntou ao director quando aquele lhe disse que ela já o era; o quê? Best seller! E ela: «Besta?! Ai, eu sabia que me iam chamar nomes, mas isso eu não vou deixar que aconteça, eu não admito, eu vou falar com o meu advogado, ai vou, isso vou, eu sabia, director...» Aproximando-se do Zé, o director dá-lhe umas palmadinhas nas costas entretendo com ele a conversa que se reproduz:
– Então, aqui para nós, que ninguém nos ouve, gostavas de ser escritor, hã Zé, é isso?
– Pois, quer dizer, senhor director, eu até gostava...
– Sim, senhor, sim senhor, ora então mais um escritor... Sabes, Zé, eu até nem vejo mal nisso, é profissão que hoje em dia muita gente escolhe, a entrada para o ramo encontra-se hoje mais facilitada e tal... agora, agora é preciso é reunir umas certas condições que, para te ser sincero, Zé, eu não sei se tu reúnes...
– Mas... mas que condições, senhor director... o senhor director até sabe que eu escrevo umas coisitas bem arranhadas.
– Sim, sem dúvida, e sobretudo tens a noção de experiência feita de por onde não te deves meter...
– Está a falar dos hermetismos...
– Ora, ora, ora, estás a ver como tu chegas lá! Nem mais! Epá, ó Zé, essa escrita que praí anda, com tanta malta a escrever assim, transpira depressão e morbidez, não há pachorra ou mente sã que aguente aquilo. Um gajo começa a ler de boa saúde e é uma sorte se quando acabar o livro não tiver de se meter em consultas psiquiátricas. E depois, depois já se sabe, chegam ao mercado e nada, vendas zero! Uns artistas! Uns intelectuais do verbo.
– Pois, artista eu... eu não quero ser, quero ser é escritor. Quer dizer, gostava, tinha gosto assim... assim em também, naturalmente, vender muitos livros, aparecer nas capas dos jornais e das revistas da especialidade, dar entrevistas...
– ... pois, pois, pois, pois é Zézinho, mas é precisamente aí, é aí nesse ponto que a porca torce o rabo. Ouve o que te digo, ouve bem o que te digo enquanto teu amigo que anda há muitos anos nesta vida e tu sabes disso! Ó Zé, epá... como é que eu te hei-de dizer isto... é que, é que... prontos, o que se passa é que a tua imagem não é famosa, convenhamos, falta-te um palminho de cara, ninguém te conhece e hoje em dia, tu sabes disso, sabes que se não tiveres uma imagem morres... Epá, morres, morres antes de chegares às bancas! Não leves a mal, Zé, e desculpa a frontalidade que só a minha amizade por ti permite, mas eu acho que uma fotografia tua numa capa até era capaz de assustar o leitor. Ah, ah, ah... Tenho ou não tenho razão?
– Pois... pois... se calhar o senhor director tem razão...
– É claro que tenho razão Zé, se eu não tivesse razão não tinha chegado onde cheguei, não tínhamos neste momento em mãos uma au-to-ra como a Prazeres. Mas ouve cá, então tu não estás satisfeito por seres um escritor-fantasma? Eu não sei como é, mas acredito que isso até há-de ajudar no engate das miúdas, não? Tipo: «O que é que eu faço na vida? Sou fantasma, escritor-fantasma.» Bem, deve ser de as deixar com um nervoso miudinho... Sabes como elas gostam do pessoal que tem assim profissões misteriosas, ficam logo todas entusiasmadas... Isto já para não falar do resto, pá, não tens que andar nas sessões de autógrafos, não tens que te preocupar com encontros de escritores, olha, não tens de aturar editores com o corta aqui, corta acolá, aumenta este capítulo, corta aquele, e aqui esta personagem isto, aquela aquilo e não sei que mais... Vê as coisas pelo lado positivo. Ninguém te chateia, pá, os críticos quando decidem morder é nos outros... Um espectáculo de trabalho, colhes a parte boa e a má deixas para os outros! E digo-te mais, aqui uma coisa para ficar entre nós, a verdade verdadinha é que eu acho mesmo que a maior parte dos escritores afirmados e com reconhecimento público dariam tudo para serem escritores-fantasmas.
– Pois... o senhor director desculpe... provavelmente tem razão, toda a razão. É que eu julgava que ser conhecido até era muito bom e há tanta gente que hoje publica... e depois sempre podia concorrer aos prémios literários que até me podiam dar uns dinheirinhos extra...
– Ouve cá, ó Zé, se o teu problema é esse, eu arranjo uma ideia qualquer para te ajudar. Arranja-se qualquer coisa cá em casa, dentro de portas, uma coisa que te anime... deixa-me pensar. Mas olha, isso dos prémios até é capaz de me dar uma ideia. Já sei. Cria-se um prémio literário para escritores-fantasmas a que tu poderás concorrer enquanto tal. Pede-se um patrocínio à Câmara e depois, bem... depois já sabes como é... a malta envia os textos... e... e o júri... o júri a gente escolhe e depois escolhe. Na sombra, claro!... Pode ser que tu ganhes... Dá-se um jeitinho... pronto, ganhas umas massas! Isto é, umas massas para ti, outra parte... enfim, tu sabes, tudo dividido de forma justa... a cada um a justa retribuição do seu trabalho e das suas ideias.
– Então e se alguém...
– Se, se, se nada, Zé! Então tu achas que algum escritor -fantasma teu concorrente vai duvidar ou questionar a decisão? E mesmo que duvide nenhum certamente há-de querer dar a cara. É que se a derem é porque, na verdade, não são autênticos escritores fantasma, pois esses nunca se dão a conhecer! Estás mesmo a ver nas notícias: «Escritor-fantasma contesta decisão de concurso literário»! Impossível, não é? Tinha a carreira arruinada. Como é, mais animado? Estamos conversados para já?
– Sim, senhor director, vou começar a pensar num romance...
– Isso, isso, vai pensando. E vai também pensando no novo livro da Etelvina Prazeres. Já tenho umas ideias sobre a coisa, mas depois falamos sobre isso.
– Está bem, senhor director e desculpe aquilo que me deu ao telefone... passei-me um bocadinho, não foi?
– Foi, rapaz, passaste-te mas já passou. Agora, mãos ao trabalho, temos autores à espera de obras!
– Vou já escrever, senhor director, obrigado por tudo.
Pronto. A história do fantasma estava resolvida. Era mais uma chatice pensar o raio do concurso, mas se calhar, pela originalidade, a coisa ainda daria alguma publicidade de borla à editora. De resto, um dos editores trataria do assunto, ele, enquanto director, só teria de controlar o valor do prémio, dar o OK final à decisão do júri e pouco mais. O director começava a achar que o contacto com a Imagem Mais lhe começava a trazer proveitos e a dar ideias; quem sabe não tinha passado ao lado de uma brilhante carreira no marketing?
segunda-feira, 17 de dezembro de 2007
A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Capítulo XIV
XIV.
Um falso suicídio falhado. Um sonho interrompido com uma bolada na cabeça. Ô quirido, sem essa, vai! Xô! Talking of Dom, I must say I rather prefer our good old Don DeLillo. As más intenções. Ao ataque! Ao ataque!
Depois da conversa fruste havida com o director editorial da Escrever Direito Por Linhas Tortas, Dom Quixote acabou o final da tarde junto às águas do Tejo, tendo cavalgado até aos jardins da Torre de Belém, onde, nos relvados, à sombra de uma árvore, acabou por descansar, uma vez que o desânimo tinha novamente caído sobre si. Não foi fácil ali chegar, uma vez que o cavaleiro desconhecia o caminho a tomar. Chegou-se ao pé do Centro Cultural de Belém e, sem demoras, arriscou-se a atravessar ali mesmo a estrada, bem como a linha de comboio. Foi uma aventura e só por um triz a façanha não tivera final aziago, já que o comboio que vinha de Algés por pouco não o desfez em tiras. Quem viu, contou aos jornais e logo estes, no dia seguinte, trataram de refazer o filme dos factos garantindo em primeira página que o triste cavaleiro tentara o suicídio e falhara. «Dom Quixote investe pela morte», «Quixote, a desistência de um bravo», «Dom Quixote tenta o ponto final», «Dom Quixote, m capítulo para esquecer», eis alguns dos títulos que surgiram e que fizeram as delícias do povo, que assim seguia as andanças do cavaleiro como se de uma novela se tratasse. Quais seriam as cenas dos próximos capítulos?
Muita gente de cá para lá, crianças a jogar futebol, cães a correr que nem doidos, homens e mulheres pedalando bicicletas de montanha, muitos turistas de várias nacionalidades chegando em bandos e em autocarros, um ou outro cigano tentando vender relógios, óculos escuros, uma ou outra cigana negociando o futuro lido nas mãos a troco de cinco euros, uma azáfama! Recostado sobre as raízes de uma das frondosas árvores que ali existem, Dom Quixote, que não ficara minimamente atrapalhado com a situação do comboio, na verdade mal deu por ele tal a surdez que o afectava, depôs a lança a seu lado, aconselhou ao Rocinante que pastasse um pouco de relva, baixou a viseira do elmo e preparou-se para uma siesta.
Estava precisamente a entrar no primeiro sonho, antevendo um quadro idílico onde a sua bela Dulcineia lhe aparecia, sorrindo e sublime, de manto alvo descaindo sobre os ombros, pousada sobre nuvens brancas, quando uma bolada lhe acerta em cheio na cabeça. Atazanado, acorda em sobressalto e desata a língua num rol de imprecações para um miúdo que se aproximara para ir buscar a bola, vociferando cobras e lagartos, numa asneirada daquelas, bem à espanhola, que, uma vez mais, nem convém aqui citar. Foi-se então dali, pegando nas rédeas do seu alazão, e dirigindo-se ao café ali próximo. Chegado ao pequeno carreiro de pedra que leva à porta do estabelecimento, tratou de aí prender a sua montada. Dirigiu-se ao interior e pôs-se na fila para ser atendido. Serviu-se disto e daquilo, do mais e do que lhe aprouve, e uma vez na caixa registadora, pede-lhe a menina quantia avultada, de euros para cima de vinte! Dom Quixote nem queria acreditar; «setenta cêntimos um café?» – perguntou com ar de quem se sentia roubado. «Ó quirido», volveu-lhe uma empregada brasileira sem lhe dar grande importância, «não vem que não tem pra cima de mim, ‘cê só ‘tá pagando aquilo qui qué comê. Se ‘cê está se sentindo roubado, vá falá com o patrão, agora nem pense em mi xingá. Sem essa, vai! Xô!» Dom Quixote ficou-se com aquela resposta pronta e na ponta língua (afiada, sim!), pegou na sua bandeja e foi sentar-se na esplanada exterior.
