quarta-feira, 12 de setembro de 2007

O erro de Eros - Um conto com barbas

Na pacata vila da Anunciada, José Lembranças passou a chorar baba e ranho dias a fio. Os amigos visitavam-no, contavam-lhe episódios vividos havia meses, coisas da semana passada, ocorrências do dia anterior, episódios de poucas horas passadas, que fosse, mas nada, ao homem varrera-se-lhe toda e qualquer réstia de memória. Fazê-lo relembrar fosse o que fosse era tarefa mais difícil do que pôr suspensórios numa cobra. E logo a quem haveria aquilo de suceder?! Ao Lembranças, o sacana do Lembranças que tanto se orgulhava de no seu arquivo de memórias conseguir recuar até cerca dos três anos de idade! Um feito detalhado, coisa para admirar, depurada ao ponto da inventariação de cheiros, cores, locais, sabe-se lá o que mais. Em terminologia moderna, para que se entenda o calibre da coisa, aquela cabeça seria um Pentium carregado de megas e jigas e outras lisuras contemporâneas que tais a debitar o passado de tudo e todos. Todos, sim, porque sendo a terra onde habita o nosso amigo desmemoriado um lugar em que estranhamente os seus habitantes pouca memória tinham era ao Lembranças, cognome, claro está, que confiavam e confidenciavam as suas vidas. As lícitas, corriqueiras e quotidianas, e as ilícitas, pejadas de corneações, mentiras, cobiças, invejas e quejandas fraquezas de alma e espírito. De modo que não sendo propriamente um padre, Lembranças era uma espécie de confessionário em forma de gente, um espantoso banco de dados, entendamo-nos. Perguntassem-lhe a data de nascimento deste ou daquele vitelo, daquela bezerra ou daquele cabresto, enfim, de toda e qualquer bicharada nascida nas cercanias e logo ele debitava horário, morosidade, responsável pela assistência ao parto e respectivo peso e coloração do animal. Mas isso é apenas um exemplo entre muitos outros, e já que estamos nisto, com ele alinhavam todos no jogo dos anexins, adágios ou tautologias – que os há para dar e vender nesta santa terra lusa... -- e logo Lembranças se encarregava de os concluir. Assim, em verdadeiro desfiar:
-- Quem bem paga...
-- ... é herdeiro do alheio.
-- Sua alma...
-- ... sua palma.
-- Comer e coçar...
-- ... o ponto é começar.
-- Azeite, vinho e amigo...
-- ... o mais antigo.
-- O negociante e o porco...
-- ... só depois de morto.
-- Dá deus o frio...
-- ... conforme a roupa.
-- Ande eu quente...
-- ... e ria-se a gente.
-- E quem tiver inveja...
-- ... que arrebente.
E por aí fora iam, com Lembranças espantando e divertindo os circunstantes com o seu saber enciclopédico. «Fala como um livro», diziam dele. E assim era, endereços, datas de nascimento, relação de familiares de todos os habitantes, telefones, era de facto um assombro. Já noutro plano, porém, no das confidências pessoais, Lembranças era mais comedido. E o que ele sabia! O rol de cornudos, esse, bom, até espanta como o homem tinha espaço na memória para tamanha informação... Não admira que as mulheres muitos esforços envidassem para lhe tentar sacar algumas «novidades». Ele, porém, calado, até porque o seu silêncio lhe ia valendo uns cobres e uns copitos sempre bem aviados na taberna do Alvarinho. Atestado e olhando a cumplicidade suposta no sorriso dos companheiros era ele que, no fundo, mias se ria pensando nas corneações de que tinha conhecimento mas no feminino...
Ora foi justamente na «casa do Alvarinho» que ao início de uma certa noite Joaquim Pata Roxa entrou vomitando os bofes e mal conseguindo articular sílaba com sílaba.
-- O Lem... o Le-lem... o Lembranças.
