quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

A Demanda do Bravo Cavaleiro Dom Quixote - Capítulo XX

XX.

Bem cedo, no Rossio, o cavaleiro da Triste Figura. Informações secretas e de fonte segura dando conta de algumas propostas em Assembleia Camarária. A Star Books. Cuca, Cuxicuca, Xanduca e Cochicho. Prontos outra vez e Dom Quixote de «cuca cheia».



Voltando a Dom Quixote, depois das fracassadas e inglórias investidas em busca de emprego nas editoras Ideias Fantásticas e na Oriente(-se), o cavaleiro, tendo pernoitado, uma vez mais, ao relento num dos jardins de Lisboa, acordou com a luz da manhã impedindo-o de retemperar sono e forças. Estava cansado, a fome a roer-lhe o estômago, e como se não bastasse esse desconforto começava a sentir a falta de um bom banho. Aproveitando o calor que logo bem cedo se fazia sentir, e estando ainda a maior parte das pessoas a dormir, Dom Quixote desceu do Campo Mártires da Pátria até ao Rossio, em cuja fonte aproveitou para se lavar. Encontrava-se nesses preparos quando, dando por ele, à sua volta se tinha juntado um grupo de sem abrigo, vagabundos, um ou outro louco, e um pequeno grupo de estudantes universitários de traje académico, capas ao ombro, todos muito bem bebidos, acabados de chegar de uma noitada, cantando e bebendo ainda. Dirigiam-se para a paragem de táxis ali próxima, mas ao ver o ilustre cavaleiro, em figura cada vez mais triste, não quiseram deixar de o ir cumprimentar, entoando-lhe uma qualquer canção patética bem ao jeito das tunas.
Dom Quixote, ao ver aquela gente toda mais aquele bando de jovens aos berros num absoluto desnorte de afinação de vozes, não fez mais nada, vestiu de novo a camisa que tirara por momentos, colocou o peito da armadura, e como quem não quer a coisa, pegou de repente na sua lança e escudo e tratou de afugentar aquela plateia indesejada, lançando-se sobre ela aos urros e gritos. Aflitos e tementes, julgando que o cavaleiro houvera endoidecido de vez, pedintes, maltrapilhos, doidos e os doidivanas da tuna puseram-se a milhas. Satisfeito, logo, logo Dom Quixote foi ter com o seu cavalo que também ele saciava a sede nas águas da fonte bem ali no meio da praça do Rossio, em frente ao Teatro Nacional Dona Maria II. Entretanto o sol pusera a galgar o horizonte e já a vida corria por ali a descer ao coração da cidade. Chegavam as floristas, os quiosques abriam portas, desatando os maços de jornais e revistas atados com guita e preparando a sua exposição nas bancas, os empregados dos cafés circundantes compunham mesas e cadeiras nas esplanadas, os turistas iam chegando aos poucos, fotografia atrás de fotografia, um cigano ou outro tentavam aproximações diplomáticas escondendo nas mãos anéis ou relógios a preços módicos, quando não oferecendo outras propostas alucinogénicas. Fazia-se tarde, o nosso bravo cavaleiro alçava-se à garupa do seu fiel companheiro e partia a tentar a sorte numa outra editora de que o amigo Bragança lhe tinha falado. Aos poucos e poucos figura conhecida na cidade, a sua imagem, recortando-se a galope ou a trote pelas ruas infestadas de carros, ia-se tornando numa espécie de imagem de marca para a edilidade.
