XVIII.
Um calor dos diabos e o Alberto Bragança. Dom Quixote bate à porta da Oriente(-se). O jovem Hare e o hare-editor. Uma renovação de look à imagem de Krishnamurti, para além de um curso intensivo de Teosofia. Um Grão de Caril com Coco e outras especialidades.
Desiludido quanto baste com a conversa que mantivera com a editora da Ideias Fantásticas, Dom Quixote continuou a sua errância por uma Lisboa soalheira e quentíssima. Suava por todos os lados e manter-se dentro da armadura quase equivalia a estar a candidatar-se a transformar-se num grelhado. Resistiu, porém, pois um cavaleiro digno desse nome jamais se desfazia da sua armadura. Tirou o elmo, e dirigiu-se ao local onde deixara «estacionado» Rocinante. Por sorte, este estava num sítio onde agora fazia sombra e Dom Quixote aproveitou para se resguardar do sol inclemente. Ia a tentar subir para a garupa quando olhando ao poucos metros de si viu uma cara conhecida.
Mas, mas?... Sim, era ele, era mesmo ele, não estava enganado, conhecia-o muito bem, embora já não o visse ira para um bom par de anos. Era o Alberto, o Alberto Bragança, o grande escritor de contos, o melhor no género, sem dúvida, reconhecido pelos escritores, reconhecido pelos mais diversos Prémios Literários, reconhecido em vida, caso raro, por diversas homenagens que lhe foram prestadas em tempo. O Bragança... Mas agora que se punha a pensar nisso, nunca mais soubera que ele tivesse editado material novo, histórias frescas, no seu estilo sardónico e bem humorado, corrosivo e altamente culto. Que lhe teria acontecido? Porque é que nunca mais editara? E que diabo estava ali a fazer, encostado à parede, com um ar parado e emudecido, como se não fosse um homem de palavras e dos mais distintos, para mais!
Dom Quixote aproximou-se e foi então que o espanto mais se apoderou dos seus olhos. Que era o Bragança era, apesar de mais uma rugazita ou outra, apesar das cãs brancas polvilhando-lhe a farta cabeleira (essa continuava a mesma), apesar das barbas crescidas. Mas o Bragança apesar de ser o mesmo parecia outro! O seu olhar tinha perdido o brilho de antigamente, na comissura dos seus lábios nem um assomo do seu célebre e contagiante sorriso. E depois... depois, que raio era aquilo que ele trazia ao pescoço?! Foi ao chegar bem perto do Bragança que Dom Quixote viu que aquilo que ele trazia pendurado ao pescoço era uma corrente que suspendia uma placa sobre o peito na qual se lia: «Uma esmola para um escritor sem editor, por favor!»
Dom Quixote não queria acreditar naquilo que lia. Então o Bragança, o grande Bragança, aquela verdadeira máquina de escrever tinha chegado àquele ponto, um ponto que mais parecia um ponto final na sua vida, na sua carreira? «Bragança, estás bom pá, que é feito de ti?», dirigiu-se-lhe o cavaleiro quase a desprender-se-lhe uma lágrima do canto do olho (do direito, para o leitor mais dado a pormenores). A princípio, o Bragança fez-se desentendido, algo envergonhado da situação em que o Dom Quixote o encontrara, mas logo depois se desfez em lágrimas num abraço ao velho companheiro de muitos livros. Os dois foram então beber um café e durante cerca de uma hora puseram em dia os dias e as desditas respectivas, cada qual mais desconcertado com o que o outro contava. O Bragança confiou a Dom Quixote que desde havia seis anos já não conseguia arranjar editor e que todos lhe diziam a mesma lengalenga: já não estavam interessados em ficção, queriam antes realidade. Dom Quixote, por seu turno, limitou-se a contar aquilo que o outro já sabia por traços largos, vendo as parangonas nos jornais, e disse que andava em busca de emprego, tendo já batido a duas portas mas sem quaisquer resultados palpáveis. Disse-lhe mesmo que tinha acabado de deixar as instalações de uma editora ali perto, a Ideias Fantásticas, e que agora iria tentar numa outra embora ainda não soubesse qual. O Bragança disse conhecer muito bem a Ideias Fantásticas, também ele já tentara vender as suas histórias à doutora, mas sem nada conseguir voltara às ruas e às esmolas. «Sabe, o mais trágico nisto tudo é que desse dia em diante me vi obrigado a aceitar as esmolas que ela me dá sempre que passa por mim na rua...» No fim da conversa, os dois amigos desejaram-se boa sorte mutuamente, não sem antes o Bragança ter recomendado a Dom Quixote, já que ele ali se encontrava, que ele batesse à porta de uma outra jovem editora que ali tinha escritório. E como se chamava? «É a Oriente(-se)», respondeu-lhe o Bragança, «fica logo ali abaixo».
