sábado, 10 de maio de 2008

Tudo isto para ir dar ao novo romance que comecei a escrevinhar, em torno dos anões dos quadros do Velásquez

Com o súbito estrépito da porta abrindo-se de rompante e logo em seguida batendo novamente ao fechar-se, sobressaltei-me e emudeci, engolindo em seco não fosse vir a ser descoberto. Os meus olhos pararam no escuro, como se mesmo o simples e mínimo pestanejar pudesse denunciar a minha presença. Passaram dois segundos. De novo engoli em seco e tentei perceber para onde se dirigiam os passos numa cadência arrastada.

Entrei na biblioteca disposto a recolher-me do mundo. Era já dos poucos, senão o único lugar, para além do meu quarto e da minha cama, talvez também para além das margens do rio onde amiúde me comprazo em passear, onde gostava de estar, não me importando em ali permanecer durante horas a fio. O que não raro acontece e o que para alguns poderá equivaler a uma grande chatice, equivalendo mesmo a uma espécie de clausura. Para mim não, para mim tal possibilidade traduz-se num deleite. Gosto dos livros, gosto de estar entre eles, de lhes sentir a presença, de os saber disponíveis para os meus olhos, para as minhas mãos, inclusive para o meu nariz. Durante anos e anos, durante décadas os fui juntando, coleccionando título sobre título, autor sobre autor, com verdadeiro prazer, como quem reunisse o melhor do mundo e dos homens, como quem trouxesse para junto de si o melhor que o Homem tivera para dar, como quem, a cada compra, juntasse novo nome à sua lista de amizades. Um livro é um amigo, sim. De modo que sempre achei normal gostar de permanecer perto deles. Umas vezes percorrendo as estantes lentamente até me deter, por esta ou aquela razão, num ou noutro qualquer título cujo autor ou temática, por circunstâncias variadas e do acaso, me suscitasse interesse, outras vezes simplesmente me comprazendo no olhar das suas lombadas, umas encostadas às outras, irmanando-se em fileiras sem fim, sobrepondo cores sobre cores, tamanhos sobre tamanhos. Creio que é uma bela biblioteca. Uma biblioteca enorme, com as suas largas paredes forradas de livros e estantes de lado a lado, de alto a baixo. Com os seus quase duzentos metros quadrados e vários corredores de estantes parece mais um salão do que uma biblioteca, eu sei, ou então são dimensões mais próprias de um qualquer palácio! Já vêem porque gosto da minha biblioteca. Porque nela me perco sem me perder! Perco-me nos seus milhares de títulos, perco-me no tempo que desprezo e esqueço quando ali dentro. E completa, uma biblioteca completa que ao longo dos anos fui organizando por géneros e áreas do saber: ensaio, política, história, literatura, romance e poesia, autores nacionais e estrangeiros, os clássicos, o teatro, a música e a dança, a matemática e as ciências, a saúde e a medicina, a filosofia e a linguística, enfim, um pouco de tudo. Uma biblioteca invejável que muito me ajudou ao longo da minha carreira de professor e escritor. Na verdade, um escritor sem uma biblioteca não será um escritor. Diria mesmo que para escrever o escritor tem de estar na companhia de livros, por uma simples razão, porque creio que na realidade cada livro de cada autor não é senão o resultado de todos os livros que lhe são anteriores. Depois, é... uma questão de companhia. Como aprecio, como sempre apreciei descansar as mãos da escrita para me descansar no gozo da escrita de outrem! Não, não uma biblioteca que utilizei de forma egoísta. Pelo contrário, sempre tive também muito gozo e orgulho em poder partilhá-la com os outros, sobretudo com os meus amigos e alunos, sem dúvida, também por vezes ou sobretudo com as alunas... Bem, isso já lá vai o tempo. E que mal nisso? Os livros são muito úteis ao amor, esta é a teoria que sempre defendi, que ainda hoje defendo. Sobretudo os livros de poemas. Quantos poemas já não terão estado no início de romances, de histórias de amor, quantas, quantas não se terão escrito a partir de um verso dito ou enviado ao ser amado na hora certa? Sim, porque é bem certo que não sei de casos de divórcio que tenham terminado com um poema. Os livros estão sempre no princípio do amor, nunca no seu final. No final, diria, os livros também entram, mas noutra medida, isto é, são sempre um problema quando as duas partes do casal gostam de livros. Sim, é bem certo, os livros trazem histórias mas por vezes também originam outras histórias. Comigo, pelo menos, a certa altura da vida, foi assim... Ah, mas não pensem mal de mim, isso foi antes de me casar, antes de morar com a minha mulher, quando eu era jovem e descomprometido que não com a aventura e as conquistas amorosas. E garanto-vos de experiência feita: um verso aqui, outro acolá sempre se mostraram à altura dos meus desígnios amorosos. Que não fosse apenas por isso, teria já uma dívida eterna para com a poesia, para com os livros. Mas depois de casar essas aventuras românticas, com a biblioteca como mote, terminaram. Se a minha mulher gosta de livros? Sim... e não. Sim, porque aprecia uma boa história, um bom romance. Não, porque sempre achou que os livros lhe roubaram grande parte do tempo com o marido. Para além disso, sempre se queixou da ocupação da casa pelos livros, ralhando com o pó que eles acumulam, com o difícil que é mantê-los limpos, com o espaço que ocupam, com o tempo que me tomam... Enfim, a conversa normal de quem não sente esta irmanação com os livros. Logo depois de casarmos, a tarefa de os limpar ficou entregue à empregada que durante árduas horas, reconheço, se punha acima-abaixo, descendo e subindo um pequeno escadote periclitante, com um pano do pó e um espanador na mão, limpando livro atrás de livro. A minha mulher desesperava, dizia que mais valia ter duas empregadas, uma para a casa outra para os livros. E mais dizia que se a dita rapariga caísse de cima do escadote haveria de ser um problema, que era «um perigo», «um perigo»! A empregada, do cimo do escadote, tratava de não se desequilibrar e, espirro a espirro, lá ia dando conta do recado e só sabia perguntar-me, com grande espanto, para que serviam tantos livros, tanto papel? Face a estas considerações comecei por proibir a minha mulher de assistir às limpezas. Que aquilo lhe fazia mal aos pulmões, que ela tinha razão e que o único que deveria incomodar-se com o caso era eu. Mais tarde e porque logo, logo vim a temer que a empregada me estragasse os livros acabei por reduzir as suas sessões de limpeza a uma vez por mês. Quando muito que ali fosse aspirar o chão, dar verniz às madeiras e pouco mais. Que não tocasse nos livros!

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