(Fazemos aqui um parênteses para, a este respeito, darmos conta ao leitor de informações secretas e de fonte segura que nos chegaram por essa altura, dando conta de que, nesse mesmo dia, em Assembleia Camarária, a vereadora da Cultura, de sua livre vontade e iniciativa, terá colocado a votação uma proposta tendente a alterar a imagem de marca da cidade, os corvos, que achava, assim se expressou, «demasiado negra e algo gasta». A capital, no seu entender, «movia-se rumo ao futuro» e se Espanha era, cada vez mais, o país do futuro, porque não associar-se a capital alfacinha à imagem de marca do país de nuestros hermanos? Era meio caminho andado e a sua ideia, inclusive, era muito simples: aproveitando a onda de solidariedade e entusiasmo em torno de Dom Quixote – o leitor não viu, nem podia, nem leu, mas pode agora ler, só para que tenha ideia do carinho que povo lisboeta já nutria por ele, quando o cavaleiro da triste figura se afastou da Praça do Rossio teve de se apear novamente da garupa para receber beijinhos das floristas, que o trataram por «Menino Quixote», afiançando-lhe a sua fé em que o futuro lhe haveria de sorrir, despedindo-se ainda com a oferta de um belo e apetitoso ramo de flores a Rocinante –, e já que ele passara a fazer parte integrante do postal turístico lisboeta, porque não aproveitar a sua imagem alcandorando-a a novo ícone da cidade? Que, no entanto, não se preocupassem os mais cépticos, pois que os corvos se manteriam, firmes e bem hirtos, como parte integrante do novo símbolo autárquico, mas, sugeria a vereadora, ficariam muito melhor, por exemplo, ao ombro do cavaleiro. Assim, justamente, como os velhos marinheiros e piratas de papagaio ao ombro, também Dom Quixote adoptaria o corvo. No mais, ainda acrescentou, seria uma ideia excelente no sentido de promover a defesa de uma espécie já quase em vias de extinção.
A ideia provocou celeuma acirrada entre os diversos representantes partidários ali presentes. O representante do Partido dos Verdes achou a ideia muito interessante, mas lá foi dizendo que se calhar também não seria mau de todo que no outro ombro do cavaleiro se apusesse uma pomba, sim, uma pomba, porque havia anos que as pombas eram muito mal tratadas pela edilidade, escorraçadas e perseguidas dos parques, das estátuas e dos beirais, as pombas, coitadinhas, que já nem sequer podiam multiplicar-se em paz de acordo com a vontade reprodutória que o seu íntimo lhes pedia, as pombas, vítimas indefesas de vis atitudes como aquela de lhes darem a ingerir contraceptivos, medida «carniceira» que só poderia ter como consequência a desaparição da espécie. E mais: havia quanto tempo a cultura nacional não dedicava às pombas interesse de qualquer espécie? Não sabiam? Sabia ele muito bem: desde que o cançonetista Max cantara os belos versos «Pomba branca pomba branca/ Já perdi o teu voar/ Naquela terra distante/ Toda coberta pelo mar...» No fundo, concluía, as pombas eram como os corvos, preparavam-se para ser erradicadas da paisagem citadina e da cultura nacional. Um crime, um crime que envergonharia a nação aos olhos do estrangeiro.
O membro do Partido Comunista mostrou-se pouco receptivo à ideia, pois, segundo disse, temia que por trás da proposta da senhora vereadora se escondessem outras motivações, que não as meramente turístico-promocionais da cidade, motivações, se se fazia entender, ligadas ao «grande capital», ávido de explorar uma imagem que a ser de alguém seria de todos e cuja exploração, por conseguinte, não deveria ficar nas mãos dos «grandes capitalistas». «Dom Quixote não pode ser mais uma lança nesta África capitalista entregue ao patronato, aos barões e aos ricos e poderosos em que por vezes, muitas vezes, vezes demasiadas, parecemos viver. Dom Quixote é do povo, pertence ao povo e ao povo há-de pertencer!» Assim terminou, já algo exaltado e de dedo em riste.
Quanto ao representante do Partido Popular, mostrou-se veementemente em oposição à ideia, que lhe parecia «absolutamente ridícula e estapafúrdia». Disse que tudo aquilo mais lhe parecia «coisa de romance ou mesmo digna de uma qualquer das muitas aventuras de Dom Quixote». E ajuntou, em tom de escárnio, que a senhora vereadora andaria a ler muitas histórias ou a ver muitos filmes, que «não deveria excluir uma visitinha a um hospital psiquiátrico» ou então deveria, talvez, «apostar numa carreira literária», pois que tinha muita imaginação, em excesso mesmo, e que, por conseguinte, deveria colocar esse capital (e quando referiu esta palavra o representante do Partido Comunista pôs-se logo alerta) ao serviço do fantástico, quem sabe não se tornaria numa «JK Rowlings» ou mesmo, «olhe, numa Etelvina Prazeres, numa best seller!» E terminou, aduzindo que, em matéria de pombos, havia muito que a espécie deveria ter sido erradicada da cidade, pois significavam um verdadeiro cancro para a estatuária. E que tinha dito, e que, olhassem, fossem todos mas era dar milho aos pombos que ele tinha mais o que fazer, retirando-se em seguida, em sinal de protesto e batendo com a porta.)
