O Burro que Queria Namorar
Era uma vez um burro que não era nada burro. Isto é, ele tinha tudo aquilo que caracteriza um burro, o pêlo cinzento, macio e sedoso, as orelhas longas e pontiagudas sempre a dar a dar, e um ar, bem, um ar assim, como dizer... de burro! Porém, ao contrário dos burros normais, isto é, os burros «burros», este era muito, mas mesmo muito inteligente.
Era, na verdade, um burro com muitas qualidades. Entre as suas habilidades, este burro sabia fazer o pino durante 7 segundos – o que é muito bom, já que o recorde do mundo de pinos de burro é de 9 segundos e pertence a um burro chinês de uma família de equilibristas circenses –, sabia dizer adeus com as orelhas e, garantia o seu dono, era mesmo capaz de somar dois mais dois, uma conta verdadeiramente difícil! Para um burro, claro.
Era, por tudo isso, um burro muito especial, pelo que tinha sempre muitas visitas de meninos e meninas que se deslocavam à quinta onde ele vivia para admirarem as suas proezas atléticas e matemáticas. O burro, podemos afirmá-lo, era um burro feliz, pelo menos assim parecia, deixando que as crianças lhe fizessem as festinhas que quisessem e até que montassem nele para um breve passeio pelos campos em volta que ele conhecia na palma da mão, isto é, na palma da pata!
Os seus donos também eram pessoas muito felizes, pois o seu burro inteligente dava-lhes grande ajuda e alegria. O senhor Agostinho, coitadinho, já muito velhinho, e a Dona Agostinha, coitadinha, também já muito velhinha, já não tinham idade nem forças para arar os campos. A vida inteira tinham amanhado as terras sozinhos e mesmo depois, quando compraram um burro pela primeira vez para os ajudar nessa tarefa, a sorte saiu-lhes furada. É que o burro que compraram, esse era mesmo burro! Tanto que lhe puseram o nome de Zuzuto. Para começar, como todos os burros, era teimoso, muito teimoso, e ainda por cima era mandrião, não gostava nada vezes nada de trabalhar, só queria mesmo era ficar à sombra de uma árvore deitado, com um chapéu na cabeça, entretido a mastigar palha com uns grandes dentões amarelados. Depois, quando bem lhe apetecia, deitava a correr pelos campos por cima das colheitas e atrás das tontas das galinhas e só fazia burrada! Está mesmo a ver-se o que lhe aconteceu, na primeira oportunidade o senhor Agostinho, coitadinho, e a senhora Agostinha, coitadinha, foram a uma feira na cidade mais próxima e trataram de o vender.
Foi quando estavam para se vir embora, tristes por terem ficado sem burro, e já a pensar na carga de trabalhos que iam ter pela frente com as sementeiras desse ano, que, ao passarem por um vendedor de burros anão, um belo burrico lhes chamou a atenção. Quando dizemos que o burro lhes chamou a atenção, foi isso mesmo que aconteceu. Está-se mesmo a ver porquê, era o nosso amigo burro inteligente que, ao perceber o estado de desânimo dos dois velhotes, decidiu chamar a sua atenção com um zurro que mais parecia um chamamento. Dir-se-ia que o próprio zurro era um zurro muito inteligente. Não foi preciso mais, o senhor Agostinho, coitadinho, e a senhora Agostinha, coitadinha, apaixonaram-se logo pelo olhar do burro e, com o dinheiro da venda do Zuzuto, compraram aquele burro.
O burro, agradecido, tratou logo de os levar aos dois na garupa de volta para a quinta. Era um burro muito forte e por isso aguentava com duas pessoas em cima, e nem sequer foi por isso que demorou mais tempo na viagem do que se carregasse apenas um dos donos em cima. Houve até um agricultor que ao vê-los passar na estrada pensou que se tratava do primeiro burro Ferrari da história! Foi uma emoção para os dois velhinhos, que desta vez estavam convencidos que tinham acertado na mosca!, perdão, no burro!