Depois de verificar se o ticket de estacionamento do Rocinante ainda dava para mais algum tempo – dava –, Dom Quixote desceu a rua e foi bater à porta da tal Oriente(-se), de que nunca tinha ouvido falar. De qualquer forma, Dom Quixote, só pelo nome (que, ao contrário da forma escrita, quando falado apenas parecia o imperativo de orientação na terceira pessoa do singular) pensou tratar-se de uma editora vocacionada para as matérias de auto-ajuda e auto-conhecimento. Estava enganado, e disso se apercebeu quando um jovem rapaz Hare Krishna o veio atender. Vestia uma espécie de lençol branco que suspendia até aos pés, com uma alça apenas sobre o seu ombro esquerdo, tinha a cabeça rapada saindo-se somente atrás um esguio carrapito até ao pescoço. Fez uma espécie de vénia a Dom Quixote e convidou-o a entrar para uma salinha cujas paredes se encontravam forradas com pósteres de cores vivas e garridas, mostrando cenas de cariz mitológico, com muitos animais, bem como de indianas e indianos em cenas de irmanação com a Natureza e os animais, tocando e cantando. Num outro póster que se destacava dos demais, pela grandeza e pelo impacto da imagem surgia encimado por letras garrafais, em todo o seu esplendor, Lord Krishna.
Dom Quixote viu logo onde se tinha ido meter. Mas agora já lá estava, não podia simplesmente bater com a porta e ir-se embora sob pena de ser desagradável. E, para mais, não se estava ali mal de todo, já que o ambiente era climatizado por ar condicionado e podia ouvir-se uma música tranquila oriunda como que de lado nenhum, já que por ali não se viam colunas de som. Pelo menos à vista. O jovem Hare tinha-se retirado por momentos indo anunciar ao editor quem ali se encontrava. Quando regressou à sala vinha acompanhado do dito editor, também ele envolvido em mantos alvos e sedosos, de sandálias enfiadas nos pés, cabelo rapado e trancinha atrás da cabeça.
Apresentou-se e vendo o ar deliciado com que Dom Quixote escutava a música que se fazia ouvir, tratou de ir explicando: «Sabe, todas as principais escrituras do mundo enfatizam a importância dos santos nomes de Deus. A filosofia da consciência de Krishna explica que ouvir o som transcendental (voz ou música) é o primeiro elemento da vida espiritual. Nós temos, por conseguinte, particular interesse por uma enorme variedade de kirtans (o canto congregacional dos santos nomes de Deus) e antigas canções devocionais.» Dom Quixote anuiu ao que o Hare-editor lhe dizia, concordando com tudo e confirmando que se tratava de um som muito relaxante.
