sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Capítulo XIX

XIX.

Um presidente de câmara ciumento. Uma grande ressaca e a providência de uma mera sessão de autógrafos. O edil interrompe a leitura do «Almanaque Tio Patinhas» para fazer um obséquio a Etelvina. Salvador em grande. De Gin em Gin, de Caipiroska em Caipiroska. Alguns espectáculos comatosos.



Na pequena localidade onde decorria a residência literária tudo ia correndo pelo melhor. Os escritores tiravam o maior partido do convite que lhes calhara em sorte. Gozavam o bom tempo, entretinham-se com passeios e umas comezainas na região, e ao fim da noite dispunham-se a grandes farras no turismo rural. A primeira noite nem correu mal de todo, estiveram todos no bar, na gargalhada e nas anedotas, até por volta das três da madrugada, cada qual lançando charme para cima de Etelvina Prazeres, tentando a sua sorte, quem sabe para uma noite bem passada. O presidente da Câmara é que continuava a não achar piada nenhuma àquele assédio mais do que declarado. Invectivou contra os escritores e contra os livros, chamou nomes a torto e a direito aos editores e livreiros, e, já bem bebido, terminou a noite a enxovalhar a directora da Biblioteca Municipal, chamando-lhe tudo e mais alguma coisa. O presidente sentia, definitivamente, qualquer coisa má a respeito da senhora. Quando um dos empregados da residência o acompanhou ao carro, bêbado que nem um cacho, o presidente ainda teve forças para ameaçar os escritores de que no dia seguinte os trataria de pôr a milhas dali...
E assim fez. No dia seguinte, pelo final da manhã, o vereador da Cultura dirigiu-se ao turismo rural com o fim de levar consigo os cinco escritores para a sessão literária que estava aprazada numa livraria local. Bem instruído pelo presidente, o vereador não se fez rogado ao saber que às onze da manhã os escritores ainda estavam todos a dormir, e tratou ele próprio de ir acordá-los, um a um, aos respectivos quartos, não se mostrando manso nas fortes pancadas que infligia às portas. Meia-hora depois, já todos se encontravam no hall de entrada, partindo depois para a cidade, bastante mal dispostos pelo súbito acordar, donde que sonolentos e, pior ainda, com forte ressaca, a fim de cumprirem com os compromissos agendados. Valeu-lhes a providência e o que os esperava era uma mera sessão de autógrafos, pelo que todos se safaram sem grandes complicações, tanto mais que naquela ocasião específica não poderiam mesmo ser substituídos pelos escritores-fantasmas, que, de resto, também tinham ficado a dormir.
Esse dia seguinte, para além da referida sessão de autógrafos, não tinha previsto mais nenhum acontecimento. Quanto à ausência de Etelvina na sessão, o presidente providenciara que o seu motorista, logo de manhã bem cedo fosse à livraria onde o evento teria lugar, pegasse nos livros da autora e os levasse à residência onde ela trataria de os assinar, levando-os o motorista de regresso à livraria. E assim se fez, com grande profissionalismo e eficácia, pelo que à tarde todos poderiam descansar e continuar em busca de inspiração para as suas histórias a partir daquela experiência. O presidente tirou mais um dia de férias e passou a tarde junto de Etelvina, oleando aqui e acolá, tendo conseguido, em quatro horas, ler seis páginas de um «Almanaque Tio Patinhas» que levara consigo a entreter e educar o espírito.
Na piscina só se encontravam mesmo Etelvina e o autarca, bem como dois hóspedes estrangeiros (um casal de alemães com ar de verdadeiras salcichas) e os seis escritores-fantasmas. Etelvina estranhou a ausência dos seus cinco colegas escritores e perguntou ao edil sobre o seu paradeiro. Este, rindo-se a bom rir, disse-lhe que dera folga ao motorista e que por isso provavelmente eles não tinham conseguido voltar para o turismo rural... E mais não especificou, pouco interessado que estava em saber quem os traria de volta e a que horas. Etelvina sorriu e perguntou ao edil se não fazia o obséquio de lhe ir buscar mais um cocktail, que eram de morrer! Prestimoso, o autarca logo acedeu ao pedido, piscando o olho à autora depois de lhe mostrar os novos óleos que trouxera consigo.