E acertaram mesmo. Aquele era um burro como de outro assim nunca se ouvira falar em todo o mundo. Bem, pelo menos ali na região, isto porque, já se sabe, o mundo é muito grande e há-de haver em todo o globo terrestre muitos burros de tal calibre e com capacidades semelhantes. Outro dia, o Senhor Agostinho, coitadinho, contou à Dona Agostinha, coitadinha, que alguém lá no café da aldeia lhe tinha dito que tinha lido num jornal que havia no Japão um burro capaz de andar de patins em linha, e um outro na Tasmânia – vá lá saber-se onde é que esse país fica... – que tinha a mania que era pessoa e por isso andava sempre em pé. “Acho que foi daí que veio a expressão «burro em pé»!” – disse a Dona Agostinha, coitadinha, e o senhor Agostinho, coitadinho, concordou.
O que interessa é que este burro, para os dois, era o melhor e mais inteligente burro do mundo. É que para além de todas as habilidades de que era dotado, para além do bom comportamento e da boa vontade que sempre demonstrava, o Inteligente, como lhe chamaram, nunca dizia que não à lavra dos campos. Corria-os de lés-a-lés e de Sol a Sol e só no fim do trabalho é que ia comer a sua refeição. Que era sempre um belo repasto, diga-se. O Senhor Agostinho, coitadinho, e a Dona Agostinha, coitadinha, estavam-lhe muito agradecidos e por isso presenteavam-no com os melhores petiscos que arranjavam, tudo, claro, a acompanhar pelo melhor feno, pela melhor palha e pela água mais limpa e fresquinha que iam buscar ao ribeiro.
E assim tudo corria na quinta com grande alegria e felicidade. Mas essa alegria não durou para sempre. Certa manhã, o senhor Agostinho, coitadinho, e a senhora Agostinha, coitadinha, reparam que o Inteligente estava com um olhar muito triste e que não se queria levantar. A princípio, não perceberam porquê. Será que o Inteligente estava zangado com eles, que diabo de bicho lhe teria mordido? Se calhar uma mosca, ou então uma abelha, pior, uma cobra! Será que tinha sido mordido por uma cobra? Se calhar sim, pois com aquela embirração com que estava havia de ter sido uma grande mordedura!
O Senhor Agostinho, coitadinho, pôs-se a falar com o Inteligente e como este nada lhe dissesse julgou que a sua própria inteligência não estava à altura de poder falar com um burro, um burro inteligente, claro, porque com outros burros o Senhor Agostinho, coitadinho, sempre falara. Deu voltas e mais voltas à volta do animal, mas nada, ele nem saía do lugar. Os olhos estavam vazios e ausentes, e no canto de um deles via-se mesmo escorrer uma grande gota de água... Água?... Água, não, era uma lágrima, o Inteligente estava a chorar!
Foi então que a experiente e sabedora Dona Agostinha, coitadinha, percebeu logo o que se estava a passar. O Inteligente sentia-se triste porque estava sozinho havia já muitos meses. Como todas as pessoas e como todos os animais, também o Inteligente sentia a falta de companhia. Por outras palavras, ela queria uma namorada! Foi o que a Dona Agostinha, coitadinha, disse ao Senhor Agostinho, coitadinho, e, para seu grande espanto, foi o Senhor Agostinho, coitadinho, que ficou mais vermelho do que um pimento, corando como se fosse uma criança. Os dois velhotes deixaram então o burro a verter águas e mágoas e foram para casa beber um chá, pensando em como resolver a situação.
Não havia solução senão uma, encontrar uma namorada para o Inteligente. E tinha de ser com urgência, pois que os campos não podiam deixar de se lavrar. Mas não ia ser tarefa fácil, tinham de arranjar não uma qualquer burra, como por aí há muitas, mas uma burra que fosse minimamente inteligente. Uma burra que ao menos tivesse um zurrar apresentável e que, se possível, fosse bonita. Decidiram voltar à feira na cidade. Na manhã seguinte, ainda o Sol não tinha acordado, os dois velhotes saíram da quinta em bicos dos pés para não acordarem nenhum animal, isto porque queriam fazer uma surpresa ao seu burro Inteligente. Apesar de todos os cuidados, ao fecharem a cancela de madeira ouviu-se um estalido e ao fundo o Galo Gargalo, como se chamava porque tinha um pescoço que nunca mais acabava, ainda abriu um olho, mas felizmente não se lembrou de cantar a anunciar o dia.