Uma vez sentados no chão frente a frente (ali não havia cadeiras nem mesas, apenas um computador portátil no chão e uma mesinha pequena de apoio onde ardiam dois paus de incenso emanando um cheiro nauseabundo que começava a afectar as narinas do nosso cavaleiro), Dom Quixote voltou, mais uma vez, a expor os acontecimentos recentes da sua vida, revelando-se ao dispor de quem entendesse (se é que o Hare-editor entendia) para pôr em prática o seu conhecimento e experiência enquanto figura editorial tutorial e histórica no país. O Hare-editor ouviu com a maior das atenções e depois de uma pausa silenciosa disse que, de sua parte, até poderia colocar a hipótese de vir a trabalhar com ele, mas havia alguns constrangimentos que não via que facilmente se ultrapassassem.
Dom Quixote quis saber que constrangimentos eram esses, ou não se tratava, tão-somente, de editar bons livros e boa literatura? Nesse momento, o Hare-editor fez mais uma pausa algo prolongada e depois, de forma algo titubeante, lá foi dizendo: «Sim, livros, mas para nós... para nós a questão da imagem é deveras importante, é mesmo um condição sine qua non para quem quer que venha trabalhar connosco. Não tome isto como uma questão pessoal, mas a verdade é que... bem... a sua... a verdade é que a sua imagem está um pouco... como dizer?... gasta, ultrapassada. Enfim, as barbas, os bigodes, há-de compreender que já estão fora de moda, conferem-lhe um ar algo... algo sujo, ou melhor, algo impuro... Isto já para não falar na sua armadura, essa então completamente demodé. Para resumir, caro Dom Quixote, a vir trabalhar connosco o senhor teria de ser alvo de uma completa renovação do look, teríamos de lhe cortar essas barbas, bigode e cabeleira, teríamos de lhe arranjar um mando conveniente, enfim, fazê-lo renascer. Obviamente que contaríamos para isso com a ajuda de profissionais, com a nossa equipa de consultores de imagem que, num piscar de olhos, lhe haveriam de pô-lo à semelhança e imagem de Krishnamurti. Depois, teria ainda de frequentar um curso intensivo de Teosofia e, uma vez aprovado, estaria pronto a entrar nos quadros da Oriente(-se).
Depois da conversa e como se aproximasse a hora do lanche, o Hare-editor convidou Dom Quixote para o acompanhar a um restaurante vegetariano ali próximo que fazia umas refeições óptimas. Dom Quixote estava meio aparvalhado com as sugestões do Hare para que ele se transformasse num qualquer Buda ou coisa parecida, e esteve vai não vai para recusar o convite, mas como não tinha almoçado e não sabia se iria arranjar trocados para o jantar, resolveu aceitar, mesmo sabendo que o esperavam grandes prelecções sobre as teorias Krishna. Acertou em cheio. Durante o lanche ajantarado, o Hare-editor não se cansou de discorrer sobre as vantagens do vegetarianismo. Disse que uma alimentação livre de karma era fundamental para o progresso espiritual, dissertou acerca dos inúmeros benefícios de uma alimentação livre das impurezas da carne, falou de receitas deliciosas e, pelo caminho, não deixou de adiantar teorias e teorias acerca dos impactos nocivos de uma alimentação carnívora, não só para o ambiente, como para milhões e milhões de pessoas e animais.
Enquanto o Hare-editor falava e debitava as suas convicções vegetarianas, Dom Quixote, apesar de não ter pratos de carne à sua frente, aproveitou para ir pedindo aquilo que lhe parecia mais comestível da ementa. Pediu Grão de Caril com Coco, Hambúrguer de lentilha, Empadão de Bróculos, Seitan com Banana e terminou com uma Escalivada de Churrasco. No fim, ainda se lembrou de pedir qualquer coisita ao Rocinante, que também devia estar esfomeado. Pegou na ementa para cães (que ali também poderiam servir-se acompanhando os donos) e ordenou que lhe embrulhassem uns Biscoitos para cão de legumes e queijo vegano. Depois de ter o embrulho consigo, sorriu para o Hare-editor, levantou-se, agradeceu muito o lanche, prometeu que ia pensar na proposta de se converter às teosofias e pôs-se dali a andar, que já não havia nada a fazer para salvar o dia. Ala dali a arranjar poiso para pernoitar.
