XXI.
De regresso à Residência Literária. Os ímpetos vulcânicos do vereador da Cultura. O caldo entornado. Os escritores, essa tropa de vadiagem. Salvador de novo agarrado aos estofos do BMW. Um reencontro animado e cheio de novidades. Uma tese de doutoramento e a Peso Pluma.
Retrocedendo neste relato até terras da autarquia onde decorria a Residência Literária, na qual participavam Etelvina, cinco colegas seus e respectivos seis escritores-fantasmas, lembramos que estávamos no ponto em que os escritores reais (atenção, não se confunda com o verdadeiro escritor Miguel Real) tinham acabado de apanhado um grande susto com as brincadeiras nocturnas dos escritores-fantasmas. Estavam ainda no primeiro sonho, não gostaram da brincadeira, mas quem estava a gostar dela, ainda que de outra índole, era Etelvina Prazeres que na sua já famosa suite 69 descobria vulcânicos ímpetos ao vereador da Cultura.
O vereador, recordemos, tinha bebido uns copitos na Feira do Livro e também ele, na ocasião (que se faz o ladrão, como é sabido, passa a saber-se que também faz o vereador) se tinha posto a lançar olhares gulosos a Etelvina a qual, não se fazendo rogada, lhe respondia olhando-o de alto a baixo, entre um autógrafo e outro, pondo por momentos a língua marota ao canto da boca. Topando a cena à distância, o presidente, retido pela conversa da directora da Biblioteca Nacional, roía-se todo, tanto mais que na ocasião nada podia fazer para evitar aquele comércio de olhares já que ali presente, junto de si, estava também a sua esposa que não lhe largava o braço. A verdade é que, como atrás referimos noutro capítulo, autora e vereador se entenderam muito bem no regresso ao Turismo Rural, tecendo-lhe ela verdadeiras loas pelos seus dotes de bailarino e retribuindo-lhe aquele com beliscadelas nas carnes ao arrepio dos olhares dos escritores.
Aí chegados, os dois demoraram-se em estratégica conversa no bar, esperando apenas que os escritores tratassem de recolher aos seus leitos. O que logo aconteceu, tendo autora e vereador aguardado mais um tempinho julgado necessário para que adormecessem. Não tardou que terminassem as suas bebidas e juntos recolhessem ao 69 para umas avarias controladas, já que Etelvina, depois do que vira nessa manhã, com o vereador cheio de falta de ar agarrado à porta da suite, não queria arriscar em excesso, não fosse o diabo tecê-las e pregar uma partida ao coração do vereador e, por decorrência, ao seu, coitadito. Alegrar-se-iam, contudo.
E os mistérios do ser humano são por demais insuspeitos. Tivessem confiado a Etelvina que aquele vereador, de ar perfeitamente banal, era uma verdadeira esmeriladora do sexo e Etelvina, com toda a sua experiência jamais teria acreditado em semelhante dislate. Só que a realidade era outra e aquele homem de pobre e fraca figura escondia em si (e agora o revelava) um verdadeiro vulcão, um furacão, um tsunami! E que tsunami cheio de surpresas! Enquanto satisfazia a autora, o vereador declarava-lhe ao ouvido passagens dos «120 Dias de Sodoma», do Marquês de Sade, de «Trópico de Capricórnio», de Henry Miller e Saramago (este autor, confessamos, não chegámos nunca a perceber porquê se encontrava misturado nos sussurros orgásticos do vereador). Era um homem curioso este vereador, uma vez que depois das frases que declamava cavalgando Etelvina, ele próprio se detinha nos seus movimentos para, por momentos a sai próprio se bater palmas. Etelvina, chateada com a ideia, só lhe dizia: «Ai meu vereador, meu vereador, que me cite Saramago ainda vá que não vá, agora que se ponha a bater palmas... isso interrompe-me o gozo, quebra-me o prazer... ai, isso não meu vereador, porque é que em vez das palmas não me dá antes umas palmadas valentes?...»
E nestes meandros se finou o último dia da Residência Literária. Não se pode dizer que tenha sido uma residência profícua em termos de realizações literárias, tanto mais que a experiência acabou por voltar-se muito mais para os domínios da carne do que para os do espírito, e a verdade é que de textos aí exauridos nada vezes nada. Ninguém tinha alinhado uma só ideia, escrito uma só linha. Em consequência, e malgrado a realização de outras actividades, como as diversas supracitadas, houve que tirar consequências políticas desse vazio, desse fiasco, da inexistência de prova material, ao fim ao cabo, da passagem dos ilustres escritores pela autarquia a expensas desta, «e a que expensas!», indignava-se o presidente em sessão de assembleia autárquica. Os assomos de raiva e intuitos de vingança do presidente eram mais do que explicáveis, pois coube-lhe a ele, no dia da partida da comitiva de escritores de regresso a Lisboa, ir ao Turismo Rural para acordar Etelvina e dela se despedir.