«Hi, excuse me, is that really you? Dom Quixote himself?», chega-se-lhe à beira uma americana que estava sentada numa mesa ao lado da dele. «Como diz?», responde-lhe o cavaleiro denotando falta de paciência para tanta interpelação. «Well, well, what about this? Or well you are, or you can only be nuts, wearing that… that steel thing when’s so dam hot! Uau, Portugal is full of surprises, don’t you think so, darling?», virando-se para o marido, um poste de quase dois metros de altura, branco como o leite e certamente campeão de sardas lá no seu bairro, mais parecendo um hambúrguer do que uma pessoa. «Well, honey, he might very well be who you think he is, but, as far as it concerns to me, talking of Dom, I must say I rather prefer our good old Don DeLillo», respondeu-lhe o «pronto a comer» mais indignando o cavaleiro de triste figura que assim, e para que não tivesse de dar resposta à altura, se viu na circunstância de ter de se levantar e ir «colher amoras ao jardim».
Aos poucos a luz ia-se diluindo. A tarde despedia-se e com ela a grande maioria daqueles que por ali desfrutavam da bonomia do tempo e da beleza do lugar. Dom Quixote pegou nas rédeas do seu cavalo e dirigiu-se para os relvados a escolher uma boa árvore sob a qual se recolher e deitar, pensando já na noite que ali teria de passar. E a noite veio. Dom Quixote contorceu-se e remexeu-se mil e uma vezes até encontrar posição minimamente confortável que lhe permitisse dormir em paz e não acordar na manhã seguinte com um qualquer torcicolo ou dor nas costas. Fechou os olhos e para se tentar alhear dos problemas que lhe entretinham a mente sem dar tréguas, tentou assobiar uma zarzuela. Depois, o pensamento voltou a esgueirar-se-lhe e deu com ele a pensar nos muitos anos que tinha passado na editora, nos bons e nos maus momentos, mas sobretudo nos bons, que os maus, felizmente, tinham sido muito poucos.
Por fim adormeceu. Tão cansado estava das suas deambulações pela frenética Lisboa, que nem deu pelos mosquitos que trataram de lhe sugar o sangue a noite inteira. Não deu sequer pelos flashes das máquinas fotográficas de alguns paparazzi portugueses que tentavam arranjar material para vender às revistas e aos jornais. Para seu conforto de alma, teve a sorte de ser novamente visitado pelo sonho que a maldita bolada do miúdo que se dizia ser o Ronaldo tinha interrompido. Agora, sem futebol à sua volta, o sonho, sim, seguia bom curso e concretizava-se num beijo demorado e apaixonado que Dulcineia oferecia aos lábios do velho cavaleiro. Foi isso já a madrugada se levantava e sem perceber nem como nem porquê Dom Quixote abriu os olhos e à sua frente só via o focinho do Rocinante que o lambia de bom grado como se lhe quisesse lavar a cara e fazer desaparecer as ramelas.
Meio estremunhado, ainda mal se tendo direito nas pernas bamboleantes, Dom Quixote tentou abrir bem os olhos mas era tamanha a brancura da luz que o sol já por ali derramava que o cavaleiro viu-se algo contundido e atordoado, tendo apenas tido tempo para vislumbrar à sua frente, e a poucos metros de distância, um grupo de pessoas que, não teve dúvidas, àquela hora ali tão cedo não podiam de certeza ter boas intenções quanto à sua figura. Abriam os braços em estranhos movimentos de contenção, levantam uma perna para aqui, outra para acolá, baixavam o dorso, voltavam a abrir os braços como se numa luta de karaté, não, não podia ser boa coisa o que se preparavam para fazer. Queriam, de certeza, roubá-lo, despojá-lo dos seus últimos euros, quem sabe, atentar contra a sua vida ou roubar-lhe o Rocinante. Sim, era isso, queriam o seu alazão, e daí que não fizessem qualquer barulho naquelas suas movimentações suspeitas. «Ah, mas não, se pensam que apanham este velho guerreiro, bem enganados estão, ainda têm que fazer muito mais do que esses gestos patéticos para me apanharem», pensou Dom Quixote ao mesmo tempo que agarrou na sua lança, ergueu-se a custo para a garupa do Rocinante e logo investiu contra o grupo, gritando: «Ao ataque! Ao ataque!»
O estrépito e a gritaria com que Dom Quixote se atirou sobre aquelas pobres almas, que mais não faziam do que apaziguar os seus espíritos, irmanando os seus gestos aos dos animais, tentando a simbiose perfeita entre o seu respirar e o brando rumorejar da Natureza, causou uma pequena revolução junto à Torre de Belém. Até os ciganos que já por ali cirandavam deram à sola, pondo-se a milhas e a salvo daquele inaudito cavaleiro que só podia ser do Apocalipse! Valeu que a intervenção rápida da GNR a cavalo pôs cobro à situação e acalmou os ânimos. Os agentes, já a par da situação e apercebendo-se de quem tinham pela frente, decidiram dar ao cavaleiro o devido desconto (não se sabe se por via da loucura que lhe reconheciam, se por pena dele e compreensão face à situação difícil em que se encontrava) e simplesmente mandaram-no ir à sua vida. Quanto aos iogas, até ficaram contentes pois a fuga que empreenderam deu-lhes a perceber (pelo menos assim concluíram do facto) que tinham encarnado na perfeição a destreza e rapidez das lebres.
Retomando a sua marcha pela cidade, os nervos refeitos e mais calmo, Dom Quixote predispôs-se a bater a nova porta editorial. Não podia dizer-se que o dia tivesse começado da melhor maneira, mas ele estava confiante em que a sorte mudaria. Antes, porém, havia que tratar da carcaça, isto é, do diabo da armadura que continuava a ranger por todos os lados numa chinfrineira de dar cabo dos ouvidos a qualquer um. Dom Quixote foi-se então até Algés, onde julgou encontrar uma oficina onde arranjasse quem lhe oleasse as juntas. Chegando à porta de uma, entrou pela garagem e foi um ver se te avias com o Rocinante a derrapar para trás e para diante nos óleos que se encontravam derramados no chão. Em cima da garupa, Dom Quixote tentava equilibrar-se mais parecendo que concorria num qualquer rodeo americano, daqueles em que os cowboys saem disparados de umas portinholas em cavalos bravos acabando, regra geral, e mais ou menos tempo passado, estirados no meio do chão poeirento, com sorte sem nenhum osso partido ou fracturado e com a cabeça inteira. Pois ali, o chão não era poeirento, era oleoso, de cimento e foi nele mesmo que às tantas Dom Quixote terminou com a sua montada também de cócoras a seu lado. A tropa de mecânicos que por ali andava ficou boquiaberta e quase todos, surpreendidos pela cena, deitaram a esconder-se atrás dos carros que reparavam, só depois se levantando vendo, também eles, quem era o ilustre e mediático cliente. E disso se apercebendo, acorreram depois a ajudar o pobre «ancião» (como um disse em surdina para outro) a levantar-se, ele que fazia um leve esgar de dor e apalpava o traseiro dorido pelo embate no chão duro.
Levantando-se com alguma dificuldade, a mão esquerda nas costas, a direita apoiando-se na lança, lá se recompôs o cavaleiro, desdenhando toda e qualquer ajuda dos mecânicos, a tempo de cumprimentar o chefe da oficina que à sua frente já se encontrava a querer saber que raio se passava e em que podia ele ajudar «o ilustre», como a ele se dirigiu. Se vinha a pensar em trocar o Rocinante por um carro em segunda mão? Se queria novas ferraduras para o animal? Se queria antes ver uma viatura mais jeitosa e poupadinha no consumo, que também se arranjavam? Dom Quixote agradeceu e disse que não, estranhando uma vez mais toda a gente parecer pensar que ele queria desfazer-se do seu velho companheiro. Não, não, que desejava apenas olear a maldita armadura que não se cansava de lhe azucrinar os ouvidos, bem como, cada vez mais, lhe dificultava os movimentos e a marcha, o que, em caso de contenda ou, em circunstâncias extremas, necessidade de fuga, podia revelar-se pormenor muito perigoso e nada despiciendo.
O mecânico chefe concordou e fez mesmo questão em fornecer de graça o óleo e a mão de obra para tal. Que era um prazer, que insistia, que não aceitava uma recusa, que a sua patroa até tinha lá em casa uma edição das suas aventuras e que havia de gostar muito de saber que ele lá tinha ido à oficina, quem sabe se calhar até mandava fazer uma placa a recordar a data, pois não era todos os dias que lhe entravam por ali adentro vips... «Não queremos, de modo nenhum, que o ilustre cavaleiro saia daqui enferrujado!», gracejou por fim, dando uma valente palmada no ombro do cavaleiro que foi projectado um passo em frente.
E assim ele próprio se pôs de volta de Dom Quixote, como damas em volta de uma noiva em prova de vestido, a despejar cuidadosamente uma gota de óleo aqui, outra acolá, à medida que, para aferir do bom andamento dos trabalhos, ia pedindo ao cavaleiro que levantasse o braço direito, depois o esquerdo, a perna, a outra, o calcanhar, etc. Terminada a operação de lubrificação, o chefe da oficina ainda perguntou a Dom Quixote se não gostaria que lhe fizessem um polimento geral, quem sabe, também, não estaria interessado «o ilustre cliente» numas rédeas mais modernas e desportivas para a sua montada? Coisas bonitas, Dom Quixote não imaginava quantas novidades já não existiam no mercado em matéria de «tunning equestre»... Agradecendo a ajuda e disponibilidade, embora recusando-as as ofertas finais por declarada falta de tempo, Dom Quixote agradeceu e despediu-se, levando o Rocinante pelas rédeas até ao exterior para só então seguir caminho até ao endereço da Ideias Fantásticas. Era a próxima editora a visitar. Quem sabe, a sua futura casa editorial.
Um falso suicídio falhado. Um sonho interrompido com uma bolada na cabeça. Ô quirido, sem essa, vai! Xô! Talking of Dom, I must say I rather prefer our good old Don DeLillo. As más intenções. Ao ataque! Ao ataque!
Depois da conversa fruste havida com o director editorial da Escrever Direito Por Linhas Tortas, Dom Quixote acabou o final da tarde junto às águas do Tejo, tendo cavalgado até aos jardins da Torre de Belém, onde, nos relvados, à sombra de uma árvore, acabou por descansar, uma vez que o desânimo tinha novamente caído sobre si. Não foi fácil ali chegar, uma vez que o cavaleiro desconhecia o caminho a tomar. Chegou-se ao pé do Centro Cultural de Belém e, sem demoras, arriscou-se a atravessar ali mesmo a estrada, bem como a linha de comboio. Foi uma aventura e só por um triz a façanha não tivera final aziago, já que o comboio que vinha de Algés por pouco não o desfez em tiras. Quem viu, contou aos jornais e logo estes, no dia seguinte, trataram de refazer o filme dos factos garantindo em primeira página que o triste cavaleiro tentara o suicídio e falhara. «Dom Quixote investe pela morte», «Quixote, a desistência de um bravo», «Dom Quixote tenta o ponto final», «Dom Quixote, m capítulo para esquecer», eis alguns dos títulos que surgiram e que fizeram as delícias do povo, que assim seguia as andanças do cavaleiro como se de uma novela se tratasse. Quais seriam as cenas dos próximos capítulos?