O parênteses está fechado, não sabemos se a proposta foi aprovada ou não, pois a saída extemporânea do representante do Partido Popular deixou a assembleia camarária sem número suficiente de votantes para que houvesse quorum deliberativo, a única coisa que podemos avançar até ao momento é que até à data, passeando pela cidade, não temos notado que, aqui e ali, os corvos tenham subido para o ombro da efígie de Dom Quixote. Soturnos e curvados sobre si, negros como a noite de todos os pesadelos, os corvos continuam, orgulhosamente sós, a ilustrar a capital. Voltemos, pois, ao nosso venturoso cavaleiro que deixa agora o Rossio, limpando as faces beijadas pelas floristas à manga da camisa, e já a caminho da editora sugerida pelo Bragança, a Star Books.
Ao ler o nome da Editora na placa à entrada do prédio onde a mesma se encontrava sediada, Dom Quixote já não sabia bem o que pensar. Começou por achar estranho tratar-se de um nome em inglês mas depois já não achou mais nada, pensou apenas que se tratasse de uma estratégia de internacionalização, talvez o director editorial fosse de origem britânica, talvez fosse um súbdito de Sua Magestade, ou talvez a editora apostasse também na distribuição internacional, além-Badajoz. Sim, se calhar era apenas isso. Dom Quixote tratou pois de «estacionar» Rocinante ali perto, à sombra no passeio, tanto mais que já não tinha moedas que fossem para entregar aos melgas da EMEL. Em seguida dirigiu-se de novo à entrada do prédio, tocando à campainha da Star Books.
Desta feita, o prédio não pertencia por inteiro à editora, esta apenas ocupava o penthouse, uma área de 180 metros quadrados com uma vista deslumbrante sobre a cidade. Com janelas e varandas a toda a volta, a luz derramava-se com esplendor pelo espaço repartido apenas por divisórias atrás das quais se sentavam, em frente aos computadores, os seus diversos funcionários. Consultores, copys, redactores, relações públicas, secretárias, designers, etc., todos muito jovens, muito in e muito práticos no vestir, despachados nos modos e no falar. A vida sorria-lhes e eles sorriam à vida. Trabalhar assim todos os dias, ao contrário do que escrevera em tempos um poeta, certamente que não cansaria. Foi isso que pensou Dom Quixote ao entrar no amplo escritório (que afinal como que eram vários escritórios num só) e antevendo-se já também ele ali, dia após dia, semana após semana, mês após mês, ano após ano, concedendo imagem e credibilidade a excelentes romances, belíssimos e interessantíssimos ensaios, a notáveis edições de luxo celebrando idades provectas de autores em fim de carreira, a soberbas e bonitas edições de poesia, a celebrar com os seus sorridentes colegas de trabalho a edição de verdadeiras pérolas no domínio da literatura infantil.
É claro que o nosso bravo cavaleiro sonhava, ou não fosse o sonho, transfigurado a delírio, a sua imagem de marca. Apresentado à directora editorial (afinal era uma directora não um director), Dom Quixote dirigiu-se com ela para um «compartimento», uma espécie de área mais reservada num dos cantos do escritório, onde normalmente ela recebia visitas, convidados, candidatos a escritores, e outros agentes do meio. Era um espaço muito bem decorado, com linhas modernas, alternando entre os tons brancos e pretos, dois belos e confortáveis maples em pele apostos em ângulo recto, com almofadões de um vermelho sangue de boi, um tapete branco felpudo e, em cima deste, uma mesa de pedra com tampo de vidro, baixinha e rasa, em triângulo isósceles. Sobre ela, repousavam dois pires com bolachinhas, biscoitos, rebuçados e bombons.