Julgara o presidente que era isso, tão-só e simplesmente, que iria fazer. Acordar a autora de «A Verdade de Cristal» e qual princesa a que se dirigisse oferecer-se para seu príncipe em futuros encontros, quer em deslocações, dele, à capital, quer em viagens, dela, ao interior. Chegando ao Turismo Rural como quem a sua casa chegasse, pondo e dispondo, nada perguntando apenas actuando, assim o presidente se aprestou a subir a escada até ao primeiro piso dirigindo-se à suite 69. Pelo sim pelo não, o autarca trouxera os seus óleos, quem sabe à autora apetecesse uma massagem de despedida... Chegado à porta da suite, o presidente bate leve, levemente como quem batesse à porta de um convento. O mais, o leitor avisado, tendo já juntado dois mais dois, acaba certamente de inferir. Quem lhe vai abrir a porta, em trajes menores, é o vereador da Cultura e... e está o caldo entornado.
Foi depois desta cena, e nos dias seguintes, na dita sessão de assembleia autárquica, que o furibundo presidente da Câmara quis tirar consequências políticas do flagrante em que apanhou o seu vereador e Etelvina. Esta, claro, a nossa versão, pois aquilo que o edil aduzia, para a necessidade de se retirarem consequências, era o não cumprimento de um dos objectivos primeiros da Residência Literária, a redacção de textos, por parte dos escritores, que depois seriam impressos pela autarquia em edição da sua responsabilidade. «Que se tinham gasto mundos e fundos com a brincadeira dos escritores, essa tropa de vadiagem», e que ele só via dois repensáveis em todo o processo: a directora da Biblioteca Municipal e o vereador da Cultura. Escusado será dizer que ambos foram destituídos dos seus cargos.
Alheios a toda essa polémica autárquica os escritores e os escritores-fantasmas tinham regressado a Lisboa. José Salvador que até tinha ganho uma corzinha de pele naqueles dias, voltara a perdê-la rapidamente agarrado outra vez aos estofos do BMW de Etelvina que engolia a auto-estrada a quase duzentos quilómetros por hora. Uns e outros teriam muito para contar e para escrever. No mais, a verdade é que, seres realistas urbanos por excelência que eram, já sentiam a falta da grande cidade, do trânsito avançando a golfadas, do tempo contado aos minutos, do stress da chegada ao trabalho e, na verdade, assim tinham confessado uns aos outros, era apenas com essa adrenalina quotidiana que conseguiam encontrar inspiração para escrever.
Etelvina, logo no dia seguinte foi ter com o seu director editorial. Almoçaram juntos e ele riu-se imenso com as histórias que ela lhe contou, que tinham apanhado um tempo excelente, que as sessões de autógrafos tinham sido um sucesso, que ela se sentia agora revigorada para se poder oferecer, de coração aberto, ao acto criativo. O director pô-la também a par das novidades, das notícias relacionadas com Dom Quixote, pois ninguém falava de outra coisa (que, ao que tinha vindo a público num tablóide a Câmara de Lisboa até pensara em erigi-lo a ícone da cidade), avançou-lhe a excelência dos números de vendas do seu livro, que continuava a esgotar edições, não deixava os primeiros lugares dos tops de vendas e, adivinhasse Etelvina, «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal» ia mesmo ser alvo de uma tese de doutoramento!
Durante o encontro, o director editorial falou ainda a Etelvina dos novos sucessos da Dom Chicote (nomeadamente com o sucesso de vendas de uma nova colecção de literatura gay, a que chamara Peso Pluma), e depois de ter perguntado à autora se o José Salvador se tinha portado bem, o director editorial anunciou a Etelvina que já tinha maquinado o enredo do seu novo livro. Tratar-se-ia de um romance, um romance com cerca de quinhentas páginas, um verdadeiro romance que, de uma vez por todas, a afirmaria enquanto romancista e escritora de vulto. Ao ouvir falar em quinhentas páginas Etelvina assustou-se. «Ai director. Quinhentas páginas? Mas isso deve pesar quilos! E o que é que vamos dizer em tantas páginas?» O director editorial riu a bom rir de tão naives temores. «Não se preocupe, Vi (e já tínhamos saudades de ver assim tratada a nossa autora, facto que só deixou de se verificar, nos últimos capítulos deste relato, porque na província ninguém a conhecia desse modo), está tudo tratado, hoje mesmo vou ter um pé de orelha com o nosso escritor-fantasma e em poucos meses a coisa está tratada. Tem de estar mesmo, porque o livro tem de sair antes do Natal.» «Ai, director, já estou nervosa, gosto tanto do Pai Natal».