Muita gente de cá para lá, crianças a jogar futebol, cães a correr que nem doidos, homens e mulheres pedalando bicicletas de montanha, muitos turistas de várias nacionalidades chegando em bandos e em autocarros, um ou outro cigano tentando vender relógios, óculos escuros, uma ou outra cigana negociando o futuro lido nas mãos a troco de cinco euros, uma azáfama! Recostado sobre as raízes de uma das frondosas árvores que ali existem, Dom Quixote, que não ficara minimamente atrapalhado com a situação do comboio, na verdade mal deu por ele tal a surdez que o afectava, depôs a lança a seu lado, aconselhou ao Rocinante que pastasse um pouco de relva, baixou a viseira do elmo e preparou-se para uma siesta.
Estava precisamente a entrar no primeiro sonho, antevendo um quadro idílico onde a sua bela Dulcineia lhe aparecia, sorrindo e sublime, de manto alvo descaindo sobre os ombros, pousada sobre nuvens brancas, quando uma bolada lhe acerta em cheio na cabeça. Atazanado, acorda em sobressalto e desata a língua num rol de imprecações para um miúdo que se aproximara para ir buscar a bola, vociferando cobras e lagartos, numa asneirada daquelas, bem à espanhola, que, uma vez mais, nem convém aqui citar. Foi-se então dali, pegando nas rédeas do seu alazão, e dirigindo-se ao café ali próximo. Chegado ao pequeno carreiro de pedra que leva à porta do estabelecimento, tratou de aí prender a sua montada. Dirigiu-se ao interior e pôs-se na fila para ser atendido. Serviu-se disto e daquilo, do mais e do que lhe aprouve, e uma vez na caixa registadora, pede-lhe a menina quantia avultada, de euros para cima de vinte! Dom Quixote nem queria acreditar; «setenta cêntimos um café?» – perguntou com ar de quem se sentia roubado. «Ó quirido», volveu-lhe uma empregada brasileira sem lhe dar grande importância, «não vem que não tem pra cima de mim, ‘cê só ‘tá pagando aquilo qui qué comê. Se ‘cê está se sentindo roubado, vá falá com o patrão, agora nem pense em mi xingá. Sem essa, vai! Xô!» Dom Quixote ficou-se com aquela resposta pronta e na ponta língua (afiada, sim!), pegou na sua bandeja e foi sentar-se na esplanada exterior.
«Hi, excuse me, is that really you? Dom Quixote himself?», chega-se-lhe à beira uma americana que estava sentada numa mesa ao lado da dele. «Como diz?», responde-lhe o cavaleiro denotando falta de paciência para tanta interpelação. «Well, well, what about this? Or well you are, or you can only be nuts, wearing that… that steel thing when’s so dam hot! Uau, Portugal is full of surprises, don’t you think so, darling?», virando-se para o marido, um poste de quase dois metros de altura, branco como o leite e certamente campeão de sardas lá no seu bairro, mais parecendo um hambúrguer do que uma pessoa. «Well, honey, he might very well be who you think he is, but, as far as it concerns to me, talking of Dom, I must say I rather prefer our good old Don DeLillo», respondeu-lhe o «pronto a comer» mais indignando o cavaleiro de triste figura que assim, e para que não tivesse de dar resposta à altura, se viu na circunstância de ter de se levantar e ir «colher amoras ao jardim».
Aos poucos a luz ia-se diluindo. A tarde despedia-se e com ela a grande maioria daqueles que por ali desfrutavam da bonomia do tempo e da beleza do lugar. Dom Quixote pegou nas rédeas do seu cavalo e dirigiu-se para os relvados a escolher uma boa árvore sob a qual se recolher e deitar, pensando já na noite que ali teria de passar. E a noite veio. Dom Quixote contorceu-se e remexeu-se mil e uma vezes até encontrar posição minimamente confortável que lhe permitisse dormir em paz e não acordar na manhã seguinte com um qualquer torcicolo ou dor nas costas. Fechou os olhos e para se tentar alhear dos problemas que lhe entretinham a mente sem dar tréguas, tentou assobiar uma zarzuela. Depois, o pensamento voltou a esgueirar-se-lhe e deu com ele a pensar nos muitos anos que tinha passado na editora, nos bons e nos maus momentos, mas sobretudo nos bons, que os maus, felizmente, tinham sido muito poucos.
Por fim adormeceu. Tão cansado estava das suas deambulações pela frenética Lisboa, que nem deu pelos mosquitos que trataram de lhe sugar o sangue a noite inteira. Não deu sequer pelos flashes das máquinas fotográficas de alguns paparazzi portugueses que tentavam arranjar material para vender às revistas e aos jornais. Para seu conforto de alma, teve a sorte de ser novamente visitado pelo sonho que a maldita bolada do miúdo que se dizia ser o Ronaldo tinha interrompido. Agora, sem futebol à sua volta, o sonho, sim, seguia bom curso e concretizava-se num beijo demorado e apaixonado que Dulcineia oferecia aos lábios do velho cavaleiro. Foi isso já a madrugada se levantava e sem perceber nem como nem porquê Dom Quixote abriu os olhos e à sua frente só via o focinho do Rocinante que o lambia de bom grado como se lhe quisesse lavar a cara e fazer desaparecer as ramelas.
Meio estremunhado, ainda mal se tendo direito nas pernas bamboleantes, Dom Quixote tentou abrir bem os olhos mas era tamanha a brancura da luz que o sol já por ali derramava que o cavaleiro viu-se algo contundido e atordoado, tendo apenas tido tempo para vislumbrar à sua frente, e a poucos metros de distância, um grupo de pessoas que, não teve dúvidas, àquela hora ali tão cedo não podiam de certeza ter boas intenções quanto à sua figura. Abriam os braços em estranhos movimentos de contenção, levantam uma perna para aqui, outra para acolá, baixavam o dorso, voltavam a abrir os braços como se numa luta de karaté, não, não podia ser boa coisa o que se preparavam para fazer. Queriam, de certeza, roubá-lo, despojá-lo dos seus últimos euros, quem sabe, atentar contra a sua vida ou roubar-lhe o Rocinante. Sim, era isso, queriam o seu alazão, e daí que não fizessem qualquer barulho naquelas suas movimentações suspeitas. «Ah, mas não, se pensam que apanham este velho guerreiro, bem enganados estão, ainda têm que fazer muito mais do que esses gestos patéticos para me apanharem», pensou Dom Quixote ao mesmo tempo que agarrou na sua lança, ergueu-se a custo para a garupa do Rocinante e logo investiu contra o grupo, gritando: «Ao ataque! Ao ataque!»
O estrépito e a gritaria com que Dom Quixote se atirou sobre aquelas pobres almas, que mais não faziam do que apaziguar os seus espíritos, irmanando os seus gestos aos dos animais, tentando a simbiose perfeita entre o seu respirar e o brando rumorejar da Natureza, causou uma pequena revolução junto à Torre de Belém. Até os ciganos que já por ali cirandavam deram à sola, pondo-se a milhas e a salvo daquele inaudito cavaleiro que só podia ser do Apocalipse! Valeu que a intervenção rápida da GNR a cavalo pôs cobro à situação e acalmou os ânimos. Os agentes, já a par da situação e apercebendo-se de quem tinham pela frente, decidiram dar ao cavaleiro o devido desconto (não se sabe se por via da loucura que lhe reconheciam, se por pena dele e compreensão face à situação difícil em que se encontrava) e simplesmente mandaram-no ir à sua vida. Quanto aos iogas, até ficaram contentes pois a fuga que empreenderam deu-lhes a perceber (pelo menos assim concluíram do facto) que tinham encarnado na perfeição a destreza e rapidez das lebres.
Retomando a sua marcha pela cidade, os nervos refeitos e mais calmo, Dom Quixote predispôs-se a bater a nova porta editorial. Não podia dizer-se que o dia tivesse começado da melhor maneira, mas ele estava confiante em que a sorte mudaria. Antes, porém, havia que tratar da carcaça, isto é, do diabo da armadura que continuava a ranger por todos os lados numa chinfrineira de dar cabo dos ouvidos a qualquer um. Dom Quixote foi-se então até Algés, onde julgou encontrar uma oficina onde arranjasse quem lhe oleasse as juntas. Chegando à porta de uma, entrou pela garagem e foi um ver se te avias com o Rocinante a derrapar para trás e para diante nos óleos que se encontravam derramados no chão. Em cima da garupa, Dom Quixote tentava equilibrar-se mais parecendo que concorria num qualquer rodeo americano, daqueles em que os cowboys saem disparados de umas portinholas em cavalos bravos acabando, regra geral, e mais ou menos tempo passado, estirados no meio do chão poeirento, com sorte sem nenhum osso partido ou fracturado e com a cabeça inteira. Pois ali, o chão não era poeirento, era oleoso, de cimento e foi nele mesmo que às tantas Dom Quixote terminou com a sua montada também de cócoras a seu lado. A tropa de mecânicos que por ali andava ficou boquiaberta e quase todos, surpreendidos pela cena, deitaram a esconder-se atrás dos carros que reparavam, só depois se levantando vendo, também eles, quem era o ilustre e mediático cliente. E disso se apercebendo, acorreram depois a ajudar o pobre «ancião» (como um disse em surdina para outro) a levantar-se, ele que fazia um leve esgar de dor e apalpava o traseiro dorido pelo embate no chão duro.
Levantando-se com alguma dificuldade, a mão esquerda nas costas, a direita apoiando-se na lança, lá se recompôs o cavaleiro, desdenhando toda e qualquer ajuda dos mecânicos, a tempo de cumprimentar o chefe da oficina que à sua frente já se encontrava a querer saber que raio se passava e em que podia ele ajudar «o ilustre», como a ele se dirigiu. Se vinha a pensar em trocar o Rocinante por um carro em segunda mão? Se queria novas ferraduras para o animal? Se queria antes ver uma viatura mais jeitosa e poupadinha no consumo, que também se arranjavam? Dom Quixote agradeceu e disse que não, estranhando uma vez mais toda a gente parecer pensar que ele queria desfazer-se do seu velho companheiro. Não, não, que desejava apenas olear a maldita armadura que não se cansava de lhe azucrinar os ouvidos, bem como, cada vez mais, lhe dificultava os movimentos e a marcha, o que, em caso de contenda ou, em circunstâncias extremas, necessidade de fuga, podia revelar-se pormenor muito perigoso e nada despiciendo.
O mecânico chefe concordou e fez mesmo questão em fornecer de graça o óleo e a mão de obra para tal. Que era um prazer, que insistia, que não aceitava uma recusa, que a sua patroa até tinha lá em casa uma edição das suas aventuras e que havia de gostar muito de saber que ele lá tinha ido à oficina, quem sabe se calhar até mandava fazer uma placa a recordar a data, pois não era todos os dias que lhe entravam por ali adentro vips... «Não queremos, de modo nenhum, que o ilustre cavaleiro saia daqui enferrujado!», gracejou por fim, dando uma valente palmada no ombro do cavaleiro que foi projectado um passo em frente.