Ao ali entrar, naturalmente todas as atenções do pessoal ali presente caíram sobre a sua figura. Alto, magro, barbas alvas, afiladas, estrepitoso no andar e nos gestos, não havia como não reparar nele. Sorrindo à direita e à esquerda, Dom Quixote avançou, já conduzido pela directora editorial, até que ambos se sentaram nos ditos maples. Ainda sem nada no estômago, este rugindo de forma assustadora, Dom Quixote ao ver os dois pires com «acepipes» vários à sua frente não se fez rogado. Pediu o obséquio de um cafezinho e atacou as «iguarias». E naturalmente, a conversa entrou nos eixos pretendidos pelo cavaleiro. Não nos alongaremos aqui nos intróitos invocados pelo cavaleiro, explicando a sua situação, já por demais do conhecimento público e do leitor, pelo que passemos antes à resposta de Cuxicuca Nogueira. Dom Quixote a princípio não entendeu bem o nome pelo qual ela se apresentara, pelo que pediu perdão, que não tinha ouvido bem e se poderia a senhora repetir, que provavelmente seria dele o problema, que talvez com a idade avançada já não estivesse a ouvir muito bem. Mas, dissera? «Cuxi quê?» «Cuca, Cuxicuca, é como todos me conhecem e me tratam, bem alguns preferem só dizer Cuxi, outros escolhem o Cuca... É conforme, por mim tanto me faz. Vem de Alexandra, mas como eu não gosto nada do nome, achei por bem adoptar o nome que me chamavam quando era miúda. Primeiro era Xuxa que me chamavam, depois foi Xanduca, e mais tarde, como eu me tornei, com os anos, muito dada aos segredinhos e aos cochichos, foi um amigo brasileiro que me passou a chamar Cuxicuca, não sei se está a ver uma mistura entre Xanduca e Cochicho, ou o contrário, primeiro Cochicho e depois Xanduca...
Dom Quixote fingiu-se extremamente espantado com a origem do seu nome, pelo menos o nome pelo qual todos a conheciam. Cuxicuca passou então, a pedido do cavaleiro, que se demorava saboreando um bolinho de coco e um biscoito de manteiga, a explicar a origem de um outro nome, o da editora. Cuxicuca explicou então que tudo tinha partido da sua experiência enquanto relações públicas de um canal televisivo privado. Tinham sido anos de grata e inesquecível experiência, de muita aprendizagem, de gente óptima que tinha conhecido, com quem aliás continuava a dar-se e mesmo a sair, só que às tantas teve uma ideia luminosa. Quando Cuxicuca disse aquelas palavras, ideia luminosa, fez-se luz a Dom Quixote apercebendo-se do tipo de editor que, mais uma vez, lhe tinha calhado na rifa... só faltava que a seguir lhe dissesse que ainda havia pensado em chamar à sua editora a Ideias Luminosas...
«E foi então que tive uma ideia luminosa. Pensei mesmo em chamar à editora Ideias Luminosas, numa espécie de homenagem àquele momento mágico, mas depois, como já existia no mercado a Ideias Fantásticas, achei melhor escolher outro nome. Pois bem, como o meu objectivo ia no sentido de aproveitar as histórias de vida de pessoas conhecidas da televisão e do grande público, portanto de estrelas, lembrei-me, assim de repente, de Star Books. Por um lado, escapávamos ao conceito algo esgotado da estrela (sobretudo desde o concurso Chuva de Estrelas), que, ainda assim, mantínhamos aceso com a palavra em inglês e, por outro lado, abríamos portas ao mercado estrangeiro.»
