sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Correntes d'Escritas

Da minha passagem pelas Correntes d'Escritas, na Póvoa de Varzim.

A Literatura Rasga a Realidade

Rasgar a realidade, rasgar o mundo. A imagem colhe, é uma imagem bonita, feroz. Dava um bom verso. Começo pelo verbo, pelo rasgar. Há nele, na sua tradução e leitura imediata, muito de raiva, de ruptura, de revolta, de rebelião. Rasga-se alguma coisa, por hábito, porque aquilo que se rasga já não serve, já não presta, porque não nos satisfaz ou contenta (os escritores, neste plano, sempre foram ou terão sido, pelo menos até à era da informática, dos mais «rasgadores» entre os homens, se assim se pode dizer, insatisfeitos com os versos ou com os capítulos que iam, primeiro, garatujando à mão ou, mais tarde, batendo às velhas máquinas de escrever; o que, de resto, e bem, só revela o seu elevado grau de insatisfação no seu labor, característica que deve sempre assistir ao escritor exigente).

Há, neste sentido, no verbo rasgar um acto de repúdio, uma emoção ou sentimento, chamemo-lhe assim, que também assiste enquanto qualidade à literatura. Não a toda, mas àquela que se debruça sobre o mundo à sua volta, aquela que o questiona, que o coloca em causa, que o contesta, no fundo, que, por vezes, o repudia, senão no todo pelo menos em partes. É um velho dom que assiste à palavra: a sua capacidade de luta, de ser arma. Tão simplesmente porque acredito que desde as suas primícias escrever sempre foi uma tentativa de mudar o mundo, senão de o mudar pelo menos de o transformar. O que não é fácil sequer simples. Ousar mudar não é fácil, rasgar alguma coisa, mesmo que seja para construir ou chegar a outra coisa qualquer, compreende sempre coragem quanto baste.

Na verdade pretender tal ousadia fez com que escrever se tornasse uma profissão perigosa, uma profissão de fé se se quiser (e os escritores, uma vez mais, sabem-no mais do que ninguém, ou não se soubesse que em tempos difíceis, ou vivendo sob regimes castradores da liberdade e do dizer, por vezes até em tempos mais disfarçadamente democráticos, são as zonas mais próximas de fronteira aquelas mais convenientes à morada do escritor...). E aqui, de uma forma mais irónica, poderia trazer à colação à expressão «rasgar horizontes»...

Adiante. Este rasgar, assim entendido, enquanto repúdio, sendo um dos catalisadores da escrita, acaba, por consequência, e muitas vezes, por equivaler também a um acto de coragem. Coragem que a uma outra, e primeira coragem, se junta: a coragem de enfrentar o vazio de uma página em branco. Isto é, avançar sem saber, o mais das vezes, por onde rasgar; rasgar o branco, rasgar o nada, avançar como um cego, tacteando silêncios até encontrar a voz, uma voz. Assim muitas vezes me vejo, cego diante de uma página em branco, até que um rasgo de inspiração venha a ensinar-me a rasgar de novo o mundo à minha volta.

A rasgar o mundo, diria, como quem o descobre pela primeira vez. Porque escrever é também sempre isso: uma primeira vez repetida quase sem fim, à exaustão – de outra forma: não é impunemente que se confronta o vazio. Trata-se, diria ainda, de um rasgar contínuo, de uma procura constante, de um não ficar satisfeito com o que se vai descobrindo. E aqui, isto que digo faz-me lembrar muito o meu filho mais pequeno, que não tarda a cumprir um ano (data a comemorar cirurgicamente no dia 25 de Abril). Faz-me lembrar as vezes que repetidamente gatinha até à revista, ao jornal, à folha de papel mais próxima (os livros tento mantê-los à distância recomendável) e vorazmente a rasga, como que a querer descobrir o que há por dentro daquilo que rasga, como que a pretender descobrir-lhe alguma coisa no seu interior ou por detrás.

Escrever/ rasgar, pois, como uma sede, como um desejo imenso de ir ao encontro de alguma coisa mesmo que, a princípio, não a saibamos nomear ou definir com exactidão. Assim também vejo a literatura, como uma sede infinita (desculpem a imagem gasta) que é passível de ser saciada (sim, com inspiração e muito de transpiração, como já dizia o poeta), mas que logo, logo de novo em sede se transforma. Escrever é assim um querer ir além do que nos é dado a ver, além da realidade imediata. Uma vez mais, rasgar. Ora, escapar a essa cruel realidade, rasgar o quotidiano, rasgar o mundo em que vivemos e nos movemos, não é tarefa nada fácil. Tarefa, diria, apenas ao alcance da imaginação, desse poder maior de desfeitear a realidade, rasgando-a, e partir em busca de uma outra. Rasgar, portanto, para conhecer e construir outras realidades, fender o mundo à nossa volta inaugurando outros horizontes de realidade. Rasgar, rasgar, rasgar, ficcionar, ficcionar, ficcionar.