E assim ele próprio se pôs de volta de Dom Quixote, como damas em volta de uma noiva em prova de vestido, a despejar cuidadosamente uma gota de óleo aqui, outra acolá, à medida que, para aferir do bom andamento dos trabalhos, ia pedindo ao cavaleiro que levantasse o braço direito, depois o esquerdo, a perna, a outra, o calcanhar, etc. Terminada a operação de lubrificação, o chefe da oficina ainda perguntou a Dom Quixote se não gostaria que lhe fizessem um polimento geral, quem sabe, também, não estaria interessado «o ilustre cliente» numas rédeas mais modernas e desportivas para a sua montada? Coisas bonitas, Dom Quixote não imaginava quantas novidades já não existiam no mercado em matéria de «tunning equestre»... Agradecendo a ajuda e disponibilidade, embora recusando-as as ofertas finais por declarada falta de tempo, Dom Quixote agradeceu e despediu-se, levando o Rocinante pelas rédeas até ao exterior para só então seguir caminho até ao endereço da Ideias Fantásticas. Era a próxima editora a visitar. Quem sabe, a sua futura casa editorial.
sexta-feira, 14 de dezembro de 2007
E agora para um momento poético...
pelo andar da carruagem
(estranha gente vai nela)
não é difícil prever
que a poesia
será a próxima doença do século.
(estranha gente vai nela)
não é difícil prever
que a poesia
será a próxima doença do século.
A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Capítulo XIII
XIII.
Os tops não mentem. Os escritores urbano-light-pop e os ultra-light-desportivos. O Ensaio Sobre a Ceifeira. Vi o meu nome num livro e chorei. Um telefonema de uma câmara municipal. Confesso que Vi(vi). Os anseios do Salvador.
Os tops não deixavam mentir quem quisesse depreciar o talento de Vi Prazeres. Eram, de resto, puro cristal alcandorando-a a primeiro lugar nas tabelas de vendas. Etelvina, agora simplesmente Vi, continuava no topo das preferências dos leitores portugueses. Crise? Qual crise? De leitura? É como se vê? Os números, uma vez mais, falavam por si, galopando semana após semana. Tudo corria sobre rodas e numa grande lufa-lufa. Vi era um fenómeno, um best seller que envergonharia os escritores candidatos ao Nobel, que deixaria a pensar na vida até os escritores best sellers que a tinham antecedido e cujos títulos se arrastavam agora em lugares mais modestos nas tabelas de vendas. A coisa chegou ao ponto de num programa televisivo uma escritora light ter acusado a escrita de Vi de ser ultra-light e de não ter o mínimo de exigências estilísticas. Um crítico dirimiu mais tarde o assunto num artigo de jornal, separando as águas e considerando a primeira como fazendo parte dos escritores «urbano-light-pop», e Vi relegando-a para o lote dos «ultra-light-desportivos».
Verdade, verdadinha é que poucos títulos rivalizavam com o seu, só um podendo alcandorar-se a título de concorrente. Chamava-se «Ensaio Sobre a Ceifeira» e era de um autor galardoado cujos livros, fortemente politizados e críticos, suscitavam por regra grande polémica e brado. Quem andava também nas nuvens de contentamento era a editora, a também rebaptizada Dom Chicote, que esfregava as mãos à chegada de cada reporting de vendas. A administração chamara mesmo ao andar de cima da editora, onde tinha escritório, o director editorial para lhe dar os parabéns. Este agradeceu e deixou em cima da mesa a possibilidade de se retomar a política de prémios por objectivos atingidos...
Quanto a Vi, quando o director editorial a voltou a ver foi para acertarem datas e agenda quanto a novas iniciativas promocionais, de acordo já com o estipulado e sugerido pela equipa da Imagem Mais. Também já instruída pelas respectivas profissionais, no modo de aparecer em público, Vi chegou ao gabinete do director editorial com um livro debaixo do braço, o que muito o espantou, pois não lhe constava que ele gostasse de leitura. «Ora, ora, cara autora, como está? Então, o que andamos a ler? Não me diga que é o seu próximo livro...?», gracejou. «Ah, não, ainda não, é só um livro que vinha com uma revista que me entrevistou. Como as meninas do marketing me disseram para ter sempre um livro comigo, porque acham que isso é uma imagem de marca de um escritor, eu achei por bem trazer este. Acho estranho é não ter nada escrito... Só diz na capa “Livro em Branco”!!! Não percebo, mas olhe, sempre dá para o efeito e sempre posso rabiscar uma ideia ou outra.» O director achou que sim, que estava muito bem, que era óptimo para a sua imagem e passou ao que ali a trazia, notando também que Vi já não se fazia acompanhar do seu séquito de capangas protectores – como ela explicou, as meninas do marketing tinham-lhe dito que um bastava e bem disfarçado, de preferência, pois ter tantos homens de preto à sua volta criava um fosso entre si e o público, o que «não se desejava, pois não, logo agora que a sua carreira mal estava a começar?»
Sessões em escolas, «sem ter de ir ao quadro», sessões em livrarias, «só para autografar», uma homenagem de um clube desportivo que tinha um leão na insígnia, um convite para escrever um conto para uma revista do coração, um convite para uma palestra subordinada ao tema da «Escrita Delirante», eram muitas e diversificadas as propostas que o director editorial tinha para Vi. Antes, antes deveria começar por assinar algumas T-Shirts com a sua fotografia estampada que seriam ofertadas num concurso literário ao qual a Dom Chicote dera o nome «Vi o meu nome num livro e chorei». A própria Vi, ao saber da novidade, choramingou timidamente, ao que o director editorial lhe facultou um lencinho de papel. «Ai, minha querida autora, se é para chorar, chore tudo agora que ainda não lhe disse o melhor. Ouça, ouça bem, recebemos um telefonema de uma Câmara Municipal... querem que você se desloque à cidade para que aí participe numa residência de escritores com vista à elaboração de um livro de contos sobre a experiência. Hã? Que tal?» Vi ficou algo perturbada com a notícia, pois ainda não se acostumara àquelas vidas de escritores. «Ai, confesso-lhe, nunca pensei que ser escritor fosse tão extenuante. E em que hotel é que vou ficar? Sabe quantas malas posso levar? E o meu escritor-fantasma, vai comigo para escrever o conto?»
O director editorial disse-lhe que não, que daquela vez não porque senão o fantasma dar-se-ia a conhecer e deixaria de o ser, pelo que teria de ser ela a descartar uma qualquer historieta que eles de certeza compravam a coisa, comprariam tudo tal era o sucesso do seu nome no mundo das letras. Vendo que Vi se assustara com a ideia de ter de engendrar e, pior, escrever um conto, o director editorial pediu-lhe que se acalmasse, dizendo-lhe que tinha a certeza de que ela saberia estar à altura do problema. Ela, ao contrário, dizia-lhe, «olhe que não, olhe que não, ai, como é que vai ser? Mas... e o escritor-fantasma, ele não podia ir fazendo-se passar por meu acompanhante?» O director disse que isso estava fora de questão, pois não era líquido que quem quer que fosse de bom senso e um palmo de testa acreditasse que um rapaz tão deslavado pudesse ser o amante, isto é, o companheiro de Vi. Isto dizendo e observando que a tremedeira não lhe passava, passou a um outro assunto que sabia iria encantar a sua autora e acalmá-la. Disse-lhe que era um convite algo sui generis – ela perguntou o que era isso dos «Genesis» serem para ali chamados ao assunto, que gostava mais era do Robbie Williams –, e concretizou: «Uma revista masculina de grande circulação quer fazer uma sessão fotográfica consigo. Uma coisa simples, querem-na em lingerie às riscas azuis e brancas, em cima de um cavalo e com um chicote na mão. Fantástico, não? Não sei se está a alcançar o impacto promocional da ideia? Não está contente? Tenho de dar a mão à palmatória, o preço que a Imagem Mais nos tem cobrado tem valido bem a pena, aquelas meninas têm jeito para o métier, não acha?» Vi, entusiasmada, respondeu apenas: «Ai, senhor director, eu meter, não me meto com ninguém, você sabe que eu não gosto de falar da vida dos outros. Deus me livre, já tenho problemas que sobrem na minha santa vida!»
«E o novo livro? Tem pensado no assunto?», continuou o animado director, sempre com mais e mais ideias a jorrarem-lhe da cabeça. «Pois, pois, temos que pensar nisso, minha querida, temos que pensar nisso não tarda. Sabe que isto da edição, às vezes funciona por modas, há que aproveitar quando caímos em sorte nas graças do público. Olhe, se quer que lhe diga eu já não tenho dormido a pensar noutra coisa e... e isto fica em sigilo, fica aqui entre nós, já pensei num título!», sussurrou-lhe esta última parte ao ouvido. Ao que ela, nos mesmos afagos de voz quase sumida, lhe pergunta chegando-se a ele. «Confesso Que Vivi», disse-lhe ele logo abrindo um grande sorriso, assim como quem tivesse encontrado nova pólvora. E explicou-lhe, sempre em tom menor: «Assim, “Confesso Que Vivi”, não sei se está a compreender, com o segundo vi entre parênteses, o que dá uma dupla leitura, hã, está a ver? Eu escrevo, é melhor, olhe: Confesso Que Vi(vi). Hã?... Diga lá se não tem aqui quem pense por si, quem zele pelos seus interesses, pelo seu futuro? Dê cá um beijinho, depois a P’ala liga-lhe a dizer horários e agenda para tudo o que conversámos.» E assim se despediu de Vi, tanto mais que o seu telemóvel tinha começado a tocar. Vi saiu então do escritório algo baralhada com as perspectivas tão precoces de um novo livro, de uma agenda tão completa e tão exigente, sobretudo na parte do conto...
«Estou? Sim... sim, sim. Quem fala?», o director atendeu o telemóvel que não se calava com a sua musiquinha polifónica e estridente de um êxito recente da Britney Spears, de quem também gostava para além dos fados. «Quem?», insistiu. E do outro lado da linha: «O Fantasma, sou eu, o Fantasma!» «Epá, Salvador, és tu? Que susto já me estavas a pregar com essa vozinha de... de fantasma, justamente! Epá, onde é que tu andas? Agora que te ouço é que me dou conta que desapareceste nos últimos dias! Têm-me dito que não tens posto cá os coiratos! A malta precisa de ti aqui, não é a bronzear o corpinho. Ouve lá, agora que há trabalhinho de sobra, com o sucesso da Vi e dos outros novos autores que temos em carteira, agora é que tu desapareces e te pões a milhas? Salvador, deixa-te de brincadeiras, onde é que tu...», dizia o director quando o Fantasma o interrompe: «Mais calminha, director, e tento nas palavras. Mais: o Salvador já não existe, morreu, kaput! Agora nasceu o Fantasma, o outro, o Salvador da pátria, cansou-se. Cansou-se de andar a trabalhar para o sucesso dos outros, para que os outros vendam livros que não escreveram, para que sejam eles, e não o Fantasma, e não eu, a aparecer nas revistas e nos jornais, nas televisões até. Por isso, director, calma nas palavras.»