No mais da conversa, que se espraiou por uma boa hora, a desenvolta directora editorial deu conta a Dom Quixote da sua visão de mercado, das suas opções editoriais, do seu conceito de livro adaptado às leis do mercado global segundo as quais todos os empresários, quer quisessem ou não, deveriam reger-se sob pena de perderem o barco. E nisso os editores de livros não deveriam nem podiam, sobrevivência oblige, escapar à regra. «Se o mercado nos diz que o que mais vende são os livros de auto-ajuda, de relatos de experiências de vida na primeira pessoa, se na verdade as pessoas estão fartas de literatura hermética e presunçosa, de livros que ninguém consegue ler passadas duas ou três páginas, encalhando em parágrafos que não se sabe onde começam nem acabam, em frases ultra-compridas sem pontuação alguma, num chorrilho de palavreado intelectual, então só há uma via a prosseguir, ir ao encontro dos anseios e desejos do público. O público é quem manda. O cavaleiro (assim mesmo, não era cavalheiro que ele queria dizer) saberá mais do que ninguém que vivemos numa sociedade de superabundância a todos os níveis e editorial também. Você acorda um dia e vai à livraria ao pé da sua casa, chega lá e prontos (cá está o prontos outra vez!)», depara-se com um conjunto de novidades. Pois bem, vai para casa e acorda no dia seguinte. Nesse dia, vai outra vez à mesma livraria e aí chegado o que vê? Vê mais um montão de livros novos nos expositores, títulos e mais títulos à espera de uma pequenina oportunidade para se revelarem aos olhos do público, títulos que, com muita sorte, ficarão ali, em exposição, até ao dia seguinte, mas que, certamente, uma semana depois já estão confinados às estantes e um mês depois desaparecem nos armazéns, voltando apenas a ver a luz do dia quando começa a época das feiras de livros, no Verão. Repare, não digo que a culpa seja só dos livreiros e dos editores. Não, a culpa é também do leitor, dos leitores, de uma sociedade de consumo ávida a cada dia de novas ofertas e sempre mais novidades. Veja, os olhos dos leitores não param, uma pessoa sai à rua e os estímulos à sua sede de consumo não cessam, surgem de todos os lados, em todas as montras, em panfletos, na televisão, nas rádios, nos outdoors, nas traseiras dos autocarros, nas paredes da cidade. É uma concorrência desenfreada, uma autêntica selva de estímulos, mas uma selva na qual vivemos e na qual lutamos por um nicho, um nicho de mercado. E como é difícil esse combate! Olhe, você com certeza que o saberá imaginar, tantas foram as batalhas que travou ao longo da sua vida. Pois olhe, são demasiados apelos e só nós sabemos o quanto é difícil captar a atenção, por um segundo só que seja, de um potencial comprador. E digo-lhe mais, muito mais difícil é conseguir ultrapassar esse momento e, uma vez conseguido, conseguir fazer com que o interessado passe de apenas isso mesmo, interessado, a comprador, isto é, passar do mero olhar para uma capa, do seu eventual folhear ao momento decisivo em que pega no livro, se dirige com ele para uma caixa registadora, abre a carteira, retira o cartão Multibanco ou de crédito e efectua a sua compra. Só aí, só então podemos dizer que saímos vitoriosos do combate.»
Dom Quixote lá ia ouvindo o que a directora editorial lhe contava. E se compreendia muitas das suas motivações, não deixava de achar estranho a conotação de combate que ela imprimia às suas ideias e às suas palavras. Pensando bem, o facto seria até perfeitamente justificável estando ela em presença de um bravo cavaleiro cujas conquistas e aventuras eram, ainda hoje, motivo de grande inspiração para muita gente. Cuxicuca, vistas as coisas, nem daria por ela ao fazê-lo, ao bramir com tamanha verve e fulgor os seus pontos de vista sobre o seu negócio, sobre o mercado, sobre a aventura do editar livros em pleno século XXI. Pouco faltou para que àquelas palavras se começasse a ouvir, em plano de fundo, uma qualquer melodia em tom Wagneriano, épico, inaugural, cruzando imagens em que hordas de editores, investidos a soldados das letras, avançassem por campos e campos de páginas brancas, bramindo ao alto, como lanças ou espadas, títulos e mais títulos de livros caindo sobre fileiras e mais fileiras de leitores...
Dando, por conseguinte, o benefício da dúvida a Cuxicuca, rindo-se para si da imagem que criara no seu pensamento, Dom Quixote limitou-se a continuar a comericar, pondo em dia as fomes dos seus fundos, já pouco ligando às balelas com que a frenética directora editorial tentava vender-lhe o seu peixe, quer dizer, os seus livros. Falava de targets, de know how, de marketing para aqui e marketing para acolá, referia a importância das marcas, a quão crucial era também o merchandising, a comunicação, o jingle, o ter em conta uma tal de direct response, a importância de actuar nos meios above e bellow the line, o fundamental que era perceber o feedback do mercado, falou ainda nos conceitos de marketing mix e na substituição do mero e ultrapassado conceito de Promoção pelo conceito de Comunicação, dizendo, e passando a citar, que «Comunicação implica bidireccionalidade, promoção e recepção do feedback. Senhor Dom Quixote, tudo se resume a um conceito muito simples: o que não se comunica não existe.»