A uns metros de distância, os escritores-fantasmas conversavam animadamente sobre livros, sobre as suas experiências, sobre os seus anseios literários, sobre os projectos de futuro, sobre aquilo que uns e outros andavam a escrever. José Salvador era um dos mais requisitados para a conversa, pois não só trabalhava numa casa que tinha grandes pergaminhos, como também porque era ele o homem por trás da grande Etelvina Prazeres, autora desse sucesso sem par, de sua graça: «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal». Na verdade, todos eles, mais do que em qualquer outro assunto de conversa, estavam interessados em saber pormenores e detalhes, picantes, se possível, em torno da história de Dom Quixote e da sua atribulada saída da editora. Salvador estava lá – porque apesar de preferir as noites para trabalho, naquele dia também ele estava mais do que curioso para receber um exemplar do livro acabado de sair da gráfica –, Salvador viu e ouviu, Salvador certamente que tinha muito que contar.
E Salvador satisfez a curiosidade aos seus colegas de métier, dando-lhes a conhecer tintim por tintim como tudo tinha acontecido naquela manhã. O director editorial que tinha chegado cedo como nunca aos escritórios, a dona Ifigénia que já por ali, também quase antes do galo cantar, limpava o pó aos cantos da casa, a chegada em polvorosa e com grande estardalhaço de Etelvina e do seu staff protector, a recepção dos livros ainda com cheiro forte a tinta, e depois, claro, a saída espaventosa e a grande galope de um Dom Quixote desvairado ao saber de que livro se tratava aquele, quem era Etelvina, etc., e o mais que o leitor bem recorda.
E a tarde passou-se assim, num rame-rame sonolento e morredoiro, com Etelvina Prazeres na piscina a banhos de água e sol, o senhor presidente da câmara a seu lado, todo obsequioso em matéria de óleos e demais ungidos, investido também a garçon que, sempre que a sede da autora apertava, logo se predispunha a ir buscar-lhe pronto abastecimento ao bar. E depois, à distância considerada razoável pelo edil, os seis escritores-fantasmas, todos eles aproveitando também para disfarçar um pouco a palidez de peles, cada qual com um ar mais leitoso que o seu próximo, de tipo fantasmagórico, lividez que em caso de agravamento ao ponto de doença poderia muito facilmente ser induzida, em sede de segurança social, como resultado directo da profissão exercida. Como doença profissional, em suma.
Quanto a literatura que, lembrar-se-ão, era o que levava àquelas paragens toda esta gente, nem vê-la! A única leitura ali à vista devia-se ao presidente, mas devia ser do tipo hermético ou filosófico, pois o edil não havia maneira de chegar ao fim do almanaque das aventuras do Tio Patinhas... De resto, também dos escritores, os reais, não havia ainda sinal. E só houve bem ao final da tarde, que foi quando chegaram de táxi ao turismo rural, já o sol começava a despedir-se na linha do horizonte. Esgotados da sessão de autógrafos que se tinha prolongado pela tarde fora, suando a bom suar, chegaram, não falaram a ninguém, e apenas deitaram um olhar raivoso ao autarca que relaxava ainda numa espreguiçadeira. Irritados, os escritores só tiveram forças para tomar um duche, descer para jantar e logo em seguida recolher aos seus quartos para uma retemperadora noite de sono. Tinham cumprido o segundo dia da residência e ainda também nenhum deles tinha a menor ideia sobre o que iriam escrever, melhor, nenhum deles sequer se tinha lembrado de que esse era um dos pressupostos da residência, isto é, a partir da experiência havida criar um pequeno texto literário. Talvez no dia seguinte algum dos escritores-fantasmas se lembrasse do assunto. Talvez... talvez porque nessa noite os escritores-fantasmas não se portaram por aí além e não sabemos se algum deles terá ficado em condições para no dia seguinte escrever uma linha que fosse. Vamos já a esses sucessos, pois que ao contrário dos escritores, os escritores-fantasmas, depois do jantar, estavam frescos que nem gambas acabadas de sair do frigorífico com pedrinhas de gelo e, logo, prontíssimos para agarrar a noite ou, como diz o povo, pintar a manta. Foi o que fizeram.
De Martini em Martini, de Gin em Gin, de Caipiroska em Caipiroska, o grupo entrou pela noite dentro em grande reinação. Etelvina, que desde pequena tinha uma estranha fixação por microfones, foi a primeira a dar o mote. Bem alegre, assolapou o palco para si, agarrou-se ao micro e à aparelhagem de karaoke, pondo ao rubro a sua assistência «privada». Cantou, cantou, cantou e cantou mais ainda, cantou todo o repertório existente enquanto o presidente e os escritores-fantasmas a acompanhavam num coro que mais parecia de lamúrias ou cornudos. Foi uma verdadeira chuva de estrelas, e só quem lá esteve poderá ter ficado com a exacta noção do que aquilo foi. Só pelas cinco da manhã, muitos drinks adentro, muita cantoria depois, é que os escritores-fantasmas e Etelvina decidiram dar por terminada a sessão, subindo aos seus quartos. O presidente, esse não decidiu nada pois havia já uma hora que dormia e ressonava de barriga e cabeça enfiadas para baixo num dos sofás do bar.
A caminhada dos sete elementos até ao andar de cima do turismo não foi tarefa fácil e mais parecia que todos caminhavam para o Calvário, só lhes faltando a cruz para o efeito. «Cruzes canhoto!», disse para si o rapaz do turno nocturno por trás do balcão da recepção a ver tão comatoso espectáculo. Todos se amparavam uns aos outros e todos os escritores-fantasmas muito interessados pareciam em amparar as curvas de Etelvina, que não via um palmo à sua frente e, rouca que estava, só dizia coisas sem nexo, tipo que um dia haveria de ir a Estocolmo receber o Nobel, que o Saraiva não pensasse que era só ele o maior escritor, que o Saramago tinha a mania que era o dono das morais, que o Lobo António (foi assim que disse) bem podia ter aquele arzinho de intelectual depressivo-compulsivo, mas que ela, ela Etelvina Prazeres com muito prazer, tinha ainda muito para dar à literatura e sobretudo dela a receber...
Engano ou não (talvez algum dia um dos escritores-fantasmas envolvidos na cena venha a pôr em livro a verdade dos factos), vá lá saber-se porquê mas quando, quase às duas da tarde do dia seguinte, um a um, seguidos de Etelvina no final, cada qual com uma dor de cabeça maior, foram acordando, a verdade é que nenhum deles saberia explicar ou se lembrava de como e porquê todos tinham ido parar à cama de Etelvina. Quanto ao presidente, fora acordado ao meio-dia, ainda de cabeça atarracada numa almofada, babando-se ao de leve quando sonhava ser o Robbie Williams rodeado de top models em trajes menores numa pista de dança. Estremunhado e de mau humor, com a cabeça a pesar toneladas, o autarca só abriu olho depois de muitos safanões no ombro que lhe dera o vereador da cultura. «Presidente, presidente, acorde, acorde presidente!». O homem estava em stress e não era para menos. Havia que cumprir o programa da Residência Literária e a agenda dizia que nesse dia, às três da tarde, deveria ter lugar a sessão de abertura da Feira do Livro. Ora, a abertura estava confiada à tesoura do autarca e durante toda a manhã o pessoal da Câmara o tinha procurado por toda a cidade sem dele reunir notícia. «Ó senhor presidente, acorde! Ai, senhor presidente, a directora da Biblioteca vai-me matar! Acorde, por amor de Deus, temos que ir para a feira do livro. Presidente, olhe que a sua esposa está em cuidados...»
Ao ouvir a palavra «esposa» o edil como que chegou à terra, isto é, acordou de supetão, pondo-se direito que nem um espeto como que querendo dar a entender que estava muito bem, tudo estava sob controle e que ali o tinham a prontos para acudir aos seus deveres e tomar em mãos as responsabilidade atinentes à função que exercia, a de comandar os gloriosos destinos da sua autarquia. «A feira? Pois, vamos já para lá, que já me podia ter vindo acordar muito mais cedo, senhor vereador!» E dali saiu de rompante, algo estonteado da ressaca, mas determinado a cumprir com a agenda da Residência. Antes, teve ainda tempo de dar ordem na recepção para que logo, logo acordassem Etelvina e os demais escritores, que também preste, muito preste chegaria a carrinha da Câmara para os levar. O rapazito da Recepção envidou então esforços para acordar os clientes da suite 69 (onde se encontravam Etelvina e os seis fantasmas). Telefonou para o quarto, deixou tocar, tocar, tocar e nada. Ninguém atendia. Todos dormiam ainda a bom dormir.
