quinta-feira, 6 de setembro de 2007

O Problema dos Domingos

Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar...
e há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
«Bom tempo para amanhã»...
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.

Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
só não relacionam que se matou num domingo!...
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que a sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina...
Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe a sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!

Há mais amargura nisto
que em toda a História de Guerras.

Partindo deste princípio,
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
e esta era uma das coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!

Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores...
Penso nisto, e vou a grandes passadas...
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia,
mas todos acharam estranhos os meus modos
e estranha a minha voz...
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
– ao sol
como num ritual consagrado a um deus! –
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida...

Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
venha a ânsia do peito para os braços!

E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura...
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.

Uma vez que chovia
até entrámos numa escada.
somente sequer um beijo trocámos...
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bem feito,
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés...
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos,
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
– rapaz, traz-me um café...
O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
– Olha
quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol...
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
– ... no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo,
segurando uma cana donde caía um fio para a água...
... um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou...
... O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?... –
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!

Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou...
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes...
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão da sua avó...
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!...

Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!

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