Para resumo de capítulo, que já se alonga por demasiado nestes considerandos acerca do mercado editorial e da feroz concorrência que é apanágio do mercado na sociedade global, refira-se apenas um dado curioso ao nível do funcionamento da casa, em matéria de pesquisa de autores. Primeiro, se não se tratasse de cara conhecida do grande público, seja por via das televisões ou das revistas da society, nem sequer valia a pena apostar em perder tempo com um hipotético livro. Depois, confessara Cuxicuca a Dom Quixote que a Star Books era uma empresa pioneira no sentido em que criara um novo posto ao nível do sector editorial: o Star Editor. O Star Editor tinha uma função muito cristalina e funcionava de modo também ele muito às claras. Ou seja, a função dele era palmilhar as redacções televisivas (ou de revistas do coração) tentando convencer jornalistas, locutores, concorrentes em programas diversos, ou até mesmo apresentadores da Meteorologia, a escreverem as histórias das suas vidas. E nisso tinham tido ultimamente basto sucesso.
Cuxicuca contara ainda a estória em torno do primeiro livro editado pela Star Books. Era o percurso de vida de um Director de Programas, relatando, em voz própria, como deixara para trás uma infância de pobreza e vicissitudes até chegar onde chegara, conhecendo as pessoas certas, movendo os cordelinhos na altura exacta, e por aí adiante sem, naturalmente, deixar de pincelar os conseguimentos profissionais com passagens, por vezes picantes, das suas aventuras íntimas (sobretudo com muitas caras conhecidas, também elas stars) nos muitos vales de lençóis por onde, assumia orgulhoso, tinha passado o seu corpinho de atleta conseguido à custa de muito ginásio, muitas massagens e limpezas de pele, também de muita leitura de revistas masculinas que tanto o tinham ensinado. «Eu Director Me Confesso» tinha sido um sucesso imediato, esgotando nas livrarias e enchendo inclusive os carrinhos de compras dos grandes hipermercados, entalado entre batatas, couves, nabos, fraldas de bebé e para incontinentes, e demais mercadoria.
Ouvidas as histórias, bucho atestado, ouvidos a zunir de tanta estória e historieta, Dom Quixote estava, por assim dizer, de «cuca cheia», tratando de se despedir da directora da Star Books, desejando-lhe sucesso e votos de longa vida, que ele iria procurar sustento noutras paragens. E prontos... (ai que isto se pega!!!), e pronto, metade de mais um dia está cumprida, foi um Dom Quixote de barriga reconfortada, mas de espírito desalentado e faces tristonhas que se dirigiu ao seu Rocinante, fiel companheiro que não via a hora de galopar dali para fora tantas eram as moscas que voejavam em torno da sua cara. Dom Quixote, garantimo-lo, era a primeira vez que o víamos assim, sem ânimo, todo ele mágoa e ressentimento para com um mundo editorial ao qual havia dado tanto e durante tantos anos de trabalho. Olhasse bem para si e Dom Quixote chegaria à clarividente conclusão de que o que lhe acontecia não era senão o que acontecia a milhares e milhares de pessoas como ele, homens e mulheres que depois de vidas inteiras dedicadas a um trabalho, a uma empresa, acabavam despedidas e nas ruas da amargura e nos becos do desemprego sem que ninguém voltasse mais a olhá-las enquanto força de trabalho, enquanto pessoas válidas, enquanto poços de experiência e sabedoria. Estaria Dom Quixote para desistir da sua dama, a literatura em Portugal? Não, ainda não, no final da conversa com Cuxicuca tinha-lhe ela acabado por dizer que ali não havia lugar para mais ninguém – a equipa estava constituída –, mas que tinha uma amiga que tinha também acabado de abrir uma editora e estava a recrutar pessoal. E porque não tentar?

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