Um calor dos diabos e o Alberto Bragança. Dom Quixote bate à porta da Oriente(-se). O jovem Hare e o hare-editor. Uma renovação de look à imagem de Krishnamurti, para além de um curso intensivo de Teosofia. Um Grão de Caril com Coco e outras especialidades.
Desiludido quanto baste com a conversa que mantivera com a editora da Ideias Fantásticas, Dom Quixote continuou a sua errância por uma Lisboa soalheira e quentíssima. Suava por todos os lados e manter-se dentro da armadura quase equivalia a estar a candidatar-se a transformar-se num grelhado. Resistiu, porém, pois um cavaleiro digno desse nome jamais se desfazia da sua armadura. Tirou o elmo, e dirigiu-se ao local onde deixara «estacionado» Rocinante. Por sorte, este estava num sítio onde agora fazia sombra e Dom Quixote aproveitou para se resguardar do sol inclemente. Ia a tentar subir para a garupa quando olhando ao poucos metros de si viu uma cara conhecida.
Mas, mas?... Sim, era ele, era mesmo ele, não estava enganado, conhecia-o muito bem, embora já não o visse ira para um bom par de anos. Era o Alberto, o Alberto Bragança, o grande escritor de contos, o melhor no género, sem dúvida, reconhecido pelos escritores, reconhecido pelos mais diversos Prémios Literários, reconhecido em vida, caso raro, por diversas homenagens que lhe foram prestadas em tempo. O Bragança... Mas agora que se punha a pensar nisso, nunca mais soubera que ele tivesse editado material novo, histórias frescas, no seu estilo sardónico e bem humorado, corrosivo e altamente culto. Que lhe teria acontecido? Porque é que nunca mais editara? E que diabo estava ali a fazer, encostado à parede, com um ar parado e emudecido, como se não fosse um homem de palavras e dos mais distintos, para mais!
Dom Quixote aproximou-se e foi então que o espanto mais se apoderou dos seus olhos. Que era o Bragança era, apesar de mais uma rugazita ou outra, apesar das cãs brancas polvilhando-lhe a farta cabeleira (essa continuava a mesma), apesar das barbas crescidas. Mas o Bragança apesar de ser o mesmo parecia outro! O seu olhar tinha perdido o brilho de antigamente, na comissura dos seus lábios nem um assomo do seu célebre e contagiante sorriso. E depois... depois, que raio era aquilo que ele trazia ao pescoço?! Foi ao chegar bem perto do Bragança que Dom Quixote viu que aquilo que ele trazia pendurado ao pescoço era uma corrente que suspendia uma placa sobre o peito na qual se lia: «Uma esmola para um escritor sem editor, por favor!»
Dom Quixote não queria acreditar naquilo que lia. Então o Bragança, o grande Bragança, aquela verdadeira máquina de escrever tinha chegado àquele ponto, um ponto que mais parecia um ponto final na sua vida, na sua carreira? «Bragança, estás bom pá, que é feito de ti?», dirigiu-se-lhe o cavaleiro quase a desprender-se-lhe uma lágrima do canto do olho (do direito, para o leitor mais dado a pormenores). A princípio, o Bragança fez-se desentendido, algo envergonhado da situação em que o Dom Quixote o encontrara, mas logo depois se desfez em lágrimas num abraço ao velho companheiro de muitos livros. Os dois foram então beber um café e durante cerca de uma hora puseram em dia os dias e as desditas respectivas, cada qual mais desconcertado com o que o outro contava. O Bragança confiou a Dom Quixote que desde havia seis anos já não conseguia arranjar editor e que todos lhe diziam a mesma lengalenga: já não estavam interessados em ficção, queriam antes realidade. Dom Quixote, por seu turno, limitou-se a contar aquilo que o outro já sabia por traços largos, vendo as parangonas nos jornais, e disse que andava em busca de emprego, tendo já batido a duas portas mas sem quaisquer resultados palpáveis. Disse-lhe mesmo que tinha acabado de deixar as instalações de uma editora ali perto, a Ideias Fantásticas, e que agora iria tentar numa outra embora ainda não soubesse qual. O Bragança disse conhecer muito bem a Ideias Fantásticas, também ele já tentara vender as suas histórias à doutora, mas sem nada conseguir voltara às ruas e às esmolas. «Sabe, o mais trágico nisto tudo é que desse dia em diante me vi obrigado a aceitar as esmolas que ela me dá sempre que passa por mim na rua...» No fim da conversa, os dois amigos desejaram-se boa sorte mutuamente, não sem antes o Bragança ter recomendado a Dom Quixote, já que ele ali se encontrava, que ele batesse à porta de uma outra jovem editora que ali tinha escritório. E como se chamava? «É a Oriente(-se)», respondeu-lhe o Bragança, «fica logo ali abaixo».