Quando o director, embasbacado, tentou dizer-lhe de novo qualquer coisa, logo ele o interrompeu: «Schhhh... Quem fala sou eu, agora quem fala sou eu. Ouça bem, para começar quero dizer-lhe que se acabaram os livros dos outros escritos por mim. Em segundo lugar, considere-me como o seu novo autor... Sim, pode dizê-lo se quiser, um novo escritor nasceu. José Fantasma passa agora a ser o meu nome de guerra, o nome que assinarei enquanto autor. Tenho coisas na gaveta, aquilo que sempre quis escrever e não pude mostrar...» E a muito custo, lá conseguiu o director contrapor, elevando a voz: «O quê? Mas, ó Zé, tu endoideceste? Eu devia ter reparado, andavas demasiado branco, aquilo não podia ser só fantasmagoria... Era certamente qualquer parafuso que se te tinha soltado aí dentro da cabecinha, não? Ouve lá, ó Zé, epá, então tu com esse aspecto de cadáver queres ser um best seller? Onde é que tu tens um palminho de cara para seres autor? Tu não vês que um autor hoje em dia tem de ter muito mais para dar do que os seus livros? Tem de ter uma figura, boa apresentação, uma história para contar, algo a dizer que interesse às massas? Ou tu, por acaso, és vedeta de televisão? Epá, ó Zé, vem para o escritório que a gente conversa com calma, tu podes continuar a escrever, não há dúvidas que sabes o que é a escrita, epá, tudo bem, o.k., mas daí a dares o salto para as capas vai um bocado, não achas?»
O Fantasma, que apesar do seu aspecto algo assustador tinha uma alma frágil e espírito facilmente maleável, aquilo ouvindo desatou num pranto no outro lado da linha e acabou por desligar em soluços. O director, ainda meio embasbacado com a conversa, deixou-se cair no seu cadeirão, levou às mãos à cabeça e suspirou. Só me faltava esta, um fantasma a querer assustar-me! «Olha, e vai daí se calhar até era uma boa ideia promocional, lançar um livro do escritor-fantasma... Não, só se fosse o escritor-fantasma da casa de algum dirigente desportivo ou de alguma vedeta do jet set», pensou com os seus botões que desapertou junto ao colarinho para melhor respirar.
Os tops não mentem. Os escritores urbano-light-pop e os ultra-light-desportivos. O Ensaio Sobre a Ceifeira. Vi o meu nome num livro e chorei. Um telefonema de uma câmara municipal. Confesso que Vi(vi). Os anseios do Salvador.
Os tops não deixavam mentir quem quisesse depreciar o talento de Vi Prazeres. Eram, de resto, puro cristal alcandorando-a a primeiro lugar nas tabelas de vendas. Etelvina, agora simplesmente Vi, continuava no topo das preferências dos leitores portugueses. Crise? Qual crise? De leitura? É como se vê? Os números, uma vez mais, falavam por si, galopando semana após semana. Tudo corria sobre rodas e numa grande lufa-lufa. Vi era um fenómeno, um best seller que envergonharia os escritores candidatos ao Nobel, que deixaria a pensar na vida até os escritores best sellers que a tinham antecedido e cujos títulos se arrastavam agora em lugares mais modestos nas tabelas de vendas. A coisa chegou ao ponto de num programa televisivo uma escritora light ter acusado a escrita de Vi de ser ultra-light e de não ter o mínimo de exigências estilísticas. Um crítico dirimiu mais tarde o assunto num artigo de jornal, separando as águas e considerando a primeira como fazendo parte dos escritores «urbano-light-pop», e Vi relegando-a para o lote dos «ultra-light-desportivos».
Verdade, verdadinha é que poucos títulos rivalizavam com o seu, só um podendo alcandorar-se a título de concorrente. Chamava-se «Ensaio Sobre a Ceifeira» e era de um autor galardoado cujos livros, fortemente politizados e críticos, suscitavam por regra grande polémica e brado. Quem andava também nas nuvens de contentamento era a editora, a também rebaptizada Dom Chicote, que esfregava as mãos à chegada de cada reporting de vendas. A administração chamara mesmo ao andar de cima da editora, onde tinha escritório, o director editorial para lhe dar os parabéns. Este agradeceu e deixou em cima da mesa a possibilidade de se retomar a política de prémios por objectivos atingidos...
Quanto a Vi, quando o director editorial a voltou a ver foi para acertarem datas e agenda quanto a novas iniciativas promocionais, de acordo já com o estipulado e sugerido pela equipa da Imagem Mais. Também já instruída pelas respectivas profissionais, no modo de aparecer em público, Vi chegou ao gabinete do director editorial com um livro debaixo do braço, o que muito o espantou, pois não lhe constava que ele gostasse de leitura. «Ora, ora, cara autora, como está? Então, o que andamos a ler? Não me diga que é o seu próximo livro...?», gracejou. «Ah, não, ainda não, é só um livro que vinha com uma revista que me entrevistou. Como as meninas do marketing me disseram para ter sempre um livro comigo, porque acham que isso é uma imagem de marca de um escritor, eu achei por bem trazer este. Acho estranho é não ter nada escrito... Só diz na capa “Livro em Branco”!!! Não percebo, mas olhe, sempre dá para o efeito e sempre posso rabiscar uma ideia ou outra.» O director achou que sim, que estava muito bem, que era óptimo para a sua imagem e passou ao que ali a trazia, notando também que Vi já não se fazia acompanhar do seu séquito de capangas protectores – como ela explicou, as meninas do marketing tinham-lhe dito que um bastava e bem disfarçado, de preferência, pois ter tantos homens de preto à sua volta criava um fosso entre si e o público, o que «não se desejava, pois não, logo agora que a sua carreira mal estava a começar?»
Sessões em escolas, «sem ter de ir ao quadro», sessões em livrarias, «só para autografar», uma homenagem de um clube desportivo que tinha um leão na insígnia, um convite para escrever um conto para uma revista do coração, um convite para uma palestra subordinada ao tema da «Escrita Delirante», eram muitas e diversificadas as propostas que o director editorial tinha para Vi. Antes, antes deveria começar por assinar algumas T-Shirts com a sua fotografia estampada que seriam ofertadas num concurso literário ao qual a Dom Chicote dera o nome «Vi o meu nome num livro e chorei». A própria Vi, ao saber da novidade, choramingou timidamente, ao que o director editorial lhe facultou um lencinho de papel. «Ai, minha querida autora, se é para chorar, chore tudo agora que ainda não lhe disse o melhor. Ouça, ouça bem, recebemos um telefonema de uma Câmara Municipal... querem que você se desloque à cidade para que aí participe numa residência de escritores com vista à elaboração de um livro de contos sobre a experiência. Hã? Que tal?» Vi ficou algo perturbada com a notícia, pois ainda não se acostumara àquelas vidas de escritores. «Ai, confesso-lhe, nunca pensei que ser escritor fosse tão extenuante. E em que hotel é que vou ficar? Sabe quantas malas posso levar? E o meu escritor-fantasma, vai comigo para escrever o conto?»
O director editorial disse-lhe que não, que daquela vez não porque senão o fantasma dar-se-ia a conhecer e deixaria de o ser, pelo que teria de ser ela a descartar uma qualquer historieta que eles de certeza compravam a coisa, comprariam tudo tal era o sucesso do seu nome no mundo das letras. Vendo que Vi se assustara com a ideia de ter de engendrar e, pior, escrever um conto, o director editorial pediu-lhe que se acalmasse, dizendo-lhe que tinha a certeza de que ela saberia estar à altura do problema. Ela, ao contrário, dizia-lhe, «olhe que não, olhe que não, ai, como é que vai ser? Mas... e o escritor-fantasma, ele não podia ir fazendo-se passar por meu acompanhante?» O director disse que isso estava fora de questão, pois não era líquido que quem quer que fosse de bom senso e um palmo de testa acreditasse que um rapaz tão deslavado pudesse ser o amante, isto é, o companheiro de Vi. Isto dizendo e observando que a tremedeira não lhe passava, passou a um outro assunto que sabia iria encantar a sua autora e acalmá-la. Disse-lhe que era um convite algo sui generis – ela perguntou o que era isso dos «Genesis» serem para ali chamados ao assunto, que gostava mais era do Robbie Williams –, e concretizou: «Uma revista masculina de grande circulação quer fazer uma sessão fotográfica consigo. Uma coisa simples, querem-na em lingerie às riscas azuis e brancas, em cima de um cavalo e com um chicote na mão. Fantástico, não? Não sei se está a alcançar o impacto promocional da ideia? Não está contente? Tenho de dar a mão à palmatória, o preço que a Imagem Mais nos tem cobrado tem valido bem a pena, aquelas meninas têm jeito para o métier, não acha?» Vi, entusiasmada, respondeu apenas: «Ai, senhor director, eu meter, não me meto com ninguém, você sabe que eu não gosto de falar da vida dos outros. Deus me livre, já tenho problemas que sobrem na minha santa vida!»
«E o novo livro? Tem pensado no assunto?», continuou o animado director, sempre com mais e mais ideias a jorrarem-lhe da cabeça. «Pois, pois, temos que pensar nisso, minha querida, temos que pensar nisso não tarda. Sabe que isto da edição, às vezes funciona por modas, há que aproveitar quando caímos em sorte nas graças do público. Olhe, se quer que lhe diga eu já não tenho dormido a pensar noutra coisa e... e isto fica em sigilo, fica aqui entre nós, já pensei num título!», sussurrou-lhe esta última parte ao ouvido. Ao que ela, nos mesmos afagos de voz quase sumida, lhe pergunta chegando-se a ele. «Confesso Que Vivi», disse-lhe ele logo abrindo um grande sorriso, assim como quem tivesse encontrado nova pólvora. E explicou-lhe, sempre em tom menor: «Assim, “Confesso Que Vivi”, não sei se está a compreender, com o segundo vi entre parênteses, o que dá uma dupla leitura, hã, está a ver? Eu escrevo, é melhor, olhe: Confesso Que Vi(vi). Hã?... Diga lá se não tem aqui quem pense por si, quem zele pelos seus interesses, pelo seu futuro? Dê cá um beijinho, depois a P’ala liga-lhe a dizer horários e agenda para tudo o que conversámos.» E assim se despediu de Vi, tanto mais que o seu telemóvel tinha começado a tocar. Vi saiu então do escritório algo baralhada com as perspectivas tão precoces de um novo livro, de uma agenda tão completa e tão exigente, sobretudo na parte do conto...