Pouco depois, chegava a carrinha da Câmara com o vereador da Cultura a comandar as operações, devidamente instruído para não arredar dali sem os escritores. O que até não foi tarefa difícil já que, à excepção de Etelvina, todos tinham acordado cedo, tendo-se decidido a um passeio a cavalo pelos campos. Só que as instruções do presidente eram bem precisas, todos os escritores deveriam estar presentes na Feira, pelo que Etelvina não podia ser excepção. Só que a prestigiada autora dormia! Porém, ao vereador da Cultura não restava outra solução, caber-lhe-ia arrancar Etelvina às profundezas do sono. Junto do moço da recepção o vereador tentou novamente a ligação por telefone ao 69, mas nada feito. Tinha mesmo que recorrer a uma solução extrema, pediu a chave dupla do quarto e foi para lá que se dirigiu. Mais devera não tê-lo feito, tal foi o susto que apanhou mal fez rodar a chave na fechadura e deparando-se com o espectáculo que lhe calhou em sorte. Nus, nuzinhos tal como tinham vindo ao mundo, ressonando sobre os lençóis em alvoroço, os seis escritores-fantasmas abraçavam-se a Etelvina que descansava ainda com um sorriso nos lábios. O susto do vereador foi de tal ordem que ia-lhe dando uma síncope cardíaca, pelo que levou a mão ao peito e arfou com dificuldade, encostando-se com estrondo à porta entreaberta. Com o barulho, Etelvina e os seus escritores-fantasmas acordaram um a um e um a um foram estranhando o que raio fazia ali, àquela hora, de mão junto ao pescoço tentando desapertar a gravata e arfando que nem um louco o vereador da Cultura.
Refeito o vereador com um copinho de água fresca açucarada, sem mais delongas o «braço direito» do presidente instou os circunstantes a se vestirem e pediu a Etelvina que, sem mais delongas, se encaminhasse para o piso de baixo onde a carrinha camarária a aguardava para levá-la, mais aos outros escritores, à Feira do Livro, cuja abertura estava agendada para daí a poucos minutos. Ordens do presidente! Etelvina, algo irritadiça com o stress todo daquele acordar, tanto mais que mal teve tempo para tomar o pequeno-almoço com calma e, inacreditavelmente, nem sequer pudera dar um mergulho na piscina, estava uma pilha de nervos. Porém, a insistência do vereador da Cultura, Etelvina lá subiu, com a calma possível, para dentro da carrinha, dando ao mesmo tempo uma trinca numa sandes de panado e segurando noutra mão um croquete. A tarde na piscina ficou deste modo por conta dos escritores-fantasmas, que assim se tiveram oportunidade de se refazer dos excessos cometidos na noite anterior. Depressa chegaria ao fim o terceiro dia da Residência Literária, faltava apenas um para cumprir, aquele em que, supostamente, os escritores apresentariam, em sessão camarária, uma sinopse das ideias que pretenderiam desenvolver a partir da sua estadia ali durante aqueles quatro dias.
A sessão na feira do livro acabou por decorrer sem factos de monta a referir, muito embora tenha havido quem perguntasse pelo paradeiro dos escritores-fantasmas que tão boa conta de si e dos seus méritos literários haviam dado na sessão inaugural da residência. Quanto aos escritores, uma vez mais, todas as atenções se voltaram para Etelvina que acabou por passar uma tarde divertida a dar autógrafos, tanto mais que faltara à sessão do dia anterior. Seguiu-se depois fausta jantarada, sempre patrocinada pelo senhor presidente, agora já mais controlado nos comes e bebes em virtude da presença da esposa, e a noite terminou numa discoteca local com a música a «bombar» e, desta feita, com o vereador da Cultura – em substituição do edil que tinha levado com ordem de marcha da esposa para se dirigir com ela para casa –, a mostrar os seus dotes de dançarino. Lá para as três da manhã, todos regressaram ao Turismo Rural e enfiaram-se directamente (sem passagem pelo bar) nos seus quartos. Todos, excepto Etelvina e o vereador que por então se entendiam às mil maravilhas, ficando na conversa mole, acompanhada de um drink até às duas da manhã.
Foi pouco para lá dessa hora que, lá em cima, mal os escritores tinham acabado de pregar olho, sonhando já com os anjinhos, foram acordados por estranhos barulhos, vozes sussurrantes que mais pareciam gemidos vindos do além. Etelvina não lhes ligou patavina (aqui entre nós, porque acabara por se envolver com o vereador da Cultura entre lençóis), mas os escritores assustaram-se a bom assustar. Não vale a pena esconder, é claro que eram os escritores-fantasmas que novamente davam azo à sua propensão para a diversão nocturna. Tinham todos acabado de regressar de uma discoteca e haviam decidido pregar um susto aos seus escritores. E, neste concreto, se eram escritores-fantasmas quem poderia recriminá-los pelo facto?

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