De regresso à Residência Literária. Os ímpetos vulcânicos do vereador da Cultura. O caldo entornado. Os escritores, essa tropa de vadiagem. Salvador de novo agarrado aos estofos do BMW. Um reencontro animado e cheio de novidades. Uma tese de doutoramento e a Peso Pluma.
Retrocedendo neste relato até terras da autarquia onde decorria a Residência Literária, na qual participavam Etelvina, cinco colegas seus e respectivos seis escritores-fantasmas, lembramos que estávamos no ponto em que os escritores reais (atenção, não se confunda com o verdadeiro escritor Miguel Real) tinham acabado de apanhado um grande susto com as brincadeiras nocturnas dos escritores-fantasmas. Estavam ainda no primeiro sonho, não gostaram da brincadeira, mas quem estava a gostar dela, ainda que de outra índole, era Etelvina Prazeres que na sua já famosa suite 69 descobria vulcânicos ímpetos ao vereador da Cultura.
O vereador, recordemos, tinha bebido uns copitos na Feira do Livro e também ele, na ocasião (que se faz o ladrão, como é sabido, passa a saber-se que também faz o vereador) se tinha posto a lançar olhares gulosos a Etelvina a qual, não se fazendo rogada, lhe respondia olhando-o de alto a baixo, entre um autógrafo e outro, pondo por momentos a língua marota ao canto da boca. Topando a cena à distância, o presidente, retido pela conversa da directora da Biblioteca Nacional, roía-se todo, tanto mais que na ocasião nada podia fazer para evitar aquele comércio de olhares já que ali presente, junto de si, estava também a sua esposa que não lhe largava o braço. A verdade é que, como atrás referimos noutro capítulo, autora e vereador se entenderam muito bem no regresso ao Turismo Rural, tecendo-lhe ela verdadeiras loas pelos seus dotes de bailarino e retribuindo-lhe aquele com beliscadelas nas carnes ao arrepio dos olhares dos escritores.
Aí chegados, os dois demoraram-se em estratégica conversa no bar, esperando apenas que os escritores tratassem de recolher aos seus leitos. O que logo aconteceu, tendo autora e vereador aguardado mais um tempinho julgado necessário para que adormecessem. Não tardou que terminassem as suas bebidas e juntos recolhessem ao 69 para umas avarias controladas, já que Etelvina, depois do que vira nessa manhã, com o vereador cheio de falta de ar agarrado à porta da suite, não queria arriscar em excesso, não fosse o diabo tecê-las e pregar uma partida ao coração do vereador e, por decorrência, ao seu, coitadito. Alegrar-se-iam, contudo.
E os mistérios do ser humano são por demais insuspeitos. Tivessem confiado a Etelvina que aquele vereador, de ar perfeitamente banal, era uma verdadeira esmeriladora do sexo e Etelvina, com toda a sua experiência jamais teria acreditado em semelhante dislate. Só que a realidade era outra e aquele homem de pobre e fraca figura escondia em si (e agora o revelava) um verdadeiro vulcão, um furacão, um tsunami! E que tsunami cheio de surpresas! Enquanto satisfazia a autora, o vereador declarava-lhe ao ouvido passagens dos «120 Dias de Sodoma», do Marquês de Sade, de «Trópico de Capricórnio», de Henry Miller e Saramago (este autor, confessamos, não chegámos nunca a perceber porquê se encontrava misturado nos sussurros orgásticos do vereador). Era um homem curioso este vereador, uma vez que depois das frases que declamava cavalgando Etelvina, ele próprio se detinha nos seus movimentos para, por momentos a sai próprio se bater palmas. Etelvina, chateada com a ideia, só lhe dizia: «Ai meu vereador, meu vereador, que me cite Saramago ainda vá que não vá, agora que se ponha a bater palmas... isso interrompe-me o gozo, quebra-me o prazer... ai, isso não meu vereador, porque é que em vez das palmas não me dá antes umas palmadas valentes?...»
E nestes meandros se finou o último dia da Residência Literária. Não se pode dizer que tenha sido uma residência profícua em termos de realizações literárias, tanto mais que a experiência acabou por voltar-se muito mais para os domínios da carne do que para os do espírito, e a verdade é que de textos aí exauridos nada vezes nada. Ninguém tinha alinhado uma só ideia, escrito uma só linha. Em consequência, e malgrado a realização de outras actividades, como as diversas supracitadas, houve que tirar consequências políticas desse vazio, desse fiasco, da inexistência de prova material, ao fim ao cabo, da passagem dos ilustres escritores pela autarquia a expensas desta, «e a que expensas!», indignava-se o presidente em sessão de assembleia autárquica. Os assomos de raiva e intuitos de vingança do presidente eram mais do que explicáveis, pois coube-lhe a ele, no dia da partida da comitiva de escritores de regresso a Lisboa, ir ao Turismo Rural para acordar Etelvina e dela se despedir.