-- Que é lá isso Roxa, perdeste o juízo? -- atalhou Manel Andeiro tentando serenar o desgraçado.
-- O Lembranças, foi um azar, uma besta...
-- Mas ó Roxa, acalma-te, não atinas coisa com loisa. Senta-te e arruma os pensamentos – disse-lhe o Bota Negra apondo-lhe a grossa mão no ombro e sentando-o quer ele quisesse quer não. -- Atão afinal que diabo têm as bestas a ver com o Zé? Terá antes sido picado pelas vespas do Onofre? Foi isso?
-- Antes tivera sido, antes tivera. Mas foi mesmo uma besta, foi lá em baixo, no Barranco das Amendoeiras, onde o fala-barato do Meireles inaugurou o campo de tiro para turistas faz agora duas semanas... e ele andava lá, a colher informações, bem se vê, e foi atingido, uma flechada em cheio na testa, vocemessês querem acreditar!!!
-- O diabo da besta!!! – assentaram os presentes num coro de admiração.
-- E agora? Ele aguenta-se? Como vai ser? Finou-se?... -- perguntou o Alvarinho que também se aproximara da mesa.
-- Agora, agora está em casa do meu compadre Juca, mais o padre, o médico e as beatas todas. Parece que se aguenta, diz o doutor que é um caso raro, coisa para milagre mesmo, o pior...
-- O pior? -- Engoliram todos temendo justamente o pior.
-- O pior é que não se lembra de mais nada. O pobre diabo parece uma cassete destrambelhada, não se recorda de nada, nadinha, o diabo é que de quando em quando lá sai uma ou outra informação menos conveniente... Ficou doidinho, estão a ver...
Entreolharam-se todos com ar de caso e preocupação. Repuxaram os pescoços para o lado, beberam duas rodadas de «pura» e saíram rumo à casa do Compadre Juca.


E num salto ali se puseram, transpondo já, com mil cuidados e algodões, a porta do quarto onde Lembranças se encontrava estirado ao comprido em cima de uma cama. Se agonizava? Bem, o desgraçado sofrer não parecia sofrer, mas... como dizer, enfim, que padecia de alguma coisa, havia de padecer, pois que aquele olhar semi-morto para o infinito não prenunciava nada de bom.
-- E ele fala? – questionou Manel Andeiro.
-- Falar, fala, mas só quando lhe dá na telha – respondeu Compadre Juca cumprimentando o Andeiro e os demais visitantes que de imediato dirigiram respeitos ao Doutor Alves da Cova. Este, arrumando os instrumentos dentro da sua inseparável mala de couro, adiantou um «Boas Noites» geral e ainda comentou, mais para si do que para aqueles que o escutavam atentos como mochos parecendo até que aguardavam a revelação – mas a verdadeira – do terceiro segredo de Fátima:
-- Cage, Philleas Cage, é isso, exactamente, o tal operário inglês a quem aconteceu coisa semelhante... Hum... Veremos, veremos.
Alçando os olhares e cruzando ignorâncias a respeito do solilóquio do médico, todos os presentes se abeiraram do leito de Lembranças. Incrédulos com o espectáculo, queriam comprovar de distância bem comprovada a sobrevivência do azarado que ali definhava, olhar aguado, distante e com a cabeça atravessada, de fonte a fonte, por uma seta. Mas na realidade ele respirava! «Santo Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo e por todas as alminhas que há no Céu» -- diziam --, ele respirava!!!
Entre o medo, que é bicho que sempre acode face aos fenómenos não explicáveis, e o respeito, que é consequência imediata do dito, a sala calava-se a cada vez que Lembranças deixava escapar um qualquer facto. As mulheres elevavam então os braços, benziam-se de seguida e desatavam baixinho em preces que só elas poderiam traduzir. Os homens, esses encolhiam os ombros para trás e passavam as mãos pelas faces mal escanhoadas. E todos, claro, atentos aos ditos com que Lembranças ia borrifando as horas, cada qual mais atento do que o próximo sempre à cata de uma qualquer revelação surpreendente sobre os conterrâneos.
Os agentes da Judiciária vieram depois, prestimosos a tomar conta da ocorrência. Tiraram medidas. Viram e reviram entrada e saída da flechada, torceram olhares e retorceram esgares, sorriram entre dentes como só eles sabem fazer (coisa de filme, bem treinada), e escrevinharam mais umas notas. E perguntaram, como haviam aprendido no Curso de Reciclagem para Oficiais da Polícia Judiciária que o Ministro da Administração Interna acabara de lançar pelo país a bem da imagem das Polícias e dos direitos dos cidadãos: o quê?, quem?, quando?, onde?, porquê? e como?
Perguntaram e bem, mas o facto é que poucos souberam avançar respostas rigorosas ou pistas quaisquer por pequenas que fossem. Ninguém vira coisa alguma, asseverou o dono da casa, Compadre Juca, excepto o Libório Pastor que o trouxera ao ombro adiantando que o encontrara por terra junto às grades de protecção do novo campo de tiro, mas que tinha que se ir embora depressa pois o rebanho ficara ao Deus dará. Se tinha inimigos o Lembranças? Mas por alma de quem os haveria de ter, tanto mais que era ele um precioso auxiliar de memória para todos! Por outras palavras, perguntou o agente Dória, esgaravatando a sempre incontornável tese do crime em prejuízo do aparente acidente:
-- A quem é que poderia interessar que o homem se esquecesse de tudo aquilo que sabia?
Ninguém soube responder e por ali se ficaram as primevas investigações, remetidas, até mais adiantamentos, para o sepulcral silêncio da esquadra. Também, e na verdade, dentro do quarto importava mais àqueles que ali acorriam intentar saber como tinha sido possível que o Lembranças não tivesse batido as botas! Diga-se, aliás, que entre vozes se pensava já em escrever um breve relato do caso para a Santa Sé a ver se a história do milagre pegava, porque isto, sabe-se, um milagre faz sempre bem aos negócios de qualquer terra. Bota Negra, que costumava ver os telejornais -- um tipo informado, perceba-se --, é que perguntou, ainda que sem foros de grande inteligência:
-- Mas atão, o senhor Santo Papa ainda consegue ler, ele que anda tão velhinho e tão curvado que mais parece um caracol?


Os dias foram passando e José Lembranças pouco melhorou. Àqueles que o foram visitando aos poucos e poucos foi-os reconhecendo, mas revelava-se incapaz de se lembrar fosse do que fosse. Dava-lhe era para o choro, e vertia baba e ranho ao dar-se conta do manancial de informação que perdera. Pelo menos era o que lhe contavam os amigos, os confidentes. Um desastre, por outras palavras. Tal qual como se um vírus lhe tivesse infectado o «sistema». Um vírus, sim, ou pior, só que sob a forma das armas de Eros, que como se sabe são das mais mortíferas à superfície do planeta.
A José Lembranças não se conheciam parentes, pelo menos num raio de cem quilómetros. E a verdade é que mesmo tendo o caso sido relatado e discutido na imprensa nacional, televisões, revistas, jornais e reality shows, ninguém apareceu a reclamar laços sanguíneos. Pudera, cuidar do «índio», como já lhe chamavam, não haveria de no futuro ser pêra doce. Passado o empolgamento próprio dos casos afins, debatidos e apresentados mais não se sabe ao certo quantos casos similares embora desconhecidos até à data, o assunto morreu na agenda dos noticiários das oito. Não na vila, porém. É que o Lembranças era um personagem, um figuraço lá da zona, e, para mais, quem sabe se um dia ele não voltaria a recordar-se de toda a informação que guardava e que ia debitando, de quando em quando, embora de forma desconexa e avulsa.
-- Tão claro sendo necessário olhar pelos mortos, é sobretudo preciso e um dever cuidar dos vivos. – Foi deste modo, preciso e claro, que o recandidato à Junta de Freguesia, Dionísio Meireles, pôs as coisas em inflamado discurso na sede da colectividade da Anunciada. E acrescentou, pois que as eleições estavam próximas e as coisas não lhe vinham correndo muito bem: -- O país já o esqueceu, Anunciada não! Eu, Dionísio Meireles, da lista A, prometo-vos que comigo à cabeça da Junta... (!) ... eh... comigo à frente dos destinos da freguesia José Lembranças terá sempre quem olhe por ele. É meu propósito, nesse intuito, tratar de, e pessoalmente, garantir que uma cama lhe seja reservada o quanto antes no Centro de Assistência aos Inválidos, futura instituição de apoio aos mais carenciados e desprotegidos que eu próprio também tive já a oportunidade de anunciar como mais uma das realizações do meu próximo mandato.
Palavras rebuscadas, sim senhor, mas às quais o auditório, mais interessado de resto no jogo entre o Alfarrobeira e o Caceteirense, pouca atenção prestou. Ao eloquente discursante conheciam-no de outras Calendas e não muito diferentes no verbo. Sabiam-no um vendilhão de promessas e nada mais do que isso. Para mais, Meireles associara-se nos últimos anos a uma plêiade de interesses no mínimo muito duvidosos e sobretudo pouco claros. Promessas, ao povo, no último pleito, fizera às dezenas apresentadas em bonito papel couché bem gramado, de uma a cem! Aquilo ia ser uma revolução lá para os baixos da Anunciada. O progresso, pois, o pleno emprego, o retroceder da desertificação humana, as oportunidades para os jovens, a assistência médica, à agua potável e canalizada para todos, as estradas sem buracos, o fim dos incêndios, enfim... o progresso. O progresso, sim, o que chega por regra primeiro aos bolsos de uns em prejuízo, está-se a ver, da imensa maioria que são os demais.
Desconsolado e meio furioso, mas não o dando a entender, Dionísio Meireles voltou ainda à carga antecipando mais uma mão-cheia de promessas e rematou sublinhando novamente as «profundas» preocupações com o futuro de Lembranças, o «índio». E saiu, não desistindo de aos presentes ir oferecendo pequenos saquinhos com porta-chaves, autocolantes e bandeirinhas onde se podia ver a sua cara sorrindo sob o slogan «Com Meireles, Elas e Eles».
-- Quanto é que está?
-- Dez a zero, ganha o Caceteirense.


Quem saiu das instalações da colectividade, logo após o abandono do recinto por parte de Meireles e seu séquito de acólitos, foi também o agente Prado, que para aí se deslocara à paisana a ordens do seu superior, o já citado nestes «autos» agente Dória a quem se havia metido na cabeça que por detrás deste «acidente» havia gato.
Gato por gato, quem foi afastado de debaixo da secretária por um pontapé foi o Bicho, o gatarrão de Dória que com ele partilhava os metros quadrados do seu escritório na esquadra. – Ó Prado, chega-te aqui! – ordenou enquanto demorava um olhar guloso sobre os seios fartos da pin up que no calendário dos Aquecedores Saragoça dava corpo e cara e tudo o mais com que viera ao mundo ao mês de Agosto. Um quente mês de Agosto aquele, a que depois das manifestações dos ambientalistas por causa do tamanho exagerado da parabólica da colectividade só faltava agora este caso do Lembranças. – Chiça!!!
– Então, o que é que caçaste?
– O meu superior se calhar tem razão...
– Se calhar?...
– Pois, há-de ter, naturalmente... Na verdade, a tónica do discurso do Meireles incidiu, como aliás o chefe suspeitava, sobre o caso que temos em mãos.
– Cheio de projectos para o Lembranças, não é?
– Precisamente. Fala de um Centro de Assistência onde parece que vai pôr uma cama... enfim, depois desatou com as promessas que já se sabe insistindo no eu, eu e mais eu.
– Estou a ver, o discurso próprio de quem se enfeita com penas de pavão. E o povo?
– Népias.
– Népias?
– Pois, não lhe ligou cheta.
– Hum... Há gato, há gato, não é assim, Bicho? – rematou Dória assentando pedra e cal.
Na taberna do Alvarinho, a investigação era outra, mas não corria em sentido muito diferente, que aquilo que o povo não sabe intui. Ou fareja, porque como também se sabe a vivência com os animais espicaça os sentidos que aos homens da cidade parecem fugir. E comentavam assim, em regada conversa, Manel Andeiro, Joaquim Pata Roxa, Bota Negra, Compadre Juca e o próprio Alvarinho.
– Eu estranhar, estranhei. Pois não foi ele o único que não quis ir ver o homem logo após o acidente e logo agora vem com estas histórias do apoio aos desgraçados e do Centro de Apoio.
– Estou contigo, Bota Negra. Tenho para comigo que não foi nada um acidente. Atão, uma flechada enviada noventa graus para a esquerda do alvo, pouco mais ou menos... É lá isso possível sem que tenha havido gatilho engatilhado?! – Ajuntou Manel Andeiro, apondo assim, e talvez sem o saber, mais uma peça no puzzle.
– Têm vocemessês razão. Pensando bem, e se for-mos a ver, a vida do Zé nunca esteve na mira da desgraça. Pelo contrário! – disse o Alvarinho, servindo mais uma rodada, que em grupo de amigos mais funciona como óleo para a língua do que como pomada para o estômago.
– E você, Compadre Juca, que o tem ainda lá por casa, o que diz do caso? – perguntou Pata Roxa.
– Bem, do que o Lembranças diz ou vai dizendo pouco tenho a dizer. Felizmente para todos nós não sai dali coisa com coisa. Perde-se em divagações, não diz uma prá caixa. Depois, é o mesmo de sempre, choro, baba e ranho. A minha Alzira é que não tem tido descanso nas limpezas.
– E a seta, a flecha?
– A flecha? Atão, lá está. Diz o Doutor Covas...
– ... Alves da Cova.
– Isso, isso... Diz que o melhor é não mexer no assunto, se me faço entender, não vá depois o orifício deixar esvair-se-lhe o cérebro ou informação que não interesse.
– E é bem capaz de ter razão, é bem capaz de ter razão. Mexer em milagres é coisa que não se deve fazer. – Sentenciou Manel Andeiro e os outros concordaram antevendo-se já em camisas de onze varas temendo que por algum azar o Lembranças desatasse subitamente a pôr cá para fora informação menos própria sobre as suas vidas. Pois se já como as coisas estavam andava meio mundo enrascado com o facto de o «computador» ter falhado, quanto mais se a coisa se complicasse! Ao menos assim, enfim, perdia-se um amigo mas não se perdia tudo.
– Quem sabe, não se poderá fazer do caso uma atracção turística? – atirou para a mesa o Bota Negra em mais uma das suas perguntas pertinentes. E continou: – Juntamos-lhe o gato das duas cabeças do Arlindo Fazendas e mais a cabra malhada do Ti Ramos da Aguada e é sucesso garantido. O que é que lhes parece?


A casa de Dionísio Meireles respirava conforto na vida. Talhe recente, dois pisos amplos, tinha dez quartos, comentava-se – e para quê?, para quê, se ele nem sequer tem descendência? –, um jardim relvado bastante desanuviado servido de piscina e zona de grelhados, a que acrescia o necessário e indispensável parque automóvel para quatro Mercedes se preciso fosse – e era, e era! – dizia-se também. Dois leões em pedra encimavam os pilares do portão de entrada. Era sportinguista.
Nascido na vizinha Aldeia da Desdita, Dionísio era filho, neto e bisneto de gente humilde. O pai, o velho Teobaldo Meireles, era um simples camponês, rijo como as vinhas que tratava com mais amor e dedicação do que aos filhos. O amor aos frutos de Baco e a toda a laboriosa tramitação em torno do crescimento das vides até ao tempo das vindimas, lá para Setembro, fora, de resto, e muito provavelmente, o principal responsável pela sensação de rejeição que iria moldar para sempre o vincado e retorcido carácter do pequeno Dionísio – cujo nome, curiosamente, fora imposto pelo pai em virtude do desmesurado amor à vinha e ao vinho. Mas, dizíamos, e em virtude do exposto, cresceu Dionísio imbuído de um forte desejo de vencer na vida, deixando nas páginas do passado as agruras a que associava as vides e lides do pai. A mãe, por seu turno, era demasiado apagada e reservada para lhe inculcar qualquer marca no espírito. Ambicioso e tenaz, que são raízes que facilmente singram na terra fácil das dificuldades da infância, Dionísio não olhou a meios para atingir os fins sonhados: ser alguém na vida. E jurou no dia em que deixou a casa paterna, olhos nos olhos da mãe chorosa que o via partir:
– Ainda hei-de ir a presidente da Junta. E foi. Não na Desdita, mas na Anunciada.
O caminho para o poder, mesmo se falando estamos ao nível dos baixos círculos, delineia-se, traços gerais, do mesmo modo em qualquer morada ou geografia urbana. Uns contactos felizes para início, fato e gravata depois a juntar a uns sorrisos estudados, favorzinho aqui, outro acolá, um fechar de olhos a este ou àquele contornar dos preceitos legais, enfim, a estratégia habitual que costuma levar aos gabinetes de decisão um ou outro tipo que tenha um bocado mais de queda para a coisa política. Chegar ao cimo, porém, nem é coisa de muita ciência – em terras de cegos um só olho bastará –, mais difícil, e isso ensinam todos os manuais de ciência política, bem como as experiências reais, é permanecer no poleiro… perdão, no poder. Pois bem, isso mesmo, quase findo o mandato para que havia sido eleito, descobria agora Dionísio Meireles. Promessas fizera-as ele há quatro anos. E tantas eram que chegou a contratar na altura os serviços de uma gráfica do Seixal – que lhe fora recomendada pelo Viegas da Mortiça, responsável pela propaganda eleitoral do Partido na região – para dar à estampa apurado e cuidado livrinho com o pomposo título «Cem Medidas Rumo ao Futuro da Anunciada». Coisa bonita, sem dúvida, pena que Meireles desconhecesse que o pequeno volume viesse a aparentar-se mais com o célebre «Crónica de Uma Morte (política) Anunciada» do que com qualquer futuro manual sobre como atingir o progresso social. Outra coisa que Meireles se preparava para descortinar era que quanto mais alta e rápida a subida maior e mais rápida ainda se revela a queda!
O retrocesso no meteórico percurso ascensional de Dionísio Meireles deu-se quando, em amena reunião de amigos em sua casa, regada com um bom vinho e umas febras alternadas com um mergulho na piscina em forma de leão e com listras verdes e brancas pintadas no fundo, ele comprovou a sua queda nas preferências eleitorais do povo realizando que as estatísticas elaboradas pela rádio local punham à frente do seu nome o de Gervásio Lampreia. A «máquina» então assustou-se. Meireles irritou-se, terminou com duas dentadas a entremeada que tinha em mãos, limpou os gordurosos dedos na toalha de mesa e sobre esta desferiu valente murro. – Não pode ser! Os seus serviçais assustaram-se, saíram do azul das verdes águas, secaram-se nos atoalhados, terminaram as febras remanescentes e dispuseram-se a inverter o rumo dos acontecimentos. Como a aflição não é boa conselheira, bem como a falta de ideias e projectos, decidiram-se pelo pior caminho: a eliminação do adversário.
Com esta conversa toda, perguntar-se-á por esta altura e bem, o que tem com tudo isto a ver o desgraçado José Lembranças que ainda por esta hora agoniza e se esvai em baba e ranho em casa do não menos desafortunado Compadre Juca, cuja casa e esposa não têm descanso desde o mal fadado acidente. A resposta é: tudo! Lembranças, como já se disse, era talvez a mais conhecida personagem da Anunciada. Para além disso, depositário que era de tudo quanto fosse segredo na terra, encobridor de passos menos seguros no caminho de muito boa gente, não admirava que todos o respeitassem. Era também um fervoroso adepto do progresso dos seus conterrâneos e os destinos políticos da terra eram em si uma preocupação constante. Arguto e atento, homem que nada esquecia, vinha de há muito a insurgir-se contra a inépcia do reinado de Meireles à frente da Junta. E que fez ele? Não fez a coisa por pouco. Ligou-se a Gervásio Lampreia e passava os dias a debitar, para quem o quisesse ouvir, e eram muitos, todas as cem promessas não cumpridas por Meireles. É óbvio que este, em sabendo do caso, se enfureceu, estado de espírito esse que levou à decisão tomada no tal dia das febras e entremeadas em volta da piscina: Lembranças era o homem a abater. Mas como? Alguém lembrou então que «o sacana» costumava espreitar o novo campo de tiro, única realização da lavra de Meireles que, no entanto, ninguém conseguia explicar tanto mais que seria a última coisa de que a freguesia necessitava. Lavagem de dinheiros, era a teoria mais aceite no adro das discussões sobre o assunto.
Foi, contudo, no gabinete (como pomposamente agora se diz) de beleza e styling da Mena que o plano de Meireles veio a meter água. Sabe-se como as mulheres são, e, mais do que isso, sabe-se como são estes salões de vaidades, uns verdadeiros confessionários, pelo que, à falta do Lembranças… À falta do Lembranças Dinora não se conteve. E lá foi, ao longo de uma tarde inteira, de mansinho dando com a língua nos dentes. Que uma destas tardes, não há muito tempo, o marido, «o meu Memé, sabem?», os amigos e tal e tal, em volta da piscina, de «25 metros, claro», e dos grelhados, «ai fuma tão bem, sabem, não olhámos a despesas e uma vez que gostamos tanto de receber os amigos»… Enfim, foi o que se adivinha, o caldo derramado. Dinora, para mal dos seus pecados e dias futuros, acabou por não se conter deixando subentender que o seu querido «Memé» tinha estado na origem do acidente com a flechada. Mariazinha Dória, que ali estava presente por via das manhas do acaso, e que já havia aprendido umas manhas investigatórias com os anos de casada que levava com o seu marido, o agente Dória, não fez a coisa por menos. Aproximou-se mansinha, sorrateira e dengosa como uma cobra, e pôs-se a fazer a mise e unhas ao lado de Dinora Meireles. Quis saber mais e soube. E soube aquilo que já se adivinha. Que estando um dia Meireles a treinar uns disparos com a besta, vislumbrou, não mais do que a cem metros, José Lembranças cuja casa se situava paredes-meias com o campo de tiro, ali mesmo, no Bairro Económico. Não fez a coisa por menos. Meireles, armado em Eros, não errou o alvo, embora tamanha pontaria viesse a constituir o seu maior erro. É claro que Mariazinha se despediu de Dinora com mil floreados e é claro que correu para casa a contar tudo ao seu marido; que gostou do seu novo penteado e que, por sua vez, juntou todas as peças do processo e de imediato foi visitar o desdito presidente da Junta. Gervásio Lampreia, esse, rejubilou com a sua prisão e em matéria de José Lembranças acabou por ir mais longe prometendo ao povo «uma estátua em… em… em... Corrijo, pela sua memória, claro está!»

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