Depois de verificar se o ticket de estacionamento do Rocinante ainda dava para mais algum tempo – dava –, Dom Quixote desceu a rua e foi bater à porta da tal Oriente(-se), de que nunca tinha ouvido falar. De qualquer forma, Dom Quixote, só pelo nome (que, ao contrário da forma escrita, quando falado apenas parecia o imperativo de orientação na terceira pessoa do singular) pensou tratar-se de uma editora vocacionada para as matérias de auto-ajuda e auto-conhecimento. Estava enganado, e disso se apercebeu quando um jovem rapaz Hare Krishna o veio atender. Vestia uma espécie de lençol branco que suspendia até aos pés, com uma alça apenas sobre o seu ombro esquerdo, tinha a cabeça rapada saindo-se somente atrás um esguio carrapito até ao pescoço. Fez uma espécie de vénia a Dom Quixote e convidou-o a entrar para uma salinha cujas paredes se encontravam forradas com pósteres de cores vivas e garridas, mostrando cenas de cariz mitológico, com muitos animais, bem como de indianas e indianos em cenas de irmanação com a Natureza e os animais, tocando e cantando. Num outro póster que se destacava dos demais, pela grandeza e pelo impacto da imagem surgia encimado por letras garrafais, em todo o seu esplendor, Lord Krishna.
Dom Quixote viu logo onde se tinha ido meter. Mas agora já lá estava, não podia simplesmente bater com a porta e ir-se embora sob pena de ser desagradável. E, para mais, não se estava ali mal de todo, já que o ambiente era climatizado por ar condicionado e podia ouvir-se uma música tranquila oriunda como que de lado nenhum, já que por ali não se viam colunas de som. Pelo menos à vista. O jovem Hare tinha-se retirado por momentos indo anunciar ao editor quem ali se encontrava. Quando regressou à sala vinha acompanhado do dito editor, também ele envolvido em mantos alvos e sedosos, de sandálias enfiadas nos pés, cabelo rapado e trancinha atrás da cabeça.
Apresentou-se e vendo o ar deliciado com que Dom Quixote escutava a música que se fazia ouvir, tratou de ir explicando: «Sabe, todas as principais escrituras do mundo enfatizam a importância dos santos nomes de Deus. A filosofia da consciência de Krishna explica que ouvir o som transcendental (voz ou música) é o primeiro elemento da vida espiritual. Nós temos, por conseguinte, particular interesse por uma enorme variedade de kirtans (o canto congregacional dos santos nomes de Deus) e antigas canções devocionais.» Dom Quixote anuiu ao que o Hare-editor lhe dizia, concordando com tudo e confirmando que se tratava de um som muito relaxante.