Assim é, regra geral, toda a arte, e a literatura não escapa à regra, sendo essa, de resto, a sua condição, ou umas das suas mais prementes condições: a da permanente insatisfação face ao mundo que lhe é dado. Deriva daqui, por corolário, que o escritor é um ser insatisfeito. Pessoalmente, não tenho dúvidas quanto a isso: o escritor é um artista, alguém que cultiva a arte da palavra, e como tal alguém sempre em busca do novo ou, à míngua de algo de novo (o que não espanta num mundo em que tudo parece já ter sido dito ou inventado), em busca de uma nova forma de dizer, de reinventar.

Por fim, um outro sentido a ler nesta ideia, de que a literatura rasga a realidade, e mais óbvia, é a de que quem escreve viaja, quem escreve rasga horizontes sem necessitar para tal de sair do lugar. Sem precisar de outra coisa que não partir nas linhas da ficção, eventualmente tão-só fechando os olhos, para maior conforto e desfrute da «viagem». Neste caso não no sentido de ficcionar esses horizontes, de inventar novas realidades, realidades paralelas, antes no sentido de que quem escreve tem o poder de levar o leitor à descoberta do mundo como ele é, como o conhecemos, o mundo real, palpável, visitável, o mundo em que vivemos. Tudo, espantosamente, sem exigir ao leitor qualquer visto ou passaporte, sem que necessite ele sequer de marcar viagem, de procurar com avidez voos low cost ou campanhas de férias empacotadas a preço de desconto. Em resumo: sem precisar de sair de casa (asserção tão mais verdadeira quando hoje podem os livros encomendar-se comodamente via Internet e chegar-nos às mãos sem que tenhamos de descalçar as pantufas). Na verdade, de acordo com as maiores ou menores capacidades descritivas do autor, num ou noutros casos, a sensação de partir é de tal modo real que haverá mesmo quem diga não necessitar de viajar porque o faz através dos livros. Podendo não ser exactamente a mesma coisa, e descontando o meritório amor aos livros de quem o afirma, a ideia não deixa de ter o seu quê de idílico e belo.

Em suma, viajar, portanto, no espaço dentro do espaço de um livro, mas viajar também no tempo, outro milagre que pode apenas assistir à mente e mão do escritor; com uma mais-valia acrescida, podendo fazer-se para trás ou para diante no tempo! Nessa medida, o escritor é assim, ao mesmo tempo, um respigador do passado e um construtor de mundos a vir, e o mais espantoso de tudo é que todas essas viagens imaginárias, rasgando todos os possíveis e impossíveis, podem caber apenas numa, numa só página de um livro, num só parágrafo, até mesmo numa só frase, e assim, de um momento para o outro, podemos transpor fronteiras, passar de um continente para outro (fazendo de oceanos vastos ínfimos rios), da actualidade para a Idade Média e desta directamente para um futuro sem data marcada, confundindo com riso e à-vontade espaços e tempos, confundindo ou rasgando, eventualmente, os desígnios de um qualquer Deus do tempo ou Deusa da História mais desatenta ou adormecida, tal como, por exemplo, e termino, sucede nesse brilhante pequeno livro de Mário de Carvalho que é «A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho», onde se pode ler:

«O grande Homero às vezes dormitava, garante Horácio. Outros poetas dão-se a uma sesta, de vez em quando, com prejuízo da toada e da eloquência do discurso. Mas, infelizmente, não são apenas os poetas que se deixam dormitar. Os deuses também. Assim aconteceu uma vez a Clio, musa da História que, enfadada da imensa tapeçaria milenária a seu cargo, repleta de cores cinzentas e coberta de desenhos redundantes e monótonos, deixou descair a cabeça loura e adormeceu por instantes, enquanto os dedos por inércia continuavam a trama. Logo se enlearam dois fios e no desenho se empolou um nó, destoante da lisura do tecido. Amalgamaram-se então as datas de 4 de Junho de 1148 e de 29 de Setembro de 1984. Os automobilistas que nessa manhã de Setembro entravam em Lisboa pela Avenida Gago Coutinho, direitos ao Areeiro, começaram por apanhar um grande susto, e, por instantes, foi, em toda aquela área, um estridente rumor de motores desmultiplicados, travões aplicados a fundo, e uma sarabanda de buzinas ensurdecedora. Tudo isto de mistura com retinir de metais, relinchos de cavalos e imprecações guturais em alta grita. É que, nessa ocasião mesma, a tropa do almóada Ibn-el-Muftar, composta de berberes, azenegues e árabes em número para cima de dez mil vinha sorrateira pelo valado, quase à beira do esteiro de rio que ali então desembocava, com o propósito de pôr cerco às muralhas de Lixbuna, um ano atrás assediada e tomada por ordas de nazarenos odiosos.»


Pedro Teixeira Neves
Lisboa, 31 de Janeiro 2008

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