«Estou? Sim... sim, sim. Quem fala?», o director atendeu o telemóvel que não se calava com a sua musiquinha polifónica e estridente de um êxito recente da Britney Spears, de quem também gostava para além dos fados. «Quem?», insistiu. E do outro lado da linha: «O Fantasma, sou eu, o Fantasma!» «Epá, Salvador, és tu? Que susto já me estavas a pregar com essa vozinha de... de fantasma, justamente! Epá, onde é que tu andas? Agora que te ouço é que me dou conta que desapareceste nos últimos dias! Têm-me dito que não tens posto cá os coiratos! A malta precisa de ti aqui, não é a bronzear o corpinho. Ouve lá, agora que há trabalhinho de sobra, com o sucesso da Vi e dos outros novos autores que temos em carteira, agora é que tu desapareces e te pões a milhas? Salvador, deixa-te de brincadeiras, onde é que tu...», dizia o director quando o Fantasma o interrompe: «Mais calminha, director, e tento nas palavras. Mais: o Salvador já não existe, morreu, kaput! Agora nasceu o Fantasma, o outro, o Salvador da pátria, cansou-se. Cansou-se de andar a trabalhar para o sucesso dos outros, para que os outros vendam livros que não escreveram, para que sejam eles, e não o Fantasma, e não eu, a aparecer nas revistas e nos jornais, nas televisões até. Por isso, director, calma nas palavras.»
Quando o director, embasbacado, tentou dizer-lhe de novo qualquer coisa, logo ele o interrompeu: «Schhhh... Quem fala sou eu, agora quem fala sou eu. Ouça bem, para começar quero dizer-lhe que se acabaram os livros dos outros escritos por mim. Em segundo lugar, considere-me como o seu novo autor... Sim, pode dizê-lo se quiser, um novo escritor nasceu. José Fantasma passa agora a ser o meu nome de guerra, o nome que assinarei enquanto autor. Tenho coisas na gaveta, aquilo que sempre quis escrever e não pude mostrar...» E a muito custo, lá conseguiu o director contrapor, elevando a voz: «O quê? Mas, ó Zé, tu endoideceste? Eu devia ter reparado, andavas demasiado branco, aquilo não podia ser só fantasmagoria... Era certamente qualquer parafuso que se te tinha soltado aí dentro da cabecinha, não? Ouve lá, ó Zé, epá, então tu com esse aspecto de cadáver queres ser um best seller? Onde é que tu tens um palminho de cara para seres autor? Tu não vês que um autor hoje em dia tem de ter muito mais para dar do que os seus livros? Tem de ter uma figura, boa apresentação, uma história para contar, algo a dizer que interesse às massas? Ou tu, por acaso, és vedeta de televisão? Epá, ó Zé, vem para o escritório que a gente conversa com calma, tu podes continuar a escrever, não há dúvidas que sabes o que é a escrita, epá, tudo bem, o.k., mas daí a dares o salto para as capas vai um bocado, não achas?»
O Fantasma, que apesar do seu aspecto algo assustador tinha uma alma frágil e espírito facilmente maleável, aquilo ouvindo desatou num pranto no outro lado da linha e acabou por desligar em soluços. O director, ainda meio embasbacado com a conversa, deixou-se cair no seu cadeirão, levou às mãos à cabeça e suspirou. Só me faltava esta, um fantasma a querer assustar-me! «Olha, e vai daí se calhar até era uma boa ideia promocional, lançar um livro do escritor-fantasma... Não, só se fosse o escritor-fantasma da casa de algum dirigente desportivo ou de alguma vedeta do jet set», pensou com os seus botões que desapertou junto ao colarinho para melhor respirar.
Silence, please
Enternecedora, a cara comovida do nosso primeiro quando a música ecoava pelos Jerónimos e se derramavam aplausos pelas naves do mosteiro... Que bela festa de amigos... E o povo, onde estava o povo que se queria e diz querer parte da festa?... retido pelas autoridades policiais. E onde se viram manifestações de regozijo pelo tratado?... ou fui só eu que não vi?... E o que vai mudar na nossa vidinha quando se diz que este é o «tratado possível»?... o «possível» basta-nos?... e a promessa, nosso primeiro, a promessa de um referendo? pois, pois é, é melhor esquecer... coisas de campanha a que ninguém deve ligar...
Histórias Fulminantes 55
O Senhor K. escreveu: O problema maior do Congresso da Paz foi que alguns dos seus participantes em vez de levarem consigo pombas da paz levaram bombas da paz.
quinta-feira, 13 de dezembro de 2007
Silence Music News - Sons & Daughters
Silence Music News - Bauhaus
E para Março está guardada a melhor surpresa. Dia 3, lançamento do novo álbum dos lendários Bauhaus, o primeiro desde 1983, aquando da saída de «Burning From the Inside»! «Go Away White» é o título do disco, foi gravado em 18 dias em Ojai, Califórnia, e reúne os membros originais do projecto, Peter Murphy, Daniel J, Daniel Ash e Kevin Haskins.
Silence Cinema News
O Festival do Minuto realizado no Brasil premiou com o 1º Prémio para Melhor filme e também o 1º prémio para melhor filme de telemóvel, a peça realizada por Rui Avelans Coelho, intitulada Footmobile, gravada integralmente num telemóvel de última geração onde competiu com filmes gravados em câmaras de alta definição. O Festival do Minuto realizado a 6 de Dezembro, no Rio de Janeiro seleccionou, entre os 900 trabalhos recebidos, os 50 vídeos que mais se destacaram nesta edição. O filme Footmobile transforma a câmara (telemóvel) num personagem da própria acção, retirando-lhe a carga de passividade geralmente associada a uma câmara estática. O filme pode ser visionado através do site: http://festivaldominuto.oi.com.br/site/video.php?id=1404
Silence Music News - Joe Jackson
Boa notícia. No final de Janeiro o excelente Joe Jackson lança finalmente novo álbum, trata-se de «Rain», com o selo da Rykodisc, o primeiro em quatro anos. O disco inclui ainda um DVD dirigido e produzido por Julie Gardner, que com ele trabalhou nos últimos dois álbuns. O DVD contém imagens de concertos ao vivo, cenas de bastidores e uma entrevista televisiva concedida ao programa musical alemão «Rockpalast».
quarta-feira, 12 de dezembro de 2007
In Silence Progress - Francisco Laranjo
Francisco Laranjo
«Da Matéria», Pintura
Galeria São Mamede, Lisboa
R. da Escola Politécnica, 167, Lisboa
Tel. 21 397 32 55
2ª a 6ª, 10h-20h00/ sábado, 11h-19h00
Até 15 de Janeiro
De silêncio, cor, musicalidade e mistério se fazem as novas pinturas de Francisco Laranjo. Convite a espreitar um universo inaugural de emotivo e feliz recorte cromático.
«Da Matéria», Pintura
Galeria São Mamede, Lisboa
R. da Escola Politécnica, 167, Lisboa
Tel. 21 397 32 55
2ª a 6ª, 10h-20h00/ sábado, 11h-19h00
Até 15 de Janeiro
De silêncio, cor, musicalidade e mistério se fazem as novas pinturas de Francisco Laranjo. Convite a espreitar um universo inaugural de emotivo e feliz recorte cromático.
Histórias Fulminantes 54
A teoria do Senhor K. era de cortar à faca os nervos da velha guarda de cientistas. Dizia o Senhor K. que o mundo começou a colapsar quando Deus começou a tricotar uma camisola de lã e a única linha que encontrou para tal foi a do horizonte. Usar o fio da navalha seria demasiado perigoso para quem, como Ele, tinha ainda pouca prática na costura.
terça-feira, 11 de dezembro de 2007
A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Capítulo XII
XII.
Si, si, ai que tenelos en el sitio! Dom Quixote em Belém e Rocinante a jeito de montar uma égua jeitosa da banda a cavalo da GNR. A Escrever Direito por Linhas Tortas. Com a faca e o queijo da edição na mão.
Ninguém muda de vida, de hábitos, de rotinas como quem muda de camisola. Os anos criam habituação, um conforto que se instala na alma e nos dias. Se bem que se estivesse no tempo em que mudar de emprego é considerado algo muito positivo, significando ambição e sede de subir sempre mais alto (contra todos os princípios de Peter, se preciso for, e até mesmo contra toda a falta de razoabilidade), ao contrário do que antes acontecia, a verdade é que Dom Quixote era homem que raciocinava e pensava em moldes antigos. Achava ele que a fidelidade a um projecto era uma virtude, que a criação de laços profundos do trabalhador com a empresa só poderia resultar em benefícios para ambos. Para a empresa que, desde que mantivesse o empregado motivado, fosse por via de um salário justo, fosse por via da angariação de novos negócios e novos projectos, veria os seus objectivos alcançados, sabendo de antemão com o que poderia contar, e para o trabalhador que não teria, a todo o momento, a pairar-lhe por cima da cabeça a ameaça do cutelo do desemprego e que, naturalmente, tendo salário e gostando do seu trabalho, suaria a camisola, como se diz, para atingir as metas propostas. Dom Quixote era, por conseguinte, um homem antiquado.
Por tudo isso, deambulava ele contristado pelas ruas de Lisboa, seguindo rumo a uma editora, cuja morada tinha tirado de um livro que folheara numa livraria onde havia estado. Por pouco tempo ali estivera, a ver um e outro livro, mas num completo sufoco com as pessoas sempre de olho nele, algumas mesmo vindo falar-lhe, mostrando-lhe a sua simpatia, oferecendo-lhe a sua solidariedade, confiando-lhe que a sua atitude fora muito digna e que nos dias de hoje eram já muito poucos os que tinham coragem para a tomar. «É preciso impor a moralidade neste pântano em que hoje vivemos à míngua de valores, a reboque dos interesses comerciais que tudo corroem e minam!», disse-lhe, apontando o dedo indicador da mão para o ar, um velhote de sobretudo cinzento caindo sobre a marreca. «Si, si, ai que tenelos en el sítio!», confirmou uma velhinha, tentando abraçá-lo e beijá-lo.
O Rocinante arfava, esquivando-se também ele aos muitos curiosos que agora queriam tirar fotografias a seu lado. Já com o amo na garupa, deitou a galope a caminho de Belém, onde se encontrava a sede da editora que Dom Quixote iria visitar. Seguindo junto ao rio, cavalo e cavaleiro por diversas vezes se viram na contingência de serem atropelados, de modo que, achando que o melhor modo de acautelar o dano era fugir à ameaça, se puseram numa correria frenética, passando eles a ultrapassar os automóveis num rally serpenteante. Às tantas, de tão disparados que iam, não deram por ela e ultrapassaram o limite de velocidade que os recentes radares ali colocados anunciavam. Consequentemente, mais adiante, a pouco mais de mil metros, foi com estupefacção que uma brigada da GNR mandou parar a montada. Uma vez mais às voltas com a lei, Dom Quixote não se escapou a uma prelecção moralista sobre a convivência na estrada e a uma «multinha» que um simpático agente lhe rubricou, mais lhe adiantando que não lhe proibia o prosseguimento da viagem porque era a sua primeira contravenção ao código e porque, sendo ele a figura pública que era, acreditaria na sua palavra de honra em como, daí por diante, teria cuidados na condução. Dava-lha? A palavra? «Sim, sim», pronunciou Dom Quixote querendo ver-se livre de mais este compasso de espera.