Uma vez sentados no chão frente a frente (ali não havia cadeiras nem mesas, apenas um computador portátil no chão e uma mesinha pequena de apoio onde ardiam dois paus de incenso emanando um cheiro nauseabundo que começava a afectar as narinas do nosso cavaleiro), Dom Quixote voltou, mais uma vez, a expor os acontecimentos recentes da sua vida, revelando-se ao dispor de quem entendesse (se é que o Hare-editor entendia) para pôr em prática o seu conhecimento e experiência enquanto figura editorial tutorial e histórica no país. O Hare-editor ouviu com a maior das atenções e depois de uma pausa silenciosa disse que, de sua parte, até poderia colocar a hipótese de vir a trabalhar com ele, mas havia alguns constrangimentos que não via que facilmente se ultrapassassem.
Dom Quixote quis saber que constrangimentos eram esses, ou não se tratava, tão-somente, de editar bons livros e boa literatura? Nesse momento, o Hare-editor fez mais uma pausa algo prolongada e depois, de forma algo titubeante, lá foi dizendo: «Sim, livros, mas para nós... para nós a questão da imagem é deveras importante, é mesmo um condição sine qua non para quem quer que venha trabalhar connosco. Não tome isto como uma questão pessoal, mas a verdade é que... bem... a sua... a verdade é que a sua imagem está um pouco... como dizer?... gasta, ultrapassada. Enfim, as barbas, os bigodes, há-de compreender que já estão fora de moda, conferem-lhe um ar algo... algo sujo, ou melhor, algo impuro... Isto já para não falar na sua armadura, essa então completamente demodé. Para resumir, caro Dom Quixote, a vir trabalhar connosco o senhor teria de ser alvo de uma completa renovação do look, teríamos de lhe cortar essas barbas, bigode e cabeleira, teríamos de lhe arranjar um mando conveniente, enfim, fazê-lo renascer. Obviamente que contaríamos para isso com a ajuda de profissionais, com a nossa equipa de consultores de imagem que, num piscar de olhos, lhe haveriam de pô-lo à semelhança e imagem de Krishnamurti. Depois, teria ainda de frequentar um curso intensivo de Teosofia e, uma vez aprovado, estaria pronto a entrar nos quadros da Oriente(-se).
Depois da conversa e como se aproximasse a hora do lanche, o Hare-editor convidou Dom Quixote para o acompanhar a um restaurante vegetariano ali próximo que fazia umas refeições óptimas. Dom Quixote estava meio aparvalhado com as sugestões do Hare para que ele se transformasse num qualquer Buda ou coisa parecida, e esteve vai não vai para recusar o convite, mas como não tinha almoçado e não sabia se iria arranjar trocados para o jantar, resolveu aceitar, mesmo sabendo que o esperavam grandes prelecções sobre as teorias Krishna. Acertou em cheio. Durante o lanche ajantarado, o Hare-editor não se cansou de discorrer sobre as vantagens do vegetarianismo. Disse que uma alimentação livre de karma era fundamental para o progresso espiritual, dissertou acerca dos inúmeros benefícios de uma alimentação livre das impurezas da carne, falou de receitas deliciosas e, pelo caminho, não deixou de adiantar teorias e teorias acerca dos impactos nocivos de uma alimentação carnívora, não só para o ambiente, como para milhões e milhões de pessoas e animais.
Enquanto o Hare-editor falava e debitava as suas convicções vegetarianas, Dom Quixote, apesar de não ter pratos de carne à sua frente, aproveitou para ir pedindo aquilo que lhe parecia mais comestível da ementa. Pediu Grão de Caril com Coco, Hambúrguer de lentilha, Empadão de Bróculos, Seitan com Banana e terminou com uma Escalivada de Churrasco. No fim, ainda se lembrou de pedir qualquer coisita ao Rocinante, que também devia estar esfomeado. Pegou na ementa para cães (que ali também poderiam servir-se acompanhando os donos) e ordenou que lhe embrulhassem uns Biscoitos para cão de legumes e queijo vegano. Depois de ter o embrulho consigo, sorriu para o Hare-editor, levantou-se, agradeceu muito o lanche, prometeu que ia pensar na proposta de se converter às teosofias e pôs-se dali a andar, que já não havia nada a fazer para salvar o dia. Ala dali a arranjar poiso para pernoitar.
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