há coisa de semanas, Maria Teresa Horta fez o favor e a amabilidade de apresentar o meu livro de contos. o belo texto que então leu foi este que agora aqui publico:
Stendhal disse: “Escrever é prazer puro”. Anos mais tarde, Lou Andreas Salomé acrescentaria o seguinte: “O princípio da escrita é o do prazer. Um exercício do prazer que, num mesmo acto, dá prazer a quem cria e a quem lê...” E acrescentou ainda, “Portanto, o acto da escrita só é comparável ao acto da entrega amorosa”.
Inquietante.
Mas, na realidade, a escrita é isso mesmo: O conjunto do encontro do prazer de quem escreve, com o prazer de quem lê. E é desse todo circular, de todo esse corpo uno, revolvido e único, que é feita a literatura.
Ora “O Sorriso de Mona Lisa” de Pedro Teixeira Neves, livro cindido em duas partes díspares, mas que em si mesmas se completam e equilibram, surge desse princípio de prazer, pelo lado do excesso: o júbilo, o lúdico, como raizes que partem das suas fundações e levam à invenção, ao tumulto interior, à criatividade. E é em torno desse júbilo e desse lúdico, mas também da contensão e do distanciamento necessário, do puro gosto pela palavra escrita, que ele tem vindo a construir tanto a sua poesia como a sua ficção. Por isso se tornou num autor, a quem se aplica o princípio de “despojamento narrativo” de que tanto falou Sartre.
Despojamento que, no caso deste seu livro de contos, me parece ainda mais evidente, pois Pedro Teixeira Neves construiu cada um deles, com um espírito simultaneamente obsessivo e metódico: texto após texto, cada um deles como objecto raro. Produto do seu imaginário, enquanto criador perspicaz e manipulador do corpo da escrita: palavra, história, invenção. E como ele sabe ser inquietante, desconcertante e ávido! Desse modo impedindo o leitor de se acomodar à leitura, adormentado à luz toldada da linguagem. Mas, é sempre frente ao perigo iminente da banalidade e do toldamento, ou do risco a que pode levar o explendor literário, que Pedro Teixeira Neves melhor escreve, mais ousa, desobedece, cresce.
Só que, no terreno aparentemente aprazível da ficção, existem pedras, escolhos, esquinas imprevistas, perigosos alçapões; ou seja, aquilo que o escritor não conta-contando, na sua falsa ocultação e mistério. E, acima de tudo, existe a linguagem para degustar, para narrarmos, amarmos ou desamarmos, usarmos de muitos e desvairados modos, formas diversas e avassaladoras... “A linguagem é uma pele: esfrego a linguagem contra o outro. É como se tivesse palavras de dedos ou dedos na extremidade das minhas palavras.” – revela-nos Roland Barthes, desconcertante. Acrescentando ainda: “A minha linguagem treme de desejo”.
Vertigem?
Por seu lado Júlia Kristeva confessa: “Com a linguagem eu desacato, causo a vertigem, com a linguagem sou livre de criar a dúvida, o mistério e a inquietação”.
A aventura.
A literatura, enquanto aventura maior.
Decididamente, eis-nos em pleno risco.
Num universo encantatório, mas minado.
Ora como poeta que é, conhecedor, lapidador da palavra, Pedro Teixeira Neves sabe destes meandros, destes precipícios, sem esquecer as planicies, as lagoas, as colinas suaves. E em “O Sorriso de Mona Lisa” ele prende, une todos eles com um nó corredío, que deslaçará no acto de escrever aquilo que, enquanto coleccionador de ficções, foi por si meticulosamente elaborado, calculado. Coleccionador que o escritor acaba transferindo para o anti-heroi do conto “Um Homem Simples”, habilmente descrito como um ser sem diversidade, sem interioridade. Deste modo preciso e rápido: um “homem simples que encontramos num pacato fim-de-semana num periférico jardim nos arredores da sua cidade”.
Só que, durante o seu desenrolar a história complica-se, enreda-se de uma maneira embrincada, embrulhada em trevas, em dúvidas, em suspeitas; e no final o que acaba por ser mostrado, é uma figura por demais complexa, enredada num jogo de multiplicidades dolorosas, ligações fraternas e secretas, conflituadas, pelos meandros da memória, onde se enconta a figura enevoada de um irmão gémeo, que por acidente ele matara no passado. A propósito de ambos, o escritor pergunta directamente: dois seres “que se cruzam num plano infinito?”
Mas, se neste conto a imagem do duplo se apresenta a certa altura, evidente e clara, ela mantém-se oculta, subjacente, ao longo de todo o livro; mesmo na sua segunda parte, intitulada “Contos de Fronteira”, onde num dos seus textos chamado “Moulla”, uma irmã e um irmão misturam-se, confundem-se e confundem os outros, sob a falsa identidade a que pode levar a máscara, o gesto, o trajo.
Ambiguidade dúctil.
No dificíl entedimento-enredamento da busca de identidade. “Eterna, inevitável e incessante procura”, como bem nos explicou Freud. Desdobramento de nós próprios, ou de um outro nosso lado desconhecido, guardado e resguardando-se na penumbra do inconsciente, com o qual todo o criador mais cedo ou mais tarde se confronta. Imagem projectada que se começa por recusar, por temer, mas que simultaneamente se almeja.
Aliás, o novo livro de Pedro Teixeira Neves joga o tempo todo com essa duplicidade-cumplicidade, conivência-equívoco, entre a imagem projectada no ecran, e aquilo que no espelho é o seu próprio reflexo. Deste modo recriando um clima de enigma e de dubiedade, que percorre de ponta a ponta “O Sorriso de Mona Lisa”. Assim, com um envolvente olhar voeurysta, o seu autor faz-nos percorrer galerias de arte, museus, atelliers, capiciosamente entrando na intimidade sobretudo dos artistas plásticos. Mas, não se contentando com isso, ele vai até aos meandros insondáveis do relacionamento dos pintores com os seus próprios quadros. Deste modo misturando a realidade histórica com o mágico, o quotidiano com a fantasia.
Aliás, num passe de pura magia literária, Pedro Teixeira Neves traz até à nossa beira, ora Boticelli, Donatello, Leonardo da Vinci, Caravaggio, ora Francisco José de Goya y Lucientes, Klee, Matisse, Hopper... e por arrasto, os seus banais colones, a passearem-se pelos nossos tão desinteressantes dias; em ficções onde se salta da mediocridade do quotidiano para os universos insondáveis e recônditos da arte, numa rico conjunto de, falsificadores, plagiadores, coleccionadores, escultores, musas, e... O próprio fim. Como nos é revelado no conto “A Musa” : “No fim de tudo está o branco, está o silêncio branco do nada”.
Começo ou início.
Ardil do criador?
Aliás, num conto primordial desta antologia: “O Grande Criador”, Pedro Teixeira Neves mostra-nos aqueles que, ao criarem, tomam para si o papel de Ente Todo Poderoso, com direito sobre a vida e a morte das suas personagens, o desenlace das histórias e atá da própria literatura. Deste modo tomando o papel de Deus?
Portanto, “O Sorriso de Mona Lisa”, ao manejar a ficção, ao desvendar, ao recriar a vida, fascinando-nos com o seu ofício da escrita, e com a sua equívoca representação do mundo, é sem qualquer dúvida, um livro de autor, um livro-culto.
Embora eu prefira chamar-lhe: um livro de culto.
Maria Teresa Horta
Lisboa, 6 de Março de 2008
1 comentário:
Parabéns! Espero que seja um sucesso.
Beijos.
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