O senhor Agostinho, coitadinho, e a senhora Agostinha, coitadinha, eram muito boas pessoas e gostavam muito do seu burro, estavam-lhe muito gratos por todas as ajudas que ele lhes dera nos últimos tempos e, por isso, não olharam aos preços quando escolheram a companheira para o Inteligente. Compraram a burra mais bonita e mais cara que encontraram e logo ali lhe puseram o nome de Bela. A burra Bela ficou toda contente com os seus novos donos pois também percebeu de imediato que iam ser muito seus amigos. A Dona Agostinha, coitadinha, até lhe pôs logo à volta do pescoço uma coroa de flores, toda colorida e bem cheirosa, para que quando chegasse ao pé do Inteligente este ficasse logo interessado. A burra Bela caminhava rumo à quinta toda contente e satisfeita, vaidosa como nunca, tanto que a cada loja por que passavam ela não deixava de tentar ver o seu reflexo nos vidros das montras. Sonhava mesmo em um dia vir a tornar-se modelo! Bem, lá que era magrinha e jeitosinha, lá isso era... Agora, daí a tornar-se modelo...
Chegaram os três à quinta ainda era manhã cedo. O Galo Gargalo já tinha cantado, as galinhas e os patos já cirandavam a debicar o milho pelo chão, as aranhas já preparavam as suas teias, e as abelhas já tinham começado a procurar pólen nas flores mais bonitas da quinta, pois tinha-lhes chegado uma mensagem da Abelha-Rainha a dizer que tinham tido uma encomenda muito importante e urgente de 20 litros de mel, por isso, queria toda a gente a trabalhar, até mesmo as abelhas mais rezingonas e abelhudas. O senhor Agostinho, coitadinho, e a senhora Agostinha, coitadinha, disseram à burra Bela que não zurrasse até chegarem ao estábulo onde se encontrava o Inteligente ainda a dormir. Foi o que ela fez. Aí chegados, prostrados mesmo à frente das barbas do Inteligente – que, por andar tão triste, nos últimos dias nem sequer tinha encontrado ânimo para fazer a barba –, foi só esperar que ele desse pela sua presença, o que aconteceu logo a seguir.
Quando o Inteligente acordou e olhou para a Bela nem quis acreditar. Parecia que lhe saltava o coração, os olhos arregalaram-se e de um pulo pôs-se em pé, levantando o peito a dar mostras da sua valentia e galhardia. A burra Bela gostou do que viu, percebeu logo, pelo brilho do seu olhar, que se tratava de um burro muito inteligente, para além de ser um belo burro... O senhor Agostinho, coitadinho, e a senhora Agostinha, coitadinha, logo também deram conta de que já estavam ali a mais, pelo que se retiraram para sua casa, fechando a porta do estábulo, deixando assim os dois burros à-vontade para que travassem conhecimento, melhor dizendo, para que acelerassem...
Foi o que aconteceu, em coisa de semanas o Inteligente e a Bela já eram como marido e mulher, para onde um ia, logo o outro se predispunha a ir. Ajudavam-se nas tarefas do campo e partilhavam mesmo, com grande intimidade, o mesmo bebedouro e a mesma manjedoura. O Inteligente, esperto que nem uma raposa, deixava sempre para sua Bela o melhor bocado de feno, no que era um sinal de grande cavalheirismo e amor!... A alegria, como se adivinha, logo, logo voltou à quinta, que agora, em vez de um só burro, tinha dois burros para entreter a criançada. Dois? Só dois?... Bem, isso foi no início, porque passados poucos meses o senhor Agostinho, coitadinho, e a senhora Agostinha, coitadinha, certo dia pela manhã, deitaram a correr para o estábulo onde se surpreenderam com o nascimento de um par de belos burrinhos. A sua alegria foi enorme, tal como a do Inteligente e da Bela que zurravam a bom zurrar, dando assim rédea livre ao seu contentamento. Se juntarmos esses zurros aos zurros dos pequenos burrinhos, vocês são bem capazes de imaginar o berreiro, ou deveríamos dizer antes «burreiro»?
sexta-feira, 5 de outubro de 2007
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