Julgara o presidente que era isso, tão-só e simplesmente, que iria fazer. Acordar a autora de «A Verdade de Cristal» e qual princesa a que se dirigisse oferecer-se para seu príncipe em futuros encontros, quer em deslocações, dele, à capital, quer em viagens, dela, ao interior. Chegando ao Turismo Rural como quem a sua casa chegasse, pondo e dispondo, nada perguntando apenas actuando, assim o presidente se aprestou a subir a escada até ao primeiro piso dirigindo-se à suite 69. Pelo sim pelo não, o autarca trouxera os seus óleos, quem sabe à autora apetecesse uma massagem de despedida... Chegado à porta da suite, o presidente bate leve, levemente como quem batesse à porta de um convento. O mais, o leitor avisado, tendo já juntado dois mais dois, acaba certamente de inferir. Quem lhe vai abrir a porta, em trajes menores, é o vereador da Cultura e... e está o caldo entornado.
Foi depois desta cena, e nos dias seguintes, na dita sessão de assembleia autárquica, que o furibundo presidente da Câmara quis tirar consequências políticas do flagrante em que apanhou o seu vereador e Etelvina. Esta, claro, a nossa versão, pois aquilo que o edil aduzia, para a necessidade de se retirarem consequências, era o não cumprimento de um dos objectivos primeiros da Residência Literária, a redacção de textos, por parte dos escritores, que depois seriam impressos pela autarquia em edição da sua responsabilidade. «Que se tinham gasto mundos e fundos com a brincadeira dos escritores, essa tropa de vadiagem», e que ele só via dois repensáveis em todo o processo: a directora da Biblioteca Municipal e o vereador da Cultura. Escusado será dizer que ambos foram destituídos dos seus cargos.
Alheios a toda essa polémica autárquica os escritores e os escritores-fantasmas tinham regressado a Lisboa. José Salvador que até tinha ganho uma corzinha de pele naqueles dias, voltara a perdê-la rapidamente agarrado outra vez aos estofos do BMW de Etelvina que engolia a auto-estrada a quase duzentos quilómetros por hora. Uns e outros teriam muito para contar e para escrever. No mais, a verdade é que, seres realistas urbanos por excelência que eram, já sentiam a falta da grande cidade, do trânsito avançando a golfadas, do tempo contado aos minutos, do stress da chegada ao trabalho e, na verdade, assim tinham confessado uns aos outros, era apenas com essa adrenalina quotidiana que conseguiam encontrar inspiração para escrever.
Etelvina, logo no dia seguinte foi ter com o seu director editorial. Almoçaram juntos e ele riu-se imenso com as histórias que ela lhe contou, que tinham apanhado um tempo excelente, que as sessões de autógrafos tinham sido um sucesso, que ela se sentia agora revigorada para se poder oferecer, de coração aberto, ao acto criativo. O director pô-la também a par das novidades, das notícias relacionadas com Dom Quixote, pois ninguém falava de outra coisa (que, ao que tinha vindo a público num tablóide a Câmara de Lisboa até pensara em erigi-lo a ícone da cidade), avançou-lhe a excelência dos números de vendas do seu livro, que continuava a esgotar edições, não deixava os primeiros lugares dos tops de vendas e, adivinhasse Etelvina, «Etelvina Prazeres – A Verdade de Cristal» ia mesmo ser alvo de uma tese de doutoramento!
Durante o encontro, o director editorial falou ainda a Etelvina dos novos sucessos da Dom Chicote (nomeadamente com o sucesso de vendas de uma nova colecção de literatura gay, a que chamara Peso Pluma), e depois de ter perguntado à autora se o José Salvador se tinha portado bem, o director editorial anunciou a Etelvina que já tinha maquinado o enredo do seu novo livro. Tratar-se-ia de um romance, um romance com cerca de quinhentas páginas, um verdadeiro romance que, de uma vez por todas, a afirmaria enquanto romancista e escritora de vulto. Ao ouvir falar em quinhentas páginas Etelvina assustou-se. «Ai director. Quinhentas páginas? Mas isso deve pesar quilos! E o que é que vamos dizer em tantas páginas?» O director editorial riu a bom rir de tão naives temores. «Não se preocupe, Vi (e já tínhamos saudades de ver assim tratada a nossa autora, facto que só deixou de se verificar, nos últimos capítulos deste relato, porque na província ninguém a conhecia desse modo), está tudo tratado, hoje mesmo vou ter um pé de orelha com o nosso escritor-fantasma e em poucos meses a coisa está tratada. Tem de estar mesmo, porque o livro tem de sair antes do Natal.» «Ai, director, já estou nervosa, gosto tanto do Pai Natal».
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