Por fim, Dom Quixote chegou a Belém, de novo agastado e muito farto da cidade. Deixou a 24 de Julho, virou à direita e entrou pelos jardins fronteiros ao Palácio Presidencial. A editora ficava ali por perto, só teria de perguntar a alguém. Estranhamente os jardins estavam cheios de gente que, numa espécie de cordão humano, se aglutinava olhando para a casa do senhor Presidente da República. Aproximando-se, Dom Quixote apercebeu-se de que se tratava de um render da Guarda. E logo, logo sonaram os acordes da banda a cavalo que se aproximava toda engalanada a preceito. Vá lá saber-se porque, se por via do sol excessivo nas crinas, se por via de uma bela égua que viu passar-lhe diante dos olhos, o Rocinante põe-se em pulgas e dispara na direcção da coluna equestre com Dom Quixote aos solavancos e incapaz de lhe pôr freio. A agitação foi grande, a banda desconcentrou-se e o aplauso foi geral quando o Rocinante se põe a jeito de montar a dita égua supracitada.
Mais tarde, aliviado das vontades e fortemente reprimido por Dom Quixote, lá acabou o cavaleiro da triste figura (sendo que triste figura fora a que Rocinante fizera) por chegar à morada pretendida. Ficava numa das ruelas que subia rumo a Monsanto, num primeiro piso modesto que, de resto, se coadunava com o percurso ainda em crescendo de afirmação no mercado editorial. A editora chamava-se Escrever Direito por Linhas Tortas e Dom Quixote tocou à campainha, deixando Rocinante lá em baixo, preso a uma árvore.
Tocou, tocou, voltou a tocar até que mais uma menina de carinha laroca lhe abriu a porta. Dom Quixote começava a ver que o mundo editorial estava cheio de meninas de cara bonita, o que talvez pronunciasse o divórcio da literatura com aquelas figuras cinzentonas com ar pesado, cheiro bafiento e óculos com lentes fundo de garrafa. «Dom Quixote, menina, venho falar com o director», anunciou-se o cavaleiro levantando a viseira do elmo. A menina, mal abriu a porta e se deparou com o figurão, assustou-se e deixou escapar um gritinho nervoso. Depois estranhou e fez cara de desconhecimento com o nome de quem ali se apresentava. «Dom quê? Da parte de quem? Qual é a empresa? É cobranças ou vem entregar encomenda?» O Dom Quixote logo se encheu de calores e volveu-lhe: «Quixote, menina, Quixote, de La Mancha, Cervantes, Cervantes, nunca ouviu falar? Nunca leu? Que mancha no seu currículo, que nódoa! Apresente-me apenas como Dom Quixote, Dom Qui-xo-te! Quer que escreva?» A menina ficou que nem varas verdes, fez o que o cavaleiro lhe ordenava e mais tarde, ao almoço, queixar-se-ia a uma colega da brutalidade do homem, que não sabia por que raio havia ela de ter lido não sabia que mancha de um tal Servente ou trolha, ela sabia lá, só sabia é que não estava para aguentar gente como aquela e que havia de se queixar ao director, que o que lhe pagavam não pagava tamanhas injúrias, e que se não houvesse medidas que se punha dali a andar era certinho, certinho.
À informação de que tinha na recepção Dom Quixote, o director editorial da Escrever Direito por Linhas Tortas levantou-se e predispôs-se a vir buscá-lo em pessoa. Que fizesse o favor, que entrasse, entrasse, estivesse como em sua casa, que muito gosto tinham em receber tão ilustre figura e que sim, já estavam ao corrente do sucedido, que vinha tudo nos jornais e não havia como passar ao lado do caso. O director só não percebera muito bem era o porquê da atitude de Dom Quixote e talvez ele pudesse explicar-lho, faria o obséquio. Dom Quixote acomodou-se na cadeira em frente à secretária do director, o qual, antes de mais conversa e de ouvir as explicações e os porquês da visita de Dom Quixote pelo próprio, pediu pelo telefone dois cafezitos à menina da recepção.
Dom Quixote não estava de todo acostumado àquelas situações. Jamais pensou sequer que um dia teria de enfrentar semelhante situação, sempre desconfortável, sempre desequilibrada: de um lado, um editor ou director editorial todo-poderoso, com a faca e o queijo da edição na mão; e do outro, alguém numa posição algo inferiorizada de ter de sugerir ao outro, nas entrelinhas do discurso, os seus préstimos, pôr-lhe à disposição o seu engenho e saber. Em suma, pedir emprego. Porque era disso mesmo que se tratava. Dom Quixote estava desempregado e necessitava urgentemente de encontrar quem lhe desse trabalho para sustento, que um homem, por mais que seja meramente ilustrativo ou personagem literária, tem sempre os seus gastos, sejam para gozo da alma, dos sentidos ou do corpo, que não fosse o corpo do seu Rocinante, que tinha de se alimentar e o feno ao preço dos dias de hoje não se mostrava abaixo do custo do litro do gasóleo. Ora, como não desejava inscrever-se em Centro de Emprego, o que provavelmente nem conseguiria, pois não lhe constava que alguma vez em seu nome tivessem efectuado quaisquer descontos para o fisco, e como se achava ainda em pleno vigor das suas capacidades intelectuais, Quixote ali estava, pelejando o seu futuro, «sem vergonhas de assumir o seu momentâneo estado de necessidade».
O director editorial, um rapaz jovem, vestindo fato e gravata, ouviu com atenção o cavaleiro de La Mancha. Quando aquele terminou o seu discurso, e tendo ficado bem claro aquilo que pretendia, foi algo a custo que o director abordou a difícil questão. Disse que compreendia muito bem aquilo que se estava a passar, que não era indiferente aos seus argumentos de superioridade moral literária, e que, no fundo, achava normal que uma pessoa com a sua craveira e a sua experiência não visse com bons olhos a mudança das prioridades na editora que deixara órfã. Depois, começou a desculpar-se, dizendo que o mercado não estava nada famoso, que os portugueses não liam, que o livro era tratado como batatas e que, para sobreviver neste meio canibalesco, onde apenas os mais fortes e astutos conseguem vingar, também a Escrever Direito Por Linhas Tortas» tinha que fazer as suas cedências em matéria de crivo literário e, por conseguinte, fazer as suas opções, de resto, de acordo com as expectativas traçadas pela Administração. Dizia ele: «Senhor Quixote, creia que eu teria o maior gosto em poder ajudá-lo, eu por mim, sei lá, era capaz de criar uma colecção própria com o seu nome, para novos autores ou até clássicos, o que fosse... mas, mas a verdade é que não estou em condições para o fazer. Temos neste momento medidas restritivas de contenção de gastos e eu não tenho carta branca senão para editar livros que vendam e vendam bem. Dir-me-á, então e a literatura, a verdadeira literatura?... E eu dir-lhe-ei que terá toda a razão, mas razão nenhuma excede a razão dos números. Infelizmente, assim é. Mais um cafezinho?...»
Dom Quixote nem queria acreditar no que ouvia. A «razão dos números? Mas é lá isso razoável tratando-se de livros, do desígnio maior da literatura, da beleza maior das palavras?» Apercebendo-se de que aquele não era chão que desse uvas, levantando a armadura, no que o jovem director o ajudou achando que as pernas do cavaleiro já não teriam forças para tanto por si mesmas, Dom Quixote rejeitou a ajuda com um leve safanão e dispôs-se a peneirar sorte noutras águas que aquelas, estava mais que visto, não lhe correriam de feição. Baixando a viseira com estrépito e pegando na sua lança, abriu a porta e fez-se ao caminho, não sem antes se virar para trás e dizer ao director que ajeitava a sua gravata e acertava os botões de punho: «Os números! Os números! E que tal mudar o nome da editora para Escrever Dinheiro Por Linhas Tortas?» E saiu, tonitruante, todo ele a chiar, pois a armadura dava mostras de precisar de ser oleada nas juntas, coisa que ele já tinha notado e que o vinha atormentando sobremaneira. À sua passagem, a menina de cara laroca não resistiu mais e desatou num choro abundante, só se acalmando com o abraço pronto do senhor director.
«Vamo-nos daqui, Rocinante, que aqui não merecem a nossa presença. Ao caminho, que ainda não é desta que nos vencem. A outras portas iremos bater, alguma nos há-de abrir com grata satisfação por a termos escolhido, sabendo reconhecer-nos o devido valor. Com sorte, meu fiel companheiro, uma há-de ser que tenha um jardim, com árvores e boas sombras, com boa relva também, onde tu possas pernoitar e descansar quando de ti não precise. Eia!» E dali se foi o cavaleiro, tomando a direcção do rio, pois muito alterado de humores se encontrava e naquelas alturas só a placidez do rio o conseguia acalmar. De qualquer modo, fazia-se tarde, havia que pensar em novo poiso para passar a noite. Havia de ser perto do rio e, jurava ele, também no dia seguinte haveria de pôr termo à maldita chiadeira que a todo o instante o atormentava.
Si, si, ai que tenelos en el sitio! Dom Quixote em Belém e Rocinante a jeito de montar uma égua jeitosa da banda a cavalo da GNR. A Escrever Direito por Linhas Tortas. Com a faca e o queijo da edição na mão.
Ninguém muda de vida, de hábitos, de rotinas como quem muda de camisola. Os anos criam habituação, um conforto que se instala na alma e nos dias. Se bem que se estivesse no tempo em que mudar de emprego é considerado algo muito positivo, significando ambição e sede de subir sempre mais alto (contra todos os princípios de Peter, se preciso for, e até mesmo contra toda a falta de razoabilidade), ao contrário do que antes acontecia, a verdade é que Dom Quixote era homem que raciocinava e pensava em moldes antigos. Achava ele que a fidelidade a um projecto era uma virtude, que a criação de laços profundos do trabalhador com a empresa só poderia resultar em benefícios para ambos. Para a empresa que, desde que mantivesse o empregado motivado, fosse por via de um salário justo, fosse por via da angariação de novos negócios e novos projectos, veria os seus objectivos alcançados, sabendo de antemão com o que poderia contar, e para o trabalhador que não teria, a todo o momento, a pairar-lhe por cima da cabeça a ameaça do cutelo do desemprego e que, naturalmente, tendo salário e gostando do seu trabalho, suaria a camisola, como se diz, para atingir as metas propostas. Dom Quixote era, por conseguinte, um homem antiquado.
Por tudo isso, deambulava ele contristado pelas ruas de Lisboa, seguindo rumo a uma editora, cuja morada tinha tirado de um livro que folheara numa livraria onde havia estado. Por pouco tempo ali estivera, a ver um e outro livro, mas num completo sufoco com as pessoas sempre de olho nele, algumas mesmo vindo falar-lhe, mostrando-lhe a sua simpatia, oferecendo-lhe a sua solidariedade, confiando-lhe que a sua atitude fora muito digna e que nos dias de hoje eram já muito poucos os que tinham coragem para a tomar. «É preciso impor a moralidade neste pântano em que hoje vivemos à míngua de valores, a reboque dos interesses comerciais que tudo corroem e minam!», disse-lhe, apontando o dedo indicador da mão para o ar, um velhote de sobretudo cinzento caindo sobre a marreca. «Si, si, ai que tenelos en el sítio!», confirmou uma velhinha, tentando abraçá-lo e beijá-lo.
O Rocinante arfava, esquivando-se também ele aos muitos curiosos que agora queriam tirar fotografias a seu lado. Já com o amo na garupa, deitou a galope a caminho de Belém, onde se encontrava a sede da editora que Dom Quixote iria visitar. Seguindo junto ao rio, cavalo e cavaleiro por diversas vezes se viram na contingência de serem atropelados, de modo que, achando que o melhor modo de acautelar o dano era fugir à ameaça, se puseram numa correria frenética, passando eles a ultrapassar os automóveis num rally serpenteante. Às tantas, de tão disparados que iam, não deram por ela e ultrapassaram o limite de velocidade que os recentes radares ali colocados anunciavam. Consequentemente, mais adiante, a pouco mais de mil metros, foi com estupefacção que uma brigada da GNR mandou parar a montada. Uma vez mais às voltas com a lei, Dom Quixote não se escapou a uma prelecção moralista sobre a convivência na estrada e a uma «multinha» que um simpático agente lhe rubricou, mais lhe adiantando que não lhe proibia o prosseguimento da viagem porque era a sua primeira contravenção ao código e porque, sendo ele a figura pública que era, acreditaria na sua palavra de honra em como, daí por diante, teria cuidados na condução. Dava-lha? A palavra? «Sim, sim», pronunciou Dom Quixote querendo ver-se livre de mais este compasso de espera.
Por fim, Dom Quixote chegou a Belém, de novo agastado e muito farto da cidade. Deixou a 24 de Julho, virou à direita e entrou pelos jardins fronteiros ao Palácio Presidencial. A editora ficava ali por perto, só teria de perguntar a alguém. Estranhamente os jardins estavam cheios de gente que, numa espécie de cordão humano, se aglutinava olhando para a casa do senhor Presidente da República. Aproximando-se, Dom Quixote apercebeu-se de que se tratava de um render da Guarda. E logo, logo sonaram os acordes da banda a cavalo que se aproximava toda engalanada a preceito. Vá lá saber-se porque, se por via do sol excessivo nas crinas, se por via de uma bela égua que viu passar-lhe diante dos olhos, o Rocinante põe-se em pulgas e dispara na direcção da coluna equestre com Dom Quixote aos solavancos e incapaz de lhe pôr freio. A agitação foi grande, a banda desconcentrou-se e o aplauso foi geral quando o Rocinante se põe a jeito de montar a dita égua supracitada.
Mais tarde, aliviado das vontades e fortemente reprimido por Dom Quixote, lá acabou o cavaleiro da triste figura (sendo que triste figura fora a que Rocinante fizera) por chegar à morada pretendida. Ficava numa das ruelas que subia rumo a Monsanto, num primeiro piso modesto que, de resto, se coadunava com o percurso ainda em crescendo de afirmação no mercado editorial. A editora chamava-se Escrever Direito por Linhas Tortas e Dom Quixote tocou à campainha, deixando Rocinante lá em baixo, preso a uma árvore.
Tocou, tocou, voltou a tocar até que mais uma menina de carinha laroca lhe abriu a porta. Dom Quixote começava a ver que o mundo editorial estava cheio de meninas de cara bonita, o que talvez pronunciasse o divórcio da literatura com aquelas figuras cinzentonas com ar pesado, cheiro bafiento e óculos com lentes fundo de garrafa. «Dom Quixote, menina, venho falar com o director», anunciou-se o cavaleiro levantando a viseira do elmo. A menina, mal abriu a porta e se deparou com o figurão, assustou-se e deixou escapar um gritinho nervoso. Depois estranhou e fez cara de desconhecimento com o nome de quem ali se apresentava. «Dom quê? Da parte de quem? Qual é a empresa? É cobranças ou vem entregar encomenda?» O Dom Quixote logo se encheu de calores e volveu-lhe: «Quixote, menina, Quixote, de La Mancha, Cervantes, Cervantes, nunca ouviu falar? Nunca leu? Que mancha no seu currículo, que nódoa! Apresente-me apenas como Dom Quixote, Dom Qui-xo-te! Quer que escreva?» A menina ficou que nem varas verdes, fez o que o cavaleiro lhe ordenava e mais tarde, ao almoço, queixar-se-ia a uma colega da brutalidade do homem, que não sabia por que raio havia ela de ter lido não sabia que mancha de um tal Servente ou trolha, ela sabia lá, só sabia é que não estava para aguentar gente como aquela e que havia de se queixar ao director, que o que lhe pagavam não pagava tamanhas injúrias, e que se não houvesse medidas que se punha dali a andar era certinho, certinho.
À informação de que tinha na recepção Dom Quixote, o director editorial da Escrever Direito por Linhas Tortas levantou-se e predispôs-se a vir buscá-lo em pessoa. Que fizesse o favor, que entrasse, entrasse, estivesse como em sua casa, que muito gosto tinham em receber tão ilustre figura e que sim, já estavam ao corrente do sucedido, que vinha tudo nos jornais e não havia como passar ao lado do caso. O director só não percebera muito bem era o porquê da atitude de Dom Quixote e talvez ele pudesse explicar-lho, faria o obséquio. Dom Quixote acomodou-se na cadeira em frente à secretária do director, o qual, antes de mais conversa e de ouvir as explicações e os porquês da visita de Dom Quixote pelo próprio, pediu pelo telefone dois cafezitos à menina da recepção.
Dom Quixote não estava de todo acostumado àquelas situações. Jamais pensou sequer que um dia teria de enfrentar semelhante situação, sempre desconfortável, sempre desequilibrada: de um lado, um editor ou director editorial todo-poderoso, com a faca e o queijo da edição na mão; e do outro, alguém numa posição algo inferiorizada de ter de sugerir ao outro, nas entrelinhas do discurso, os seus préstimos, pôr-lhe à disposição o seu engenho e saber. Em suma, pedir emprego. Porque era disso mesmo que se tratava. Dom Quixote estava desempregado e necessitava urgentemente de encontrar quem lhe desse trabalho para sustento, que um homem, por mais que seja meramente ilustrativo ou personagem literária, tem sempre os seus gastos, sejam para gozo da alma, dos sentidos ou do corpo, que não fosse o corpo do seu Rocinante, que tinha de se alimentar e o feno ao preço dos dias de hoje não se mostrava abaixo do custo do litro do gasóleo. Ora, como não desejava inscrever-se em Centro de Emprego, o que provavelmente nem conseguiria, pois não lhe constava que alguma vez em seu nome tivessem efectuado quaisquer descontos para o fisco, e como se achava ainda em pleno vigor das suas capacidades intelectuais, Quixote ali estava, pelejando o seu futuro, «sem vergonhas de assumir o seu momentâneo estado de necessidade».
O director editorial, um rapaz jovem, vestindo fato e gravata, ouviu com atenção o cavaleiro de La Mancha. Quando aquele terminou o seu discurso, e tendo ficado bem claro aquilo que pretendia, foi algo a custo que o director abordou a difícil questão. Disse que compreendia muito bem aquilo que se estava a passar, que não era indiferente aos seus argumentos de superioridade moral literária, e que, no fundo, achava normal que uma pessoa com a sua craveira e a sua experiência não visse com bons olhos a mudança das prioridades na editora que deixara órfã. Depois, começou a desculpar-se, dizendo que o mercado não estava nada famoso, que os portugueses não liam, que o livro era tratado como batatas e que, para sobreviver neste meio canibalesco, onde apenas os mais fortes e astutos conseguem vingar, também a Escrever Direito Por Linhas Tortas» tinha que fazer as suas cedências em matéria de crivo literário e, por conseguinte, fazer as suas opções, de resto, de acordo com as expectativas traçadas pela Administração. Dizia ele: «Senhor Quixote, creia que eu teria o maior gosto em poder ajudá-lo, eu por mim, sei lá, era capaz de criar uma colecção própria com o seu nome, para novos autores ou até clássicos, o que fosse... mas, mas a verdade é que não estou em condições para o fazer. Temos neste momento medidas restritivas de contenção de gastos e eu não tenho carta branca senão para editar livros que vendam e vendam bem. Dir-me-á, então e a literatura, a verdadeira literatura?... E eu dir-lhe-ei que terá toda a razão, mas razão nenhuma excede a razão dos números. Infelizmente, assim é. Mais um cafezinho?...»
Dom Quixote nem queria acreditar no que ouvia. A «razão dos números? Mas é lá isso razoável tratando-se de livros, do desígnio maior da literatura, da beleza maior das palavras?» Apercebendo-se de que aquele não era chão que desse uvas, levantando a armadura, no que o jovem director o ajudou achando que as pernas do cavaleiro já não teriam forças para tanto por si mesmas, Dom Quixote rejeitou a ajuda com um leve safanão e dispôs-se a peneirar sorte noutras águas que aquelas, estava mais que visto, não lhe correriam de feição. Baixando a viseira com estrépito e pegando na sua lança, abriu a porta e fez-se ao caminho, não sem antes se virar para trás e dizer ao director que ajeitava a sua gravata e acertava os botões de punho: «Os números! Os números! E que tal mudar o nome da editora para Escrever Dinheiro Por Linhas Tortas?» E saiu, tonitruante, todo ele a chiar, pois a armadura dava mostras de precisar de ser oleada nas juntas, coisa que ele já tinha notado e que o vinha atormentando sobremaneira. À sua passagem, a menina de cara laroca não resistiu mais e desatou num choro abundante, só se acalmando com o abraço pronto do senhor director.
«Vamo-nos daqui, Rocinante, que aqui não merecem a nossa presença. Ao caminho, que ainda não é desta que nos vencem. A outras portas iremos bater, alguma nos há-de abrir com grata satisfação por a termos escolhido, sabendo reconhecer-nos o devido valor. Com sorte, meu fiel companheiro, uma há-de ser que tenha um jardim, com árvores e boas sombras, com boa relva também, onde tu possas pernoitar e descansar quando de ti não precise. Eia!» E dali se foi o cavaleiro, tomando a direcção do rio, pois muito alterado de humores se encontrava e naquelas alturas só a placidez do rio o conseguia acalmar. De qualquer modo, fazia-se tarde, havia que pensar em novo poiso para passar a noite. Havia de ser perto do rio e, jurava ele, também no dia seguinte haveria de pôr termo à maldita chiadeira que a todo o instante o atormentava.
quinta-feira, 6 de dezembro de 2007
Doutor Lobo
«Mugabe fintou jornalistas e ninguém o viu chegar». Nuno Gomes: «Benfica ainda tem hipótese de ser campeão». Conclusão: Veiga está atento às notícias e prepara contratações antes do defeso.
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