2. a orelha de Dodi
O pilar central da ponte ficou destruído. É certo, não ao ponto de fazer perigar a estrutura que sustinha a ponte mas, ainda assim, bastante danificado. Pior, muito pior ficou o Mercedes, feito lata de sardinhas abalroada por uma baleia esfomeada. Um desastre para a imagem da marca em matéria de segurança a bordo. Difícil mesmo, entre tanto sangue e miudezas intestinais e quejandas, foi descortinar o que eram braços, o que eram pernas, orelhas, lábios, mãos, pés, cabeças. Como o exagero que se permite aos escritores, diria que aço, ferro e carne conjugavam a perfeita simbiose, num quadro de horror que faria inveja a Damien Hirst ou aos irmãos Jake e Dinos Chapman e fariam de um Jheronimus Bosch um mero «aprendiz de feiticeiro dos infernos». O fotógrafo Jöel Pieter-Witkin também dificilmente faria melhor e, nos dias seguintes, ao ver as imagens televisivas terá, por certo, invejado aqueles que o acaso levou a testemunharem ao vivo aquelas horas letais.
Apesar da amálgama de corpos e chapa retorcida ainda fremente, vários anónimos, reconhecendo os acidentados, tratavam já de recolher pequenos restos de ferro ou borracha pensando já nos futuros negócios que fariam em leilões da net. Um cão lambia restos de sangue, antes de levar um pontapé de um dos primeiros polícias a chegar ao local. Enquanto outros agentes tratavam de afastar os curiosos e selar uma área de segurança e interdição, num perímetro que estimaria em cinco metros (isto é, para trás e para a frente, já que, lateralmente, pouco mais do que dois metros havia disponíveis), luzes de flashes continuavam um trabalho predador das intimidades alheias. Como antes em vida, agora também ali, na hora da morte, os paparazzi trabalhando, vermes do viver alheio.
Logo, logo chegaram mais jornalistas, estes, ao menos, encartados. As televisões assentaram arraiais, disputaram os melhores ângulos de captação de imagens, e todos obtiveram das suas direcções carta branca para entrarem em directo sempre que o desejassem. Nas redacções todos estavam a postos já pensando nas melhores parangonas com que abririam os informativos especiais e com que fariam as capas das edições da manhã seguinte. O vermelho vivo, claro, a cor eleita para os jornais e revistas. Comentadores foram acordados a meio da noite, cronistas idem aspas, o povo, sonolento, em pijama, também foi chamado a pronunciar-se à boca das rádios e das televisões. A cidade inteira acordou do torpor sonolento em que já ia mergulhando. Madame Jacqueline, moradora perto do local do sinistro, acordou em sobressalto do pesadelo que sonhava, só não percebeu é que acordara de um para testemunhar outro, embora com a mais-valia de não ser protagonista no segundo.A princípio veiculadas pelos Media, depois por fonte oficial dos gendarmes gauleses encarregues do caso, não tardou que chegassem a público as confirmações. Um terrível acidente custara a vida à Princesa do Povo que, seguindo num potente Mercedes, se despistara num dos túneis de Paris. Diana, a princesa de Gales, mais se pormenorizava (o que talvez não fosse necessário dizer, mas se diz à cautela de algum leitor desprevenido face a matérias monárquicas), seguia com o seu novo companheiro e namorado, um rico herdeiro de um ainda mais rico empresário, dono de um império de negócios. O seu nome, do amante da princesa, lembrava mais a graça de um cachorro, mas enfim... chamava-se Dodi. Crê-se que terá sido dele a orelha que um dos cães vadios que tinham ali chegado antes da Polícia levara pela boca, deliciando-se e babando-se fartamente num beco ali próximo – o animal jamais tivera nos caninos, incisivos e molares tão rico petisco. A suposição não é leviana, pois, uma vez recolhido o animal suspeito, veio a verificar-se que no seu estômago se encontrava um brinco a posteriori reclamado pelo pai do defunto como pertencendo ao seu rebento namoradeiro de princesas. Ajunte-se, a propósito, que o cão também veio a falecer, segundo informação constante dos autos policiais revelados no dia seguinte, não resistindo à intervenção cirúrgica (matéria que reuniu consenso de editorias para abrir 666 telejornais em todo o mundo).
segunda-feira, 5 de novembro de 2007
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