XXII.
Coitado do Pai Natal. Menção à Final Feliz. O bravo cavaleiro esmorece. Pensou em escrever crónicas, pensou até em mudar de visual. O cavaleiro Dom Quixote montado no seu cavalo? Garanto pela vidinha e saúde das minhas filhas.
Quem já não acreditava no Pai Natal nem em ninguém era Dom Quixote que, após dias e dias de errância pela capital lusitana, quase que desistira por completo, e por faltas de força, dos seus propósitos iniciais, de quando desandara da Dom Quixote animado em provar ao mundo da edição que ele ainda tinha muito para dar à literatura portuguesa. Que o mundo da edição não tinha perdido por completo a dignidade, que o último reduto da moral ainda reunia forças suficientes para resistir, para invocar novas ninfas éticas e imprimir à literatura lusa um crivo de verticalidade que lhe escapava a cada dia que passava, a cada nova editora que surgia no mercado com intuitos meramente economicistas. Não, com Dom Quixote a esperança não morreria, pois ele, bravo cavaleiro, qual Camões a nado agarrado a’«Os Lusíadas», levantaria bem alto a bandeira das Letras nacionais... Mas isso, isso foi no início, e aqui foi assaz referido e enaltecido pois era de um herói que falávamos, de um herói que continuamos a falar, e um herói deve sempre ser apresentado ao leitor como garante último das virtudes humanas. Agora, infelizmente, e bem ao contrário, o ânimo de Dom Quixote esmorecia. E como recriminá-lo? Espírito algum, verdadeiro amante dos livros e da palavra, poderá resistir por tempo eterno à devassidão da essência do livro? Qual o amador do texto e das ideias que consegue assistir, impávido e sereno, ao aviltamento do livro, ao estupro literário a que o condenam as supostas e teóricas necessidades de um público que não vê nele senão a porta para a coscuvilhice, para o reles e primário acerto de contas, para um confessionalismo amoroso de índole “folhetinosa” e pretensamente emocional, que não vê no livro senão um espelho de papel das vaidades próprias?
Dom Quixote tinha batido a inúmeras portas de diversas editoras, jovens empresas que pululavam como cogumelos na realidade editorial portuguesa, mas de todas tinha saído tal como entrara, isto é, excluídos lança e escudo, sem nada nas mãos. O bravo cavaleiro tinha-se sujeitado a enfrentar de mão estendida meros pretendentes à condição de editores, quando todos eles desmerecem o epíteto, todos eles não passando de meros predadores do livro, da sua essência, do seu mais profundo significado. Todos eles também vermes que vão sugando o espaço de mercado, afastando das estantes, das montras, das livrarias, os verdadeiros livros, as vidas e as histórias que contam, os livros fervilhantes de imaginação, de fantasia, de magia, de onírico, de invenção, de criatividade. Porque o verdadeiro livro é esse, um objecto que cria, que ilumina, que revela novos mundos, que acrescenta, em si um acto de criação. Pequenos mundos que se acrescentam ao mundo. Escrever é ousar experimentar o acto da criação. É partir do nada, que é o mundo à nossa volta, e acrescentar uma letra ao universo da criação. Naturalmente, tudo teorias e lirismos que escapam à regra do lucro fácil e rápido que move esses novos pretendentes a “editores”.
E naturalmente que ninguém tinha apostou verdadeiramente nas qualidades de Dom Quixote, ninguém sequer lhe concedeu o benefício da dúvida, uma hipótese, ténue e singela que fosse, até por cortesia, para mostrar o seu valor, para imprimir força às suas ideias e convicções, para mostrar que o livro Livro não tinha morrido, que o Livro haveria de sobreviver. Mas não, o mais que ele logrou alcançar, pobre e parca conquista, fora o convite estapafúrdio e indignante do Hare-editor da Oriente(-se). Não, minto, tivera ainda uma outra proposta, uma original proposta vinda de uma outra editora de nome curioso, a Final Feliz, que, como se adivinhará, tinha chegado ao mercado apenas para editar livros com final feliz! Pois o director da Final Feliz, em abono da verdade, também se compadecera do bravo cavaleiro e chegara a propor-lhe que escrevesse um livro em que Dom Quixote e Dom Chicote se bateriam em duelo na Praça de Toiros do Campo Pequeno (com entradas pagas a reverter directa e naturalmente para os bolsos da Final Feliz). Dom Quixote, obviamente que seria o vencedor e sairia da arena em ombros aclamado pelo povo...
Foi depois de todas estas andanças e desventuras que um certo dia um assomo de depressão assentou praça no peito de Dom Quixote. Retirou-se das ruas centrais de Lisboa para um local recôndito onde poucos o pudessem ver, e aí, pensou e pensou, remoeu e remoeu a sua vida e a sua desdita. E pensou até que não podendo vencer as regras do novo mercado, julgou por momentos que o melhor que faria era juntar-se-lhes ou jogar com elas. Pensou até em aceitar uma proposta da Star Books para pôr a sua vida em livro, pensou em aceitar escrever crónicas semanais para um jornal diário e para uma revista semanal do coração («Cartas a Dulcineia», sugeriu o director do “pasquim”), pensou também em escrever este livro que o leitor tem em mãos (dizem mesmo que terá escrito umas páginas, desinteressando-se depois do projecto por achar que nenhuma editora teria coragem para se interessar por ele), pensou até em mudar de visual, tanto que tinha ouvido falar em imagem e na importância do parecer nos dias de hoje. Mas logo, logo, ao pensar em tudo isso, se julgou louco (mais do que literariamente era) e, imaginando-se de cabelo, bigodes e barbas cortados, de fato e gravata montado no seu Rocinante, achou a visão tão ridícula que no imediato abandonou tais estapafúrdios projectos. Recriminou-se mesmo por ter vacilado, por ter sequer imaginado em juntar-se à lógica assassina do mercado. Não, não poderia fazê-lo, jamais, jamais o faria.
Nesse dia, nesse exacto dia em que tal certeza, tal pensamento acudiu à sua mente, Dom Quixote decidiu partir. Sim, antes partir do que ceder, do que alinhar, do que se vender. E a verdade, a verdade é que nesse dia em que Dom Quixote desapareceu em direcção a Este, provavelmente em direcção à sua terra Natal, diluindo-se na linha do horizonte até se transformar num ponto que, também ele, depois desapareceria, o céu, quase de um momento para o outro, encheu-se de nuvens brancas que entrando em colisão umas com as outras originaram uma tempestade como havia muito por ali se não via. «Parecia que o céu de repente se fechava como um livro grosso, com enorme estrépito, bramido e fragor», testemunhou um aldeão de um lugarejo ali próximo, um pouco para lá da ponte Vasco da Gama. Ao que outro, corroborando a impressão do primeiro, ajuntou, em directo para as câmaras de televisão: «E logo a seguir, o mais estranho de tudo, é que mal as chuvas e os trovões se calaram, as nuvens todas se juntaram dando forma a uma figura que, garanto pela vidinha e saúde das minhas filhas, era a do cavaleiro Dom Quixote montado no seu cavalo. Mas isso foi coisa de segundos, depois o cavalo levantou as pernas dianteiras – aquilo mais parecia o cavalo do John Wayne –, para logo de seguida cavaleiro e montada se virarem e partirem a galope esfumando-se as nuvens de que eram feitos num céu de um azul puro.»
Nessa mesma noite, ao saber dos acontecimentos pelo telejornal, o ex-director editorial da Dom Quixote, actual director da Dom Chicote, teve dificuldades em adormecer e quando o conseguiu foi no imediato assolado a noite inteira por pesadelos em que o bravo cavaleiro, montado no Rocinante, corria atrás dele de lança em riste, até que ele acabava por cair num abismo ao fundo do qual lhe aparecia Etelvina Prazeres vestida de diabo, com tridente na mão, rindo-se para ele às gargalhadas.
FIM
terça-feira, 15 de janeiro de 2008
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário