quinta-feira, 15 de maio de 2008

Leituras Silenciosas - Bagão Félix


Ontem, salvo erro, ouço com espanto, no final de um telejornal qualquer, o jornalista de serviço a apresentar/ apregoar livro de contos acabado de sair!!! Exclamações muitas! Olá, repercussões da polémica em torno da feira do livro? Qual quê. Autor: Bagão Félix. Tudo se esclarece: é político, ou foi, ora aí está instituído a autor com honras (únicas) de (ex)citação em telejornal, para mais em horário dito nobre. Este jornalismo «amigo» e «companheiro» é algo que me tira do sério. Mas, dando o benefício da dúvida, fui ver. Hoje, depois do jantar, tomo café com a reunião de 22 contos do autor, a aquilatar do seu valor literário. Título: «O Cacto e a Rosa». Editora: Sextante. Sextante, de João Rodrigues, ex-editor da Dom Quixote, chancela que já editou escritores como Abel Neves, Júlia Nery, Filomena Marona Beja, Teolinda Gersão ou Jaime Rocha. Vinco: escritores. Ora, ao Cacto e à Rosa. Eu confesso, li os primeiros quatro, cinco contos. Bastou-me. Para: perceber que Bagão não fosse quem é jamais publicaria estes contos; perceber que está lá uma frustre tentativa filosofante de cariz teológico-desportivo-existencialista; perceber, enfim, que o mundo está cheio de amigos... Mas esta escrita é muito má. Falta-lhe mão, falta-lhe ficção. E falta revisão editorial para dizer ao autor que dificilmente um relógio tem um ar «empertigado», adjectivo pelo qual Bagão parece nutrir especial apreço. Falta revisão editorial para dizer ao autor que literatura não é andar constantemente à volta de jogos do género: «O Henrique em mudança? Ou a mudança do Henrique?» ou «Agora desaparecido, via-se, nítida, a presença da ausência.» Falta revisão editorial para dizer ao autor que frases como estas soam mal e são de construção débil: «A rota da vida havia-os afastado entre dois continentes»; ou: «Uma minudência do quotidiano impulsionou-os para o subconsciente do calor de uma nova polémica». Falta revisão editorial para dizer ao autor que não se escreve «onde trabalhava há vinte anos», mas sim «... havia vinte anos» (erro recorrente). Falta revisão editorial para dizer ao autor que frases como «reencontro feito de desencontros» são mais do que banais e pueris. Falta revisão editorial para dizer ao autor que em vez de «um quartel de século» se deveria antes escrever «um quarto de século». Falta revisão editorial para dizer ao autor que frases como aquela adiante transcrita, do conto «Amizade», são dignas de um qualquer boletim pastoral ou jornal de paróquia: «Amigos e tão diferentes de cada um e do outro antes de cada um se ter transformado no outro. Uma amizade bela, pura e resistente. Verdadeira!» - a exclamação, deliciosa, é do autor. Falta revisão editorial para dizer ao autor que não há literatura em declarações de subterrâneo moralismo presente em frases como aquelas que encontramos em abundância no conto «E depois da morte»: «Porque a demanda de Deus faz parte da mesma necessidade de compreender para aceitar e de aceitar para compreender.» Falta revisão editorial para dizer ao autor que a sua personagem Júlio, do conto «A Solução», dificilmente se credibiliza à luz de factos como: é um cangalheiro que desde tenra idade percebeu que só poderia seguir as pegadas do pai, o mesmo almocreve de quem depois se diz correr-lhe nas veias «sangue de empreendedor», e o mesmo oficial da morte que, vem a saber-se, é perito em questões internacionais, nomeadamente um «estudioso da história dos Balcãs» e que até chegou a tirar o primeiro ano de um curso qualquer de Gestão!!! - e aqui as exclamações são minhas. E mais não li, que o tempo de leitura é de ouro. Resumindo, não fosse o benfiquismo que perpassa por um ou outro texto e qualquer um de nós poderia pensar que o Papa tivesse dado em escritor. Eu, confesso, de João Rodrigues esperava muito mais exigência. Que Leonor Pinhão, amiga de sempre, teça loas e passe a mão pelo lombo do amigo benfiquista, ainda se percebe... Uma coisa concedo, na fotografia está com ar de autor.

1 comentário:

Anónimo disse...

"não se escreve «onde trabalhava há vinte anos», mas sim «... havia vinte anos» (erro recorrente)".

Errado. A utilização do "havia", não constituindo um erro, não deixa de ser um fenómeno de hipercorrecção algo tonto. As duas formas são aceites (o Ciberdúvidas tem algumas entradas a este respeito). De resto, na oralidade todos tendemos, por razões fonéticas (ou seja, estéticas) a dizer "há" em vez de "havia", e em caso de dúvida deve-se sempre, acho eu, optar pela forma mais comum, para não cair em preciosismos ridículos.
Quanto ao resto do seu texto, nada a dizer. É impossível não concordar. Pobre escribagão